Índios somos nós
por Andréa França, pesquisadora de cinema e comunicação; professora do Departamento de Comunicação Social do curso de cinema (PUC/RJ).
Texto originalmente publicado no livro Povos Indígenas no Brasil 2001-2005 Assistindo a Shomotsi, Kiarãsã Yõ Sãti: o amendoim da cutia, Kinja Iakaha: um dia na aldeia, Daritidzé: aprendiz de curador, Das crianças Ikpeng para o mundo, todos realizados por videastas índios no âmbito do projeto Vídeo nas Aldeias, o que mais me surpreendeu, num primeiro momento, foi perceber que esses documentários jogam em duas frentes, dirigem-se a dois tipos de público bastante distintos: para o homem branco, ocidental, esses documentários parecem nos dizer que somos nós que nos tornamos outros, “índios”, pois os que foram esquecidos não esqueceram; para os índios, os vídeos não só permitem que eles tenham acesso, elaborem e recriem a sua própria imagem, como também mostram que eles podem ensinar coisas que outras comunidades indígenas, assim como o homem branco, não sabem.
O projeto Vídeo nas Aldeias
Criado em 1988, Vídeo nas Aldeias é um projeto precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil. Sua missão é apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais. Em 1998, o projeto deu início ao programa de formação de realizadores indígenas, tornando-se escola e centro de produção de cinema para povos indígenas
O que essas imagens do “outro” indígena – bem longe de nós, brancos – têm, por que elas conseguem nos falar, dirigir-se a nós, fazer-se compreender e, mais do que isso, como é possível que elas nos façam perceber nossas maneiras de ser, de nos pensarmos, como é possível que elas nos falem do nosso mundo? Essa é a pergunta que me fazia ao assistir a esses documentários, a pergunta que me motivou a escrever sobre eles também. Há uma dimensão claramente política no Projeto Vídeo nas Aldeias, e isso não porque se queira pensar o outro apenas, mas porque nos lembra que esse outro nos pensa também, que tem idéias a nosso respeito, que nos vê de um certo modo.
O que se vê nesses filmes é uma história que pensamos conhecer, mas contada em outros termos. Não é, para começar, uma história dos índios filmada pelos brancos, mas uma história dos brancos (ou dos índios) filmada pelos índios. Uma história, ou melhor, várias. E as histórias que contam esses filmes são aquelas da descoberta por nós, brancos, de toda uma estratégia lúdica, fabulatória e política dos índios, que jamais tínhamos visto sob esse ângulo. Surpreende a diversidade de rostos, de formas de representar o espaço e o tempo das aldeias, de se apropriar da imagem, de solicitar o espectador. Vemos ritos, festas, o dia-a-dia, memórias, tradições, narrativas do ontem e do amanhã, fragmentos de conversas, gestos, brincadeiras; contam-se mitos como se fossem contadas memórias pessoais; diz-se o que se diz há muito tempo, e diz-se o que nunca foi dito; conta-se muito do que contamos, mas de modo bem diferente.
“Me filma, colega, estou contente. A festa é dura, mas eu venci”, diz um índio xavante que se aproxima da câmera depois do ritual de provação para adquirir força e poder de cura; “Ele vai poder cuidar de mim um dia (...) vem. Filma ele. Pode filmar”, pede um outro índio depois de pintar o filho para iniciá-lo no mesmo ritual, em O aprendiz de curador (2003); “eu sempre quis que tivéssemos essa câmera. Sempre peço pra me filmarem. Não tenho vergonha. Sempre dancei assim, conheço bem a dança do amendoim, como antigamente. É assim que nós velhos fazemos. Pronto, terminei”, declara uma velha, “tomando” a cena em O amendoim da cutia (2005), filme que detalha o cotidiano da aldeia Panará na colheita do amendoim.
Afirmação livro dos corpos
Existe uma afirmação livre dos personagens como condição do cinema. Nesses filmes, os corpos se afirmam igual e livremente, se mostram de um certo modo, tomam a cena para “encenar” o que acreditam que seja bom para eles; existe sempre a possibilidade de entrar em cena para fazer a “sua” cena, o “seu” filme. Em Shomotsi (2001), um dos filhos do personagem que dá título ao documentário, entra de repente no plano em que o pai passa urucum no rosto e diz, olhando para o espelho e passando também urucum: “chega, não tem mulher mesmo!” e sai correndo; ou ainda, durante a refeição de Shomotsi com a família na mata, o outro filho diz para a câmera: “E lá estamos nós aparecendo...”. Para além da intimidade e da cumplicidade entre aquele que filma e aqueles que são filmados, patente em todos os planos de cada um desses documentários, existe um desejo de filme que não está somente do lado dos índios videastas, mas do outro lado da câmera também: há um desejo de filme tão grande quanto o desejo daquele que filma e, ao tornar esse desejo visível, atuante, falante, essas imagens criam um cinema absolutamente igualitário, um cinema onde cada corpo - seja ele da planta, da concha, do jacaré, da cutia, da criança, do velho - tem o mesmo valor que um outro para a câmera, todos eles igualmente diferentes, importantes e únicos.
Em Um dia na Aldeia (2004), filme que detalha o cotidiano da aldeia Cacau, na Amazônia, um grupo de índias volta da colheita de wesi (“os brancos falam açaí”), com seus bebês acoplados ao corpo enquanto caminham e, de repente, ouvimos uma delas: “estão falando de mim? Todas somos muito bonitas. Eu não sou gorda não, vou emagrecer”. E todas riem muito. Essas imagens nos falam porque o espectador tem a possibilidade de avaliar igualmente cada personagem, seus gestos, suas histórias, suas qualidades, seu senso de humor, sua entrada em cena. O cinema é uma experiência compartilhada e de afirmação (da língua, dos ritos, da comida, enfim, do cotidiano de cada aldeia).
Em Das Crianças Ikpeng para o Mundo (2002), quatro crianças apresentam sua aldeia, sua comida, seu cacique, e convidam o espectador - que, para elas, serão outras crianças índias, como elas - a fazer o mesmo, interrogando-o, solicitando-o. A força do dispositivo montado aqui é que essas imagens são concebidas como uma espécie de vídeo-carta, em que, se o “remetente” são as crianças da aldeia Ikpeng, o “destinatário” poderá ser qualquer um que tenha interesse – cinematográfico, antropológico, etnográfico –, qualquer um que tenha curiosidade pelas histórias dos outros. “Todo documentário se interessa pela ficção dos outros”, disse Jean-Luc Godard, sintetizando em larga medida a proposta desses filmes. O destinatário se bifurca então entre um destinatário-mesmo, empírico, fixável (as crianças de outras aldeias) e um destinatário-outro, distante, nômade, um outro sempre outro. Sem dúvida, trata-se de um documentário que soube encontrar as crianças certas e, mais do que isso, fez da arte do encontro uma possibilidade de que o filme pudesse ser de fato compartilhado, afirmado e vivido por elas.
Num certo plano, o menino Kamatxi come mangaba. Ele anda pela mata, vê a fruta no chão, se agacha para pegá-la e volta à posição em pé. A câmera segue os movimentos do menino, vai até a fruta no chão, observa de perto seu gesto de limpá-la e volta ao rosto do menino que, de perfil, engole a fruta e a mastiga, segurando o riso enquanto olha enviesado para a câmera. Ouvimos as risadas em off das outras crianças que o observam. A existência de uma platéia (que ri, comenta, brinca) na cena é uma outra modalidade da afirmação livre dos corpos; há nesse sentido um jogo de reflexos que reitera dois públicos distintos – o homem branco e o índio – a ocupar simultaneamente a posição de espectador. Lembremos do plano cômico e inusitado do chefe da aldeia Panará, em O amendoim da cutia, que simula estar transando com uma bananeira como se esta fosse uma índia; ele mexe o corpo, rebola, agarra a planta, descreve a chegada do gozo enquanto, em volta dele, as índias o observam, interrompem a colheita do amendoim e dão boas risadas. Público, como nós, as índias produzem uma espécie de rebatimento em espelho do índio-espectador no branco-espectador. Índio somos nós.
A identidade e a realidade no vídeo
A proposta de exprimir uma identidade já dada ou uma realidade estanque que pré-existiria ao filme, tão presente no discurso antropológico, etnográfico ou nos documentários expositivos clássicos, não tem lugar nesses filmes. Os olhares dos índios para a câmera, seus gestos, suas expressões, seus sorrisos, suas falas, são momentos intensos, fortes, justamente porque mostram a consciência de que se trata de um jogo entre quem filma e quem é filmado, um jogo em que a performance dos índios está ligada a fatores que são produzidos pelo documentário, para o documentário e que não existiriam sem ele.
É verdade que toda uma corrente do cinema documentário moderno – o cinema direto – rompeu com a tendência de pensar os filmes como representação de significações pressupostas do real. E, como essa corrente, esses filmes partem do pressuposto de que a filmagem produz um outro contexto, cria acontecimentos novos. Não basta ligar a câmera diante de alguma coisa e achar que a “realidade” virá à tona. Neste aspecto, creio ser fundamental o trabalho desenvolvido nas oficinas de formação do Vídeo nas Aldeias, trabalho este que, como explicam os coordenadores do Projeto, Mari Corrêa e Vincent Carelli, reflete a opção por um estilo de filme, uma linguagem que implica experimentação, pesquisa. Não podemos esquecer, como enfatizam os coordenadores, que os realizadores são aprendizes e que num processo de formação, a interferência ou a influência dos instrutores é real e, neste caso, plenamente assumida. A câmera aqui instiga e cria o fato que ela está documentando, rompendo de forma radical com a forma de fazer filmes sobre índios, sobretudo nos documentários etnográficos mais clássicos. Trata-se de um cinema cujo dispositivo é extremamente poroso, para que cada um possa percebê-lo como próximo, ao alcance de sua mão.
Há toda uma força do gesto que representa o projeto Vídeo nas Aldeias, força esta que é anterior às histórias que tais filmes contam. Creio que esse gesto precisaria ser bem mais compreendido, levado muito mais a sério, no seu engajamento, na sua poesia, nas indagações éticas e estéticas que traz consigo. São filmes cujos realizadores estão estreitamente integrados a tudo que se passa a todo o processo de produção; pesquisam e escolhem seus personagens, filmam e editam suas narrativas, suas relações com o corpo, com a comida, com o trabalho, supervisionados por instrutores que questionam suas escolhas, discutem, sugerem, acolhem e aprendem. Poderíamos dizer, sem medo de exagerar, que a grande questão que atravessa Vídeo nas Aldeias é: como propor aos índios um projeto através do qual os documentários feitos se tornem um documentários “deles”?
Porque dar a palavra ao outro (pobre, índio, minorias) para que eles se exprimam não basta, dizem esses filmes. É necessário que esses personagens reais sejam capazes de fabular, inventar, fazer emergir a imaginação no mundo da razão. Diria, por isso mesmo, que estes filmes estão para além das zonas reservadas aos esquematismos da montagem, dos discursos e dos ideais de verdade. O projeto Vídeo nas Aldeias, existindo desde o final dos anos 80 – um tempo longo, que implica numa ética do rigor e da responsabilidade –, pode reivindicar a seriedade de um cinema que suspende o juízo sobre a natureza real ou encenada do mundo, e não almeja uma verdade dos índios – pois sabemos que esta habita no horizonte como promessa, raramente como fato. Escutemos pois o que dizem os Ikpeng, os Panará, os Ashaninka, os Xavante, todos esses que viemos a chamar, por esquecimento, “índios”, como quem diz “os outros”, quando fomos nós que, a depender desses filmes, nos tornamos outros.
(junho, 2006)