From Indigenous Peoples in Brazil

News

Kawaiwete lutam para manter suas roças tradicionais

05/08/2016

Autor: Isabel Harari

Fonte: ISA- https://www.socioambiental.org



Essencial para a subsistência, a roça é um elemento central na cultura das 26 comunidades Kawaiwete que vivem nas regiões do Baixo e Médio Parque Indígena do Xingu (PIX). Além disso, os Kawaiwete (Kaiabi) detêm a maior diversidade de produtos da roça no PIX. E querem manter e ampliar essa condição em nome de sua cultura e segurança alimentar. Por isso, vêm realizando ações para sistematizar, resgatar e valorizar os produtos tradicionais de suas roças.

Um bom exemplo foi o Encontro de Sementes da Roça, promovido pela Associação Indígena Tapawia entre 23 e 26 de julho. Cerca de 40 pessoas se reuniram na aldeia Tuiararé para conversar sobre técnicas de manejo, desaparecimento de produtos, entrada de alimentos não indígenas nas aldeias, merenda escolar, espiritualidade e alimentação, cultura, prevenção de incêndios, mudanças climáticas e outros temas associados às roças. Além de propiciar a troca de saberes, conhecimentos e estratégias de resistência o evento possibilitou troca de sementes e produtos tradicionais entre as famílias de diferentes aldeias - ao todo foram trazidos 40 tipos de alimentos. A Associação Tapawia apresentou as variedades das espécies produzidas no âmbito do projeto Centro de Estudos de Preservação e Multiplicação da roça Kawaiwete que está em execução e visa a multiplicação e preservação dos produtos da roça.

Jowosipet Kawaiwete, liderança da aldeia Tuiararé, conta que no primeiro ano do projeto, em 2015, foram colhidos sete sacos de amendoim de 14 variedades distintas e na colheita deste ano foram contabilizados 41 sacos. "Por que estamos unidos? Por causa da alimentação. A comida faz parte da nossa cultura. Temos que lutar pelo que é nosso", alerta. Preocupada com a entrada de alimentos não indígenas em sua comunidade e o desaparecimento de variedades agrícolas, Wisio Kawaiwete percorreu diversas aldeias para fazer o levantamento da roça de cada família e salvaguardar as diversas qualidades dos produtos tradicionais: "É a nossa comida verdadeira, que os nossos pais e nossos avós davam pra gente comer e não fazia mal. Por que nós Kawaiwete não se preocupa com os produtos da roça e só consome os alimentos da cidade? Eu tô procurando um jeito de ajudar o meu povo pra ver se alguma coisa melhora, como era antigamente, pra gente dar comida pros nossos filhos".

Tuim Kawaiwete, liderança da aldeia Samaúma, contou aos jovens que tem o cuidado de separar as variedades diferentes dos produtos que aparecem na colheita - principalmente do amendoim. Tuiaraiup, pajé da aldeia Kwaryja, alerta para a importância dessa prática na continuidade dessas espécies. Segundo ele, se o trabalho não for feito com o devido cuidado, a dona da roça, chamada Kupeirup, pode retirar algum tipo de alimento, da mesma forma que se esse manejo for realizado de acordo com as práticas tradicionais, a produção e variedades tendem a aumentar (saiba mais sobre o mito de origem das roças no final do texto). Assim, a transmissão desses conhecimentos é essencial para a continuidade da produção das roças: "Se eu morrer de hoje pra amanhã quem é que vai contar? Os nossos filhos e netos vão precisar desse conhecimento futuramente. Muito tempo atrás, antes do contato com o homem branco, a gente já tinha a produção da roça. A gente não quer que acabe, é nosso, por isso temos que saber cuidar, utilizar, não deixar acabar".


Desmatamento e mudanças climáticas são algumas ameaças


De fato, as atividades da roça são essenciais na organização e articulação das comunidades, e seu sistema agrícola, baseado no pousio da capoeira (roça de coivara) e na abertura de novas áreas para o plantio, promove um refinado mecanismo de enriquecimento da biodiversidade. Entretanto, enfrentam diversos desafios para manter suas roças produtivas. O confinamento territorial, as mudanças no clima, o intenso desmatamento e a prática da monocultura extensiva no entorno do PIX são ameaças que colocam em risco seu patrimônio agrícola e cultural.

O impacto do desmatamento nas regiões adjacentes ao Parque ainda não é totalmente mensurável, mas já é amplamente conhecido e vivenciado pelos indígenas em seus sistemas agrícolas. Uma das consequências mais evidentes é a intensificação do período de seca e a consequente perda de umidade da floresta, o que aumenta a probabilidade de descontrole do fogo quando este é manejado para o trabalho da roça. Os grandes incêndios florestais eram quase inexistentes até os anos 2000, em 2010 mais de 280 mil hectares, quase 10% da área total do PIX, foi queimada.

"Jyawawut [criador do homem branco] não teve condições de cuidar e educar os seus netos, e hoje você vê que o desmatamento avançou muito, aumentou o calor. Daqui a alguns anos vai atingir plantações do homem branco, assim eles vão sentir o que os índios tão sentindo hoje", alerta Tuiaraiup, pajé da aldeia Kwaryja. Associado ao desmatamento, o uso intenso de agroquímicos nas lavouras de soja e milho no entorno do Parque preocupa os indígenas. Eles vêm acompanhando o desaparecimento de várias espécies de animais e plantas e o aparecimento de novas "pragas", mais resistentes e danosas aos produtos da roça. Além disso, existe uma preocupação com os alimentos não indígenas que chegam nas aldeias, potencialmente contaminados pelos herbicidas e agrotóxicos jogados nas plantações. "A comida que a gente come é pulverizada pelo veneno pra não pegar praga", alerta Wisio Kawaiwete, liderança da aldeia Kwaryja.


O mito de origem dos produtos da roça


"Antigamente não existiam as comidas na roça como o milho, mandioca, amendoim, feijão-fava, pimenta, cará, batata, inhame, algodão... Os Kawaiwete passavam muita fome e viviam se alimentando de frutas silvestres, como o inajá, o tucum e a castanha. O povo passou muito tempo, muitos anos nessa situação, até que um dia uma mulher viúva, chamada na nossa língua Kupeirup, sentiu a necessidade de dar mais alimentos para seus filhos. 'Eu quero que vocês trabalhem, façam uma roça muito grande e derrubem as árvores. No dia da queimada vocês me levam para o meio da roça e depois toquem fogo, eu serei queimada, assim aparecerá a comida para vocês'". (Tuim e Moré Kawaiwete narrando o mito de origem dos produtos da roça na historia de Kupeirup.)

Fruto de sua queima, Kupeirup é a dona da roça dos Kawaiwete, também conhecidos como Kaiabi, povo que habita o Parque Indígena do Xingu (PIX) e outras duas Terras Indígenas nos estados do Mato Grosso e Pará - Apiaka Kaiabi e Kayabi. Kupeirup, cansada de ver seus filhos passando fome, decidiu que eles deveriam queimá-la para que suas cinzas se transformassem em alimento. Assim, cada parte do corpo de Kupeirup deu origem a um produto da roça que o povo cultiva até hoje: são mais de 60 tipos de amendoim, munuwi, oito de cará, ka'ra, seis de milho, awasi, quase dez de batata doce, jetyk, e incontáveis variedades de mandiocas e mangaritos.


A mudança para o PIX


Os Kawaiwete (Kaiabi) originalmente viviam no entorno dos rios Teles Pires e dos Peixes, afluentes do Rio Tapajós, região que faz parte do interflúvio Tocantins/Tapajós/Médio e Baixo Xingu nas margens do Rio Teles Pires, na Bacia do Tapajós (PA). A extração de látex na região que acontecia desde os anos 1920 intensificou-se na década de 1950, gerando graves conflitos entre os seringueiros e os índios: aqueles que trabalhavam nos seringais viviam situação de extrema exploração e os que evitaram o contato assistiam a invasão e degradação de suas terras. A desigualdade na correlação de forças era patente e se somava à deliberada omissão do Estado em garantir os direitos territoriais indígenas, que já naquela época eram assegurados constitucionalmente.

Diante desse quadro, os indígenas foram induzidos a se mudar para o PIX, por intermédio dos irmãos Villas-Boas, entre 1956 e 1966, pois se permanecessem no seu território tradicional corriam risco de extermínio. Assim, parte do povo deixou suas terras, com sua cosmologia própria, recursos naturais, medicinais e produtos agrícolas. O território tradicionalmente ocupado pelos Kawaiwete no Teles Pires era consideravelmente maior do que a área no PIX e possuía condições ecológicas mais favoráveis ao seu sistema agrícola. No Xingu, seus cultivos ficam restritos a manchas de terra preta arqueológica, recurso cada vez mais escasso na região, dificultando a produção de seus alimentos tradicionais. Além disso, o sistema de agricultura itinerante, elemento importante da identidade Kawaiwete, fica prejudicado com a redução de espaço e de terras agricultáveis.

O projeto Centro de Estudos de Preservação e Multiplicação da roça Kawaiwete tem o apoio do ISA e é financiado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) por meio do Programa de Pequenos Projetos Eco Sociais (PPP-Ecos).



https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/kawaiwete-lutam-para-manter-suas-rocas-tradicionais
 

The news items published by the Indigenous Peoples in Brazil site are researched daily from a variety of media outlets and transcribed as presented by their original source. ISA is not responsible for the opinios expressed or errors contained in these texts. Please report any errors in the news items directly to the source