From Indigenous Peoples in Brazil
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"Para que não se repita": Movimento indígena pressiona Estado por Comissão Nacional Indígena da Verdade após décadas de violações silenciadas

30/10/2025

Autor: Por: Assessoria de Comunicação da CGY

Fonte: Yvyrupa - https://www.yvyrupa.org.br



Durante uma cerimônia em Brasília, organizações indígenas entregam ao governo proposta de Comissão para investigar crimes da ditadura contra povos originários.


No dia 21 de outubro, o Auditório do Centro Cultural de Brasília foi palco de um momento histórico para os povos indígenas do Brasil, onde ocorreu a Cerimônia Por uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, momento em que foi entregue oficialmente, ao Governo Federal, a minuta do ato normativo que propõe a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV). Entre os protagonistas deste momento, o povo Guarani marca presença não apenas como testemunha de décadas de violência, mas como agente ativo na construção de um futuro onde memória, verdade e reparação deixem de ser apenas promessas.

A minuta entregue busca concretizar uma recomendação deixada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2014, e representa a culminação de anos de articulação entre organizações indígenas, sociedade civil e órgãos públicos. O documento exige que o Estado brasileiro assuma sua responsabilidade pelas graves violações de direitos humanos sofridas pelos povos originários, mas avança para além do período da Ditadura Militar (1964-1985), contemplando desde o período da instalação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), em 1910. As violações históricas incluíam assassinatos, remoções forçadas, envenenamentos, sequestros de crianças e esbulho de terras.

Para Leonardo Werá Tupã, coordenador Tenondé da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), a presença Guarani neste espaço carrega um significado profundo. "A nossa participação nesse espaço é muito importante, pois abre a possibilidade de somarmos com os demais povos que guardam essa memória e buscam por justiça e reparação", afirma. Ele destaca que a construção coletiva da proposta fortalece a luta indígena: "Para nós, do povo Guarani, é essencial que estejamos debatendo e construindo as propostas e encaminhamentos junto ao Fórum Nacional: Justiça de Transição para Povos Indígenas, fortalecendo a demanda dos povos indígenas pela criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade, que será um passo gigantesco na nossa luta."

O reconhecimento dessa articulação também se refletiu na fala da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, que recebeu o documento durante a cerimônia. Para ela, a proposta transcende o passado e dialoga com violências que persistem no presente. "Aqui hoje é a memória, o passado, mas também o presente: para que se investigue, para que se apure e se faça a reparação dos crimes cometidos no passado", afirmou. A ministra ressaltou que as violências contra os povos indígenas não se encerraram com o fim da ditadura e comprometeu-se a levar a pauta adiante: "Para que não se repita mais nenhuma crueldade, nenhuma violência e nenhuma injustiça contra os povos indígenas."

Caso Guarani: violência espiritual e desterritorialização

Para o povo Guarani, as violências da ditadura assumiram contornos específicos que atingiram o núcleo de sua existência como povo. O Assessor Jurídico Guarani Verá Yapuá explica que, embora a violência tenha sido constante ao longo da história, ela se intensificou dramaticamente durante o regime militar. Para além do cenário de prisões e regimes totalitários nos postos indígenas, os Guarani sofreram sobretudo uma violência de ordem espiritual e cultural.

"O povo Guarani sofreu nesse sentido: de ser desterritorializado. Porque o povo Guarani tem uma filosofia de vida que é a esquiva: de se defender, mas não brigando, e sim evitando, se esquivando de tudo que é ruim", relata Yapuá. Segundo ele, poucos Guarani aceitaram viver nas reservas indígenas criadas na época do SPI, pois não se submetiam a regimes impostos e muitas vezes dividiam espaços com outros povos, o que conflitava com sua organização sociocultural.

A principal violência, portanto, foi a perda dos espaços tradicionais e a impossibilidade do livre trânsito em seus territórios. "Essa foi uma das principais violências. Os que ficaram - poucos grupos - nos postos indígenas acabaram sofrendo também violências físicas: de ter que se submeter a regimes de castigos, prisões indígenas (as chamadas 'cadeias') e trabalhos forçados em algumas reservas."

As mulheres Guarani também viveram formas específicas de violência durante a ditadura militar. A articuladora kunhangue feminina Katiara Farina, da Terra Indígena Ka'aguy Porã, ressalta que, embora as violações contra a população indígena como um todo tenham sido vastas e sistemáticas, as mulheres foram submetidas a violências de gênero que usavam seus corpos como alvos de repressão.

"Tem que vir à tona. A violência sofrida no passado se conecta com a realidade atual de violência contra as mulheres indígenas e a luta por seus territórios", afirma Katiara. Para ela, entender as raízes históricas dessa violência fortalece a resistência contemporânea. "As mulheres Guarani continuam na linha de frente da luta pelo território e pela preservação de sua cultura."

A luta pela verdade: um caminho de décadas

A criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade não é uma demanda recente. Ela nasce de uma recomendação direta da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que atestou sobre as graves violações sistemáticas que os povos indígenas do Brasil sofreram durante a ditadura militar. As violências institucionalizadas envolveram assassinatos, envenenamentos, contaminação intencional por doenças, sequestros de crianças, esbulho de terras, usurpação do trabalho indígena em condição análoga à escravidão, prisões arbitrárias, remoções forçadas, desaparecimentos forçados, perseguição de lideranças e extermínio.

O relatório final estimou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período investigado. No entanto, a CNV analisou apenas 10 povos indígenas entre os 305 existentes no país, deixando lacunas profundas sobre a real dimensão das violações. Diante disso, ao fim do seu trabalho, em 2014, a Comissão fez treze recomendações específicas para o tema indígena. Uma delas era justamente a criação de uma comissão específica para investigar as violações contra os povos originários, reconhecendo que o escopo de sua análise havia sido insuficiente.

Entre 2014 e 2022, a recomendação permaneceu no papel, sem avanços concretos por parte do Estado brasileiro. Foi a partir de 2022 que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), junto com o Instituto de Políticas Relacionais (IPR) e o Observatório de Direitos e Políticas Indígenas da Universidade de Brasília (OBIND-UnB), começaram a incorporar o debate sobre Justiça de Transição, Memória, Verdade, Reparação e Não-repetição em suas agendas. Essa mobilização incluiu seminários e a formação de pesquisadores indígenas.

Finalmente, em setembro de 2024, foi criado o Fórum: Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos Indígenas. Esta iniciativa multissetorial, composta por mais de 60 organizações indígenas (incluindo APIB e COIAB), entidades da sociedade civil, academia e o Ministério Público Federal (MPF), assumiu a tarefa de elaborar a minuta do ato normativo para a criação da CNIV. O Fórum já levantou mais de 80 casos de povos que tiveram seus direitos violados pela ditadura - um número que demonstra a vastidão das lacunas deixadas pela CNV de 2014 e a urgência de uma comissão específica que possa abarcar essa realidade. Também foi responsável pela minuta entregue na Cerimônia.

Verá Yapuá participou ativamente do processo de elaboração do documento entregue ao governo. Para ele, a importância jurídica e política da criação da CNIV é imensa. "Vem no sentido de fortalecer não só as ações que já estão em curso no Judiciário, em relação à memória, justiça, verdade e reparação, mas também para novos casos que venham a surgir", explica.

Verá destaca que há poucos subsídios sobre as violações sofridas pelas comunidades e povos indígenas, o que dificulta as lutas judiciais. "Com a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, teremos mais elementos para fortalecer nossas ações na Justiça e alcançar o que buscamos há tanto tempo: o reconhecimento, pelo Estado brasileiro, das violações cometidas contra os povos indígenas."

Uma das principais inovações da proposta elaborada pelo Fórum é justamente a forma como pretende acolher os relatos e evidências. Diferentemente da CNV de 2014, que se baseou principalmente em documentos escritos, a CNIV está estruturada para acolher diversas formas de relato. "Não vai ser só documento, não vai ser só prova documental. Pode ser relato gravado, pode ser relato em áudio, pode ser uma roda de conversa transcrita. Todos os elementos possíveis dentro de uma cultura de relatar esse período, de relatar as violências, a ideia é que sejam admitidos dentro da Comissão Nacional Indígena da Verdade", detalha Verá.

Próximos Passos

Com a entrega oficial da minuta ao governo federal, inicia-se agora um processo de tramitação institucional. A proposta precisa ser analisada pelas instâncias governamentais competentes e transformada em ato normativo oficial para que a Comissão Nacional Indígena da Verdade seja efetivamente criada.

Para os Guarani e demais povos indígenas do Brasil, a criação da CNIV representa mais do que um acerto de contas com o passado. Representa a possibilidade de um futuro onde suas histórias sejam ouvidas, suas violências reconhecidas e suas existências respeitadas. Como enfatiza a ministra, o objetivo final é "para que não se repita mais nenhuma crueldade, nenhuma violência e nenhuma injustiça contra os povos indígenas".

Para Katiara, esse processo de reconhecimento é fundamental para que os jovens Guarani compreendam as raízes históricas das violências que ainda enfrentam hoje e possam fortalecer sua resistência contemporânea. Para ela, trazer à tona as violências sofridas no passado cria uma ponte com a realidade atual: "A violência sofrida no passado se conecta com a realidade atual de violência contra as mulheres indígenas e a luta por seus territórios. Entender as raízes históricas dessa violência fortalece a resistência contemporânea", reflete.


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