From Indigenous Peoples in Brazil
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Notícias

PR: "O governo está exportando sangue indígena para outros países": Entrevista com Cacique Avá-Guarani

11/11/2025

Fonte: A Nova Democracia - https://anovademocracia.com.br



O comitê de apoio ao AND de Curitiba entrevistou o Cacique Ilson, dos Avá-Guarani, a respeito das intensas mobilizações e retomadas que o povo Avá-Guarani tem conduzido nos últimos anos nos Territórios Indígenas localizados nos municípios de Terra Roxa e Guaíra.

O comitê de apoio ao AND de Curitiba entrevistou o Cacique Ilson, dos Avá-Guarani, a respeito das intensas mobilizações e retomadas que o povo Avá-Guarani tem conduzido nos últimos anos nos Territórios Indígenas localizados nos municípios de Terra Roxa e Guaíra. Após muitos conflitos com o latifúndio local, a Fazenda Brilhante, com apoio do Grupo Invasão Zero e de polícias federais e estaduais, os Avá-Guarani conquistaram parte do seu território de volta.

Tendo perdido suas terras por conta da construção da Hidrelétrica de Itaipu e da predatória expansão de grupos latifundiários, os Avá-Guarani travam uma constante luta pela terra que é sua de direito. A Correspondência local de AND em Curitiba realizou uma entrevista extensa com o Cacique Ilson sobre a organização, a luta, as vitórias e os desafios dos Avá-Guarani.

AND: Conversamos bastante no evento de apresentação do Relatório da Violência contra povos indígenas sobre os ataques que os povos Avá-Guarani vem sofrendo. Porém, achamos que também é muito importante falar sobre a força dessa resistência, que obteve conquistas como a demarcação de 3 mil hectares. Ainda que saibamos que é insuficiente e injusto, não deixa de ser uma conquista da luta dos Avá-Guarani. Você pode contar um pouco sobre como tem sido a organização dessa luta?

Cacique Ilson: Existem várias comunidades que fazem parte da terra indígena delimitada. A que fazia parte da Fazenda Brilhante está sendo regularizada, os indígenas que estavam nessa fazenda estão sendo realocados. É um processo. Há outras comunidades além dos Avá-Guarani, como a Kaingang, que sofreu os principais ataques armados, diversas e diversas vezes.

Se tratando da chamada reparação histórica, esse acordo parece um evento simbólico, tratado de tal maneira. A gente vê isso com indignação, pois esses espaços estão sendo comprados pelo Estado, então na verdade os fazendeiros estão recebendo duas vezes, sendo pagos por terras que já exploraram. E ainda faltam muitos espaços para ser regulamentados. Para que isso (o que foi demarcado até o momento) viesse a acontecer a gente teve muitas fases, muitos picos de violência, muito racismo. Temos sofridos atentados e tentativas de intimidação desde 2012. A violência que sofremos não tem tido visibilidade. Algumas retomadas anteriores foram desfeitas pelo movimento dos fazendeiros, que contam com o apoio das polícias, as polícias locais, do estado, NEPON, BPFRON, a PM, a Guarda Municipal, que sempre estão nessas situações de retomada [...]

A situação ganha importância na mídia na verdade quando o latifúndio acha importante. Eles noticiam todas aquelas acusações de que seriam paraguaios e não indígenas, que seria uma invasão de terra e não uma retomada, e tudo mais. Então a nossa visibilidade foi conquistada como que vinculados ao papel de agressores, violentos, invasores, deteriorando, assim, nossa imagem. Expondo-nos, nos acusando de formação de quadrilha e outras coisas, como terroristas. "Agressões sem sentido à primeira vista", era assim noticiado os conflitos indígenas, as mortes, pela mídia, descontextualizando, esquecendo que estavam incluídas no contexto da luta pelo território. Somente depois disso, da nossa aquisição de relevância midiática e quando começamos a reivindicar as terras que são nossas por direito, que a violência se tornou mais frequente e letal, apesar de que antes ela existisse, mas de outra maneira.

Pedimos atuação da Força Nacional, por meio de uma carta, no território para evitar esses conflitos armados - eles que estão armados, não nós, o que temos de armas são flechas. Mas tal atuação não foi atendida. Nos atendimentos de saúde, ou até mesmo na cidade, os índios são maltratados e mal atendidos. A polícia busca ver nossa situação sempre a partir de brigas e conflitos internos, aparece alguém baleado eles perguntam um monte se não foi discussão de bebida ou de marido e mulher, a gente fala que é dos fazendeiros e não acredita. Só depois de muita violência o Ministério da Justiça, em contato com a FUNAI e o MPI, apresentou interesse em mobilizar a Força Nacional.

Pedimos ao MPI a FUNAI que garantissem nossa permanência e sobrevivência local. A PF foi acionada pra tratar dos ataques, mas usou dos nomes das lideranças para instaurar inquéritos sobre as invasões de propriedade, investigar nossos "ataques" como se fossemos "milícias" [...] Agimos somente como resistência, estávamos em contato com a PF, o MPI, com a PIB, com esses órgãos conseguimos ter mais força para negociar, pois nosso movimento é legítimo. Nosso território é terra já delimitada, mesmo que tenham sido anulados os estudos e procedimentos demarcatórios, mas ainda assim ali é terra indigena, e por isso que nós lutamos.

O Governo do Paraná tem interesse em que a terra seja devolvida ao latifúndio, mobilizando a polícia local para isso. Ganhamos força mas continuamos com a mesma vulnerabilidade, nossa área é um grande campo aberto, que está constantemente correndo risco na invasão, pessoas passavam de carro, tentando entrar de moto ali dentro. A Força Nacional veio, mas ficava mais passeando, não conversavam com as lideranças, não tinha planejamento. Os ataques continuaram acontecendo, mesmo com a Força Nacional. O MPI veio com missão em Julho de 2024, quando começaram a ter outras retomadas, pois a violência continuava mas não havia diálogo ou esperança - o trabalho para nos ajudar era moroso e complicado. E em cada uma dessas retomadas havia situações diferentes.

Na Fazenda Brilhante e na Mate Laranjeiras a demarcação ocorreu com mais facilidade, os fazendeiros só voltaram para pegar seus animais. A Tataiabu, por outro lado, sofreu muita pressão e fortes ataques armados. Os fazendeiros eram agressivos mesmo. Na Taturi, que foi uma tentativa não sucedida de ampliação, os fazendeiros se reuniram facilmente e atropelaram os indígenas com caminhonetes, e a polícia que estava lá, batalhão da fronteira não fez nada, pois havia muita pressão da parte dos fazendeiros. A polícia atuava como milícia do latifúndio.

Os fazendeiros iam nesses territórios escoltados pela polícia. Foram muitas retomadas e cada uma teve uma recepção diferente, desde mais agressivas até mais fáceis e amenas. Houve pressão sobre os órgãos para que a Força Nacional mediasse o contato com os fazendeiros e diminuíssem a violência contra os indígenas, o que não aconteceu.

Então o STF fez um despacho para que a Itaipu conversasse com as lideranças, para traçar um caminho com menores conflitos e também levando em conta a situação de que se classifica como uma dívida histórica (as terras alagadas pela construção da Usina).

AND: Só para deixar bem claro, as terras que vocês conseguiram retomar estão em processo de demarcação agora, mas foi a Itaipu quem comprou de novo dos fazendeiros por conta da alegação de dívida histórica, é isso? Como está sendo a demarcação?

Cacique Ilson: A Itaipu concordou com a existência da dívida histórica, mas eles negam ter algo a ver com a demarcação de terra - principalmente a questão da segurança (dos indígenas), que para Itaipu é dever do Estado. Então a Itaipu paga o Estado pelas terras, que então paga os fazendeiros. Com muita dificuldade encontramos reuniões e pedimos o mínimo esforço da Itaipu e do governo para que a violência diminuísse. Através da Comissão Guarani-Yvyrupá pedimos um perímetro de segurança, que nos deixasse longe da pulverização de veneno e das invasões, isso foi pedido a Itaipu, mas ela reiterava dizendo que nada tinha a ver com isso. Pedimos que somente metade do território (12 mil hectares) fosse regularizada, para ter direito ao mínimo de assistência pública, espaço para escolas, posto de saúde. Daí a Itaipu propôs 1500 hectares, o que achamos ridículo. Mas não tínhamos alternativa, pois eles continuavam irredutíveis. Entramos, assim, com uma nova proposta de 6000 hectares para termos nosso perímetro de segurança, mais uma vez nossa proposta foi rejeitada, e as violências não foram impedidas. Então, a gente foi até o MPI e pediu para que houvesse ali uma intervenção do próprio Governo Federal. O governo federal também tinha que, minimamente, dar um sinal positivo para os Avá-Guarani. Mesmo assim, depois disso, a gente teve essa proposta de três mil hectares por aqui, para que ela fosse dividida nessas duas terras indígenas. E a gente já se encontrava sem alternativa. A gente estava vivendo uma guerra desigual, sofrendo tentativas de extermínio da comunidade, e não tinha alternativa. Eles falam que a gente aceitou uma proposta de três mil hectares, mas em que condições a gente aceitou? Porque a gente já não tinha outra alternativa. A gente estava morrendo, nossas famílias se perdendo, e então a gente teve que aceitar isso. Hoje, depois disso, a gente sempre vê com muita indignação que a gente teve, mais uma vez, que trocar os nossos direitos - que são primordiais para a nossa sobrevivência e para o nosso futuro - os direitos ancestrais sobre a terra, sobre o território que a gente ocupa. A gente teve que negociar isso com Itaipu e com o governo.

A gente trocou a nossa riqueza pelo espelho, mais uma vez. Então, isso vale também como reflexão para nós agora: em que condições foram trocadas as riquezas? Algumas vezes, essas são histórias vistas como romance. Mas isso não é nada romântico. Isso é trágico. Isso é uma tragédia que vem acontecendo durante esses séculos que se passam.

Trazendo na perspectiva que a gente tem hoje, sempre vemos que há muita injustiça. Então, tudo o que nós esperamos, a gente vai encontrar muitos obstáculos. A gente vai ter muitos problemas para que possamos avançar na regularização do nosso território. Porque, até agora, a gente teve que derramar o nosso sangue, perder nossos parentes, para que pudéssemos minimamente garantir a nossa permanência e a nossa sobrevivência dentro dessa terra que estamos ocupando. Então, como vai ser daqui para frente? Como é que vai continuar depois que foi aprovada no Congresso aquela lei do marco temporal? A nossa única alternativa é continuar lutando.

Mas o que a gente espera dessa luta? A gente espera ter nossa terra regularizada - não apenas comprada, como se fosse um loteamento para nossas comunidades - mas que ela seja reconhecida como um território ancestral, que seja demarcada e que seja, de fato, uma terra indígena. A gente sabe que tem muitos passos ainda para se chegar até esse ponto. A gente sabe que cada movimento político que acontece no Congresso traz dificuldades diferentes, lutas diferentes, e que u resultado pode mudar ou ser vetado pelo Congresso. Então, a gente continua na luta, mas sabe que vai ter problemas.

E, se não houver um plano de segurança para essas comunidades durante esse tempo em que essas propriedades estão em negociação, a gente vai continuar morrendo. A gente vai continuar sofrendo. Se não houver a garantia pelo próprio governo, a gente não vai ter segurança. Hoje, a gente vive monitorando os cantos da aldeia. Nesta semana mesmo, sofremos uma tentativa de ataque, algumas ameaças. Há uns três dias, os não indígenas colocaram fogo na frente da aldeia, na vegetação, que veio avançando para cima da aldeia. Essas violências não param.

A nossa comunidade também foi invadida por não indígenas que têm casas, que têm cerca, que soltaram gado. Foi pedido a reintegração de posse ali. Em parte foi cumprido: alguns saíram, mas depois voltaram. Enquanto isso, a gente continua lutando pela regularização da terra. Agora ela está em negociação: algumas propriedades estão sendo compradas, e outras ainda estão para ser levadas em audiência. Foram avaliadas pelo INCRA, pela Justiça também, mas ainda há muitos proprietários que não querem vender.

Existe uma política de não vender para os indígenas. Há uma pressão muito grande, principalmente desse grupo chamado Invasão Zero, e dos políticos da bancada ruralista que moram na região. A prefeitura também, até porque existe o desejo de que essas propriedades sejam de utilidade para grandes empreendimentos. Eles sempre falam que os Guarani estão impedindo a evolução da cidade, o crescimento, a vinda de novas empresas, a construção de um parque industrial, que está no meio do caminho da Ferroeste. Então, a gente tem todos esses problemas - e também deveria haver uma política de conscientização. Porque não somos nós que estamos impedindo. Foi a gente que perdeu as nossas terras para que elas fossem alvo do agronegócio e também da especulação imobiliária.

Com certeza vai ser muito difícil, porque esses grandes movimentos, como o Invasão Zero, já espalharam um veneno para essa sociedade, que hoje não aceita a presença dos Guarani. E nada impede que, quando eles querem nos atacar, ataquem a gente - no meio da noite, na madrugada, em feriado - mesmo com a Força Nacional por aí. Muitas vezes, eles acabam nem vendo quando as coisas acontecem. Quando a gente chama, eles demoram para vir. Quando chegam, as coisas já aconteceram, não tem o que fazer. Então, não tem como garantir de fato a segurança das comunidades se não houver realmente um plano de segurança que seja construído junto com os órgãos de segurança e também com as comunidades.

A demarcação em si é um dever do Estado Isso está muito claro, até mesmo para Itaipu. Itaipu também afirma muito isso [...] E essas negociações, a gente vê assim: quem são as pessoas que foram injustiçadas ao longo desse processo da construção de Itaipu, da Mate Laranjeiras, do decreto de Lupion - que colonizou a própria fronteira, que colonizou o Estado? Não foram os fazendeiros nem o Estado. E agora o Estado vai receber por uma terra que ele já vendeu. Então, ele vai receber duas vezes. Os fazendeiros já usaram essa terra, exploraram até não poder mais, e agora vão receber de novo por toda essa violência que trouxeram para a gente. A gente perdeu vidas, derramou sangue - e quem vai ser indenizado vão ser eles. O Estado vai receber para fazer uma coisa que é dever dele. Então, a gente vê isso como uma grande injustiça.

Mas também, a gente vê que, pelo menos agora, o Estado não vai ter desculpa para não regularizar isso, para não fazer o pagamento dessas propriedades para os fazendeiros - que, na verdade, deveria ser para nós, não para eles. Mas também a gente entende que a nossa luta, por um lado, está valendo a pena. A gente conseguiu dar visibilidade para a nossa luta, para o nosso movimento, para a nossa articulação - que é tudo o que nós temos agora. A gente não tem mais nada além disso, além da nossa grande força espiritual, da vontade de viver e de sobreviver, a gente não tem mais nada além disso. E agora a Itaipu destina esses recursos para a União, a União paga para esses proprietários, e o Estado regulariza.

AND: O agronegócio queria criminalizar os Avá-Guarani, isso trouxe uma visibilidade da qual vocês se aproveitaram para de novo se lançar e colocar em evidência a luta de vocês. Mas antes disso, nesse primeiro momento, como é que foi a decisão de começar a retomada das terras da TI? Foi uma decisão conjunto, dos vários territórios? Foi uma coisa que partiu de um evento que mostrou que havia essa necessidade? Como é que foi tomada essa decisão? E também, depois de todo esse processo, depois de todos esses ataques, toda essa violência e desse sucesso parcial da retomada, como que anda hoje o clima, a organização, o ânimo, qual que é o espírito do pessoal que está lutando hoje?

Cacique Ilson: Bom, as nossas retomadas, a gente teve um grande tempo de espera, porque começou lá atrás o processo de demarcação e, afinal, diziam que era uma coisa demorada. Então surgiu da necessidade, porque as nossas áreas são muito pequenas. Talvez a maior que a gente tivesse aqui fosse essa comunidade, o Ocadu, que estava ocupando 43 hectares. Essa é a maior, mas 43 hectares para 100 famílias já é muito pouco.

A gente estava com esse espaço cheio, sem espaço para cultivar, sem espaço para plantar, sem espaço propriamente para moradia também. Já a aldeia de Uauaru também se encontrava sem espaço, porque ela é uma área cercada por soja, por latifúndio mesmo. Então, a gente percebeu a necessidade de ampliar essas comunidades, mas também já tínhamos presenciado várias retomadas que foram desfeitas pelos fazendeiros. Toda vez que acontecia uma retomada, eles se juntavam, iam para lá e faziam a retirada. Não tinha jeito.

E a gente já sabia. Nas primeiras conversas, a gente já falava sobre isso - sobre a violência que viria. Se a gente fizesse uma retomada, essa galera teria controle. Então, a gente começou a planejar, mas já sabendo o que ia acontecer.

A única maneira de permanecer seria resistir, independente do que fosse, independente de qual fosse o resultado. Então, a gente começou a se preparar em mente, se preparar em espírito, com os tiramões na casa de reza. A gente começou a se preparar muito, muito mesmo, mentalmente. Se preparar para qualquer ataque, se preparar para qualquer resultado.

E com essa outra comunidade também, como eles iam fazer uma retomada, a gente pensou em fazer essa ampliação e essa retomada ao mesmo tempo, para que houvesse uma divisão de forças dos fazendeiros, mas também um compartilhamento de forças do nosso movimento.

A gente falou: se a gente não aumentar nossas áreas, nunca ninguém vai demarcar. Nunca ninguém vai chegar e falar que essas terras precisam de mais espaço. Porque quem está vendo que a gente precisa de espaço somos nós. Ninguém está vendo isso - nem o governo, nem a Justiça. E se for depender dos governos... o discurso de Bolsonaro não é só da gestão Bolsonaro, né? "Nem um centímetro de terra para povos indígenas." Porque nenhum governo na história deu um centímetro de terra para os povos indígenas. Tudo foi conquistado, tudo foi à base de derramamento de sangue e muita luta.

Então, a gente já estava muito consciente disso. Até que resolvemos partir para essas retomadas, para essas ampliações, prontos para encarar o que viesse - como já falei, independente do resultado. E justamente o que a gente já previa aconteceu: já nos primeiros dois a três dias de retomada, os ataques aconteceram. Muitos fazendeiros armados, muitas polícias, e ninguém do nosso lado.

A única coisa que a gente tinha como ferramenta de luta era a Comissão Guarani-Yvyrupá, que estava ali a todo momento chamando o MPI, chamando o Ministério Público Federal, acionando a FUNAI. E fora isso, ninguém. Até que o nosso pedido de socorro fosse atendido, tudo que tinha que acontecer ali já tinha acontecido. E a gente sabe que, numa luta assim como essa, tão desigual, que encontra apenas a força espiritual do povo Guarani - o nosso mbaraete, o nosso rezo - não tem uma força de combate da mesma proporção que tem o latifúndio. Então, a gente fez todo esse enfrentamento em um campo aberto, no meio do escuro.

Já a outra comunidade sofreu um ataque à luz do dia. A diferença é que eles tinham uma floresta para se esconder, tinham árvores para correr, a mata ali toda, para que a mãe natureza pudesse defender os Guarani que ela gerou - contra os fazendeiros que estavam vindo com pá-carregadeira, com caminhonete, com tudo que tinham ali de mais pesado.

Isso demandou muito esforço, muita energia da Comissão, que, querendo ou não, também são seres humanos. Nós somos seres humanos, e tivemos muito trabalho, muitas noites sem dormir, muitos dias sem conseguir se alimentar direito, comer direito, viver direito. A gente ficou sob pressão o tempo todo. Desde os dias da retomada até uns seis meses depois, estávamos nessa pressão intensa. Inclusive, teve pessoas ali da Comissão que chegaram a um esgotamento total. Mas as nossas vidas também estavam dependendo disso. Então, com tudo isso, a gente não podia desistir. A gente não tinha outra alternativa. Tinha que persistir, tinha que continuar. Desistir não era uma alternativa para nós.

E, graças a isso, a gente conseguiu assegurar a permanência da comunidade frente a várias tentativas de despejo e de extermínio também, porque a Polícia Militar chegou de madrugada, com um comboio de viaturas e um helicóptero sobrevoando a aldeia, prontos para fazer o despejo da comunidade. Só que a gente estava em uma audiência (online) com duas procuradoras da República, mais um procurador e os delegados da cidade, na presença de várias autoridades. Com muito esforço, com muita luta, com muita insistência, conseguimos que liberassem a nossa participação de forma online. Se não fosse por isso, a gente estaria naquele espaço fechado, com um monte de fazendeiro gritando lá, enquanto a polícia fazia o despejo na comunidade. Mas como estávamos na comunidade, naquela audiência, a gente avisou: "A polícia está chegando, o helicóptero está aqui." E as polícias que estavam lá (na reunião) fizeram de conta que não sabiam de nada. Diziam: "Não sei, não está acontecendo nada, está todo mundo aqui." E a procuradora falou: "Não, eu estou ouvindo o helicóptero." Porque o helicóptero estava muito baixo - o vento balançava o cabelo da galera aqui, balançava as folhas das árvores. Não tinha como não perceber.

Então, ela (a procuradora) disse que, naquele momento, eles teriam o dever de garantir a segurança dos Avá-Guarani desde aquele momento, e que houvesse também outra audiência para investigar as pessoas que nos atacaram. As polícias tinham o dever de garantir nossa segurança, porque nós estávamos dentro do nosso território, nosso movimento era legítimo, e nossa terra já era delimitada. Só então o capitão levantou e falou que a polícia tinha vindo "só para ver", e que já estavam voltando. Mas se não fosse por isso, com certeza nossa comunidade teria sido despejada - com a violência do Estado, que a gente conhece muito bem como é.

Com tudo isso, o agronegócio e o latifúndio começaram a criminalizar de vez as lideranças da comunidade, as comunidades e o movimento indígena em si. Ao mesmo tempo, isso nos deu força e visibilidade. Foram momentos muito traumáticos, que demandaram muito das nossas energias. As demandas para a Comissão Comissão Guarani-Yvyrupá, principalmente do território, foram gigantescas.

Hoje, nós somos sobreviventes de toda essa luta e o que nós podemos fazer é continuar lutando para que a gente continue sobrevivendo. A cada dia que passa, é mais um dia que a gente sobrevive.

AND: Tem mais alguma declaração que você gostaria de fazer?

Cacique Ilson: Acho que vale reforçar um pouco também sobre a questão territorial agora, até porque, nesse próximo mês, estarão reunidos 135 países na Conferência do Clima. Hoje, é o Brasil que está recebendo a COP30. A COP30 é chamada de Conferência do Clima, onde diplomatas e negociadores estão aí para debater qual a melhor maneira de movimentar a economia, de movimentar a sustentabilidade do país, ao mesmo tempo evitando as crises climáticas.E a gente percebe que não pode mais esperar uma crise climática. A crise climática já está aí. São terremotos, são ventos que absurdamente mudaram de um tempo para cá, são granizos, ventos devastadores. Não temos mais árvores para proteger a terra do vento.

A crise climática está aí - e o nosso país está contribuindo com outros países, principalmente no genocídio dos povos indígenas. Porque, se nós queremos preservar realmente o ambiente, a única maneira de preservar o meio ambiente é demarcando as terras indígenas. As terras indígenas são as únicas que estão preservando a respiração das florestas. Fora isso, as florestas se perderam, mananciais desapareceram, a água do planeta inteiro está sumindo. E hoje o governo se reúne com vários países, mas o interesse dos grandes governantes, dos grandes latifundiários, está nas duplicações de BRs, nas estradas de ferro. Hoje existe a ideia da criação desse Corredor Bioceânico de Capricórnio, que é um grande projeto de governo, planejado para beneficiar outros países - não o nosso país em si.

E isso traz muitos impactos ambientais e sociais, que também vão passar sobre terras indígenas. Então, acho que vale muito reforçar essa questão da luta pelo território e também falar, de fato, sobre essas questões do governo. O governo está vendendo o país para outros países. O nosso país está mandando soja para fora, mas, para que haja essa exportação daqui para outros países, ele tem passado por cima de terras indígenas, cemitérios indígenas, sítios arqueológicos - e levando sangue indígena, ossadas indígenas, para outros países.

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