From Indigenous Peoples in Brazil
News
Quilombos amazônicos resistem entre fé, floresta e ancestralidade
20/11/2025
Autor: Marcela Leiros
Fonte: Revista Cenarium - https://revistacenarium.com.br/quilombos-amazonicos-resistem-entre-fe-floresta-e-
Quilombos amazônicos resistem entre fé, floresta e ancestralidade
Por: Marcela Leiros
20 de novembro de 2025
MANAUS (AM) - Os quilombos da Amazônia guardam características particulares no mosaico da identidade negra brasileira. Diferentemente dos territórios quilombolas de outras regiões do País, os amazônicos nasceram e se mantêm em diálogo direto com os povos indígenas, a floresta e o rio, e são atravessados por práticas religiosas, relações de parentesco e formas de resistência que refletem a fusão entre diversas ancestralidades. É o que nos mostra um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) junto à Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), especialistas e lideranças quilombolas amazônicas, um retrato que reforça a importância do Dia da Consciência Negra, neste 20 de novembro, para o reconhecimento da identidade de territórios negros na região.
A presença quilombola na Amazônia é ampla e diversa. Segundo a nota técnica "Amazônia Quilombola: Ampliando a Cartografia sobre os Quilombos na Amazônia Legal", do ISA junto à Conaq, a região abriga 632 territórios quilombolas delimitados. O número vai de encontro aos 166 registrados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), representando aumento de 280%. O levantamento também identificou 2.494 comunidades quilombolas, superando as 2.179 reconhecidas no Censo de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Mestra em Ciências Humanas e quilombola do Quilombo de São João de Urucurituba, no Baixo Amazonas, Edicleuza Costa Ribeiro fala com propriedade sobre o assunto. Ela cita, como exemplo, a história do ex-escravo angolano Benedito Rodrigues da Costa, casado com Gerônima, da etnia Sateré-Mawé. A partir dessa união foram formadas as comunidades Boa Fé, Ituquara, São Pedro, Santa Tereza do Matupiri e Trindade, no Rio Andirá.
"No quilombo do Rio Andirá, a origem se dá a partir do casamento do fundador do quilombo com uma indígena. E aí eles apresentam, na história deles, esse encontro, essa união entre os dois grupos étnicos. Essa é uma relação de parentesco constituída entre as comunidades, que são as relações interpessoais, no caso, estabelecidas", explica a pesquisadora.
Edicleuza Costa Ribeiro é mestra em Ciências Humanas e quilombola do Quilombo de São João de Urucurituba, no Baixo Amazonas (Reprodução/Arquivo pessoal)
Essa forma de relação de parentesco constituída molda comunidades construídas tanto por laços sanguíneos quanto por vínculos espirituais e culturais. "Você pensar o quilombo no Amazonas, hoje, é verificar que eles se ocupam de outras manifestações também. Eles trazem, a partir do contato com o indígena, dentro do Amazonas, a apropriação de tecnologias indígenas, que são aprimoradas por eles e adequadas, ou seja, há uma troca de saberes", afirma.
No Pará, a liderança espiritual Francisdalva da Conceição Cardoso, de nome ancestral Turi Omonibo, representa a sexta geração do Quilombo Abacatal, o único na região metropolitana da capital Belém. O território tem mais de 300 anos de história, erguido a partir da força e resistência de Olímpia, mulher deixada à própria sorte, junto a outros escravizados, quando o antigo dono da fazenda de cana-de-açúcar retornou a Portugal, em 1710.
Com 39 anos, Turi é mãe, avó, artesã, trancista, agricultora familiar e formada em Administração. Também é a caçula de dez irmãos, filha de pai quilombola e mãe indígena. Ela se define como guardiã das memórias e da espiritualidade do quilombo, unindo a ancestralidade africana e indígena na luta pela preservação do território sagrado e pela continuidade da identidade do seu povo.
Turi Omonibo, do Quilombo Abacatal, o único na região metropolitana da capital Belém (Fabyo Cruz/Cenarium)
Para Turi, que se identifica como afro-indígena, o reconhecimento dessa identidade ainda enfrenta resistência, principalmente dentro das instituições. "As novas gerações da minha família têm uma dificuldade de se autorreconhecer, porque quando chega em certos lugares, ou você é indígena ou é quilombola. Se diz que é indígena, tem que provar que alguém te reconheceu como indígena. Quando é quilombola, tem que dizer onde você mora. Ou seja, alguém tem que dizer que você é aquilo", observa.
Religiosidade
A religiosidade é outro ponto que diferencia as comunidades amazônicas das de outras regiões e Estados, como a Bahia, onde se destacam terreiros consolidados de matriz africana. Para o sacerdote Hunjaí Luiz de Badé, do culto Fon-Fá e ativista do movimento negro no Amazonas, as práticas afro-religiosas na Amazônia se misturam fortemente com elementos católicos.
"Os nossos quilombos são extremamente assediados pelas comunidades católicas. E aí há uma fragmentação cultural daquele local. Os outros [Estados] sofrem menos esse processo", observa o sacerdote. Para ele, é impossível falar de religiosidade dos quilombos sem reconhecer o sincretismo.
Sacerdote Hunjaí Luiz de Badé (Ricardo Oliveira/Cenarium)
A análise é reforçada por Edicleuza Costa Ribeiro. "As características do quilombo no Estado do Amazonas passam muito nas manifestações que se dão a partir das festas religiosas. Cada quilombo tem suas manifestações específicas de religiosidade, os santos que eles comemoram, com a influência da Igreja Católica. Porém, há comunidades em que ocorre a interseção de outras denominações religiosas, como Adventista, Assembleia de Deus, ou seja, há outra configuração", destaca a pesquisadora.
Reconhecimento
Essas características caminham junto à dificuldade de se manter vivas as tradições e afirmar a identidade pelos territórios e seus membros. A falta de registros formais e a dependência da oralidade tornam o reconhecimento institucional mais complexo, enquanto as novas gerações se distanciam das práticas culturais e espirituais herdadas dos ancestrais.
Colaborador da "Cartografia da Resistência e do Cuidado", projeto de mapeamento iniciado em Manaus (AM) que pretende tornar visível a atuação sociocultural e ambiental dos terreiros de Candomblé, Umbanda e templos de religiões de matriz africana da capital amazonense, Luiz de Badé explica que essa ausência de continuidade histórica dificulta o processo de certificação das comunidades.
Luiz de Badé é colaborador da "Cartografia da Resistência e do Cuidado" (Ricardo Oliveira/Cenarium)
A memória dos mais velhos é a principal fonte de comprovação, já que parte das tradições quilombolas vem se perdendo com o tempo e com as mudanças culturais. "A gente tem uma característica, no quilombo, da não perpetuação da sua tradição. Ela foi perdendo espaço e já tem uma nova geração que não tem tanta ligação com esse passado, o que é um pouco diferente da cultura indígena", destacou Luiz de Badé.
Resistência
Apesar dos desafios, os quilombos da Amazônia continuam afirmando sua presença e importância histórica. São territórios que resistem à pressão da urbanização, à perda de memória e às dificuldades de reconhecimento institucional. Mesmo diante das transformações culturais e religiosas, essas comunidades mantêm vivas suas formas próprias de organização social, de fé e de relação com a terra.
Para Turi Omonibo, garantir o futuro dos quilombos passa por fortalecer a transmissão dos saberes às novas gerações. Ela acredita que é essencial envolver os jovens nas práticas culturais e na defesa do território, para que compreendam o valor da ancestralidade e deem continuidade ao legado deixado pelos mais velhos. Isso, segundo Turi, é o que mantém viva a identidade do povo quilombola e assegura a permanência de suas tradições.
Turi Omonibo é filha de pai quilombola e mãe indígena (Fabyo Cruz/Cenarium)
"Tem uma fala de Paulo Freire que diz assim: 'A gente educa praticando e pratica educando'. Então, a gente ensina fazendo e faz ensinando, entendeu? É uma troca. Seja em reuniões, seja em movimentos, seja em contação de história, em rodas de conversa, a gente sempre se apresenta pra reforçar quem nós somos e de onde nós viemos. Isso é passo muito importante", conclui.
https://revistacenarium.com.br/quilombos-amazonicos-resistem-entre-fe-floresta-e-ancestralidade/
Por: Marcela Leiros
20 de novembro de 2025
MANAUS (AM) - Os quilombos da Amazônia guardam características particulares no mosaico da identidade negra brasileira. Diferentemente dos territórios quilombolas de outras regiões do País, os amazônicos nasceram e se mantêm em diálogo direto com os povos indígenas, a floresta e o rio, e são atravessados por práticas religiosas, relações de parentesco e formas de resistência que refletem a fusão entre diversas ancestralidades. É o que nos mostra um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) junto à Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), especialistas e lideranças quilombolas amazônicas, um retrato que reforça a importância do Dia da Consciência Negra, neste 20 de novembro, para o reconhecimento da identidade de territórios negros na região.
A presença quilombola na Amazônia é ampla e diversa. Segundo a nota técnica "Amazônia Quilombola: Ampliando a Cartografia sobre os Quilombos na Amazônia Legal", do ISA junto à Conaq, a região abriga 632 territórios quilombolas delimitados. O número vai de encontro aos 166 registrados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), representando aumento de 280%. O levantamento também identificou 2.494 comunidades quilombolas, superando as 2.179 reconhecidas no Censo de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Mestra em Ciências Humanas e quilombola do Quilombo de São João de Urucurituba, no Baixo Amazonas, Edicleuza Costa Ribeiro fala com propriedade sobre o assunto. Ela cita, como exemplo, a história do ex-escravo angolano Benedito Rodrigues da Costa, casado com Gerônima, da etnia Sateré-Mawé. A partir dessa união foram formadas as comunidades Boa Fé, Ituquara, São Pedro, Santa Tereza do Matupiri e Trindade, no Rio Andirá.
"No quilombo do Rio Andirá, a origem se dá a partir do casamento do fundador do quilombo com uma indígena. E aí eles apresentam, na história deles, esse encontro, essa união entre os dois grupos étnicos. Essa é uma relação de parentesco constituída entre as comunidades, que são as relações interpessoais, no caso, estabelecidas", explica a pesquisadora.
Edicleuza Costa Ribeiro é mestra em Ciências Humanas e quilombola do Quilombo de São João de Urucurituba, no Baixo Amazonas (Reprodução/Arquivo pessoal)
Essa forma de relação de parentesco constituída molda comunidades construídas tanto por laços sanguíneos quanto por vínculos espirituais e culturais. "Você pensar o quilombo no Amazonas, hoje, é verificar que eles se ocupam de outras manifestações também. Eles trazem, a partir do contato com o indígena, dentro do Amazonas, a apropriação de tecnologias indígenas, que são aprimoradas por eles e adequadas, ou seja, há uma troca de saberes", afirma.
No Pará, a liderança espiritual Francisdalva da Conceição Cardoso, de nome ancestral Turi Omonibo, representa a sexta geração do Quilombo Abacatal, o único na região metropolitana da capital Belém. O território tem mais de 300 anos de história, erguido a partir da força e resistência de Olímpia, mulher deixada à própria sorte, junto a outros escravizados, quando o antigo dono da fazenda de cana-de-açúcar retornou a Portugal, em 1710.
Com 39 anos, Turi é mãe, avó, artesã, trancista, agricultora familiar e formada em Administração. Também é a caçula de dez irmãos, filha de pai quilombola e mãe indígena. Ela se define como guardiã das memórias e da espiritualidade do quilombo, unindo a ancestralidade africana e indígena na luta pela preservação do território sagrado e pela continuidade da identidade do seu povo.
Turi Omonibo, do Quilombo Abacatal, o único na região metropolitana da capital Belém (Fabyo Cruz/Cenarium)
Para Turi, que se identifica como afro-indígena, o reconhecimento dessa identidade ainda enfrenta resistência, principalmente dentro das instituições. "As novas gerações da minha família têm uma dificuldade de se autorreconhecer, porque quando chega em certos lugares, ou você é indígena ou é quilombola. Se diz que é indígena, tem que provar que alguém te reconheceu como indígena. Quando é quilombola, tem que dizer onde você mora. Ou seja, alguém tem que dizer que você é aquilo", observa.
Religiosidade
A religiosidade é outro ponto que diferencia as comunidades amazônicas das de outras regiões e Estados, como a Bahia, onde se destacam terreiros consolidados de matriz africana. Para o sacerdote Hunjaí Luiz de Badé, do culto Fon-Fá e ativista do movimento negro no Amazonas, as práticas afro-religiosas na Amazônia se misturam fortemente com elementos católicos.
"Os nossos quilombos são extremamente assediados pelas comunidades católicas. E aí há uma fragmentação cultural daquele local. Os outros [Estados] sofrem menos esse processo", observa o sacerdote. Para ele, é impossível falar de religiosidade dos quilombos sem reconhecer o sincretismo.
Sacerdote Hunjaí Luiz de Badé (Ricardo Oliveira/Cenarium)
A análise é reforçada por Edicleuza Costa Ribeiro. "As características do quilombo no Estado do Amazonas passam muito nas manifestações que se dão a partir das festas religiosas. Cada quilombo tem suas manifestações específicas de religiosidade, os santos que eles comemoram, com a influência da Igreja Católica. Porém, há comunidades em que ocorre a interseção de outras denominações religiosas, como Adventista, Assembleia de Deus, ou seja, há outra configuração", destaca a pesquisadora.
Reconhecimento
Essas características caminham junto à dificuldade de se manter vivas as tradições e afirmar a identidade pelos territórios e seus membros. A falta de registros formais e a dependência da oralidade tornam o reconhecimento institucional mais complexo, enquanto as novas gerações se distanciam das práticas culturais e espirituais herdadas dos ancestrais.
Colaborador da "Cartografia da Resistência e do Cuidado", projeto de mapeamento iniciado em Manaus (AM) que pretende tornar visível a atuação sociocultural e ambiental dos terreiros de Candomblé, Umbanda e templos de religiões de matriz africana da capital amazonense, Luiz de Badé explica que essa ausência de continuidade histórica dificulta o processo de certificação das comunidades.
Luiz de Badé é colaborador da "Cartografia da Resistência e do Cuidado" (Ricardo Oliveira/Cenarium)
A memória dos mais velhos é a principal fonte de comprovação, já que parte das tradições quilombolas vem se perdendo com o tempo e com as mudanças culturais. "A gente tem uma característica, no quilombo, da não perpetuação da sua tradição. Ela foi perdendo espaço e já tem uma nova geração que não tem tanta ligação com esse passado, o que é um pouco diferente da cultura indígena", destacou Luiz de Badé.
Resistência
Apesar dos desafios, os quilombos da Amazônia continuam afirmando sua presença e importância histórica. São territórios que resistem à pressão da urbanização, à perda de memória e às dificuldades de reconhecimento institucional. Mesmo diante das transformações culturais e religiosas, essas comunidades mantêm vivas suas formas próprias de organização social, de fé e de relação com a terra.
Para Turi Omonibo, garantir o futuro dos quilombos passa por fortalecer a transmissão dos saberes às novas gerações. Ela acredita que é essencial envolver os jovens nas práticas culturais e na defesa do território, para que compreendam o valor da ancestralidade e deem continuidade ao legado deixado pelos mais velhos. Isso, segundo Turi, é o que mantém viva a identidade do povo quilombola e assegura a permanência de suas tradições.
Turi Omonibo é filha de pai quilombola e mãe indígena (Fabyo Cruz/Cenarium)
"Tem uma fala de Paulo Freire que diz assim: 'A gente educa praticando e pratica educando'. Então, a gente ensina fazendo e faz ensinando, entendeu? É uma troca. Seja em reuniões, seja em movimentos, seja em contação de história, em rodas de conversa, a gente sempre se apresenta pra reforçar quem nós somos e de onde nós viemos. Isso é passo muito importante", conclui.
https://revistacenarium.com.br/quilombos-amazonicos-resistem-entre-fe-floresta-e-ancestralidade/
The news items published by the Indigenous Peoples in Brazil site are researched daily from a variety of media outlets and transcribed as presented by their original source. ISA is not responsible for the opinios expressed or errors contained in these texts. Please report any errors in the news items directly to the source