From Indigenous Peoples in Brazil
Noticias
O novo programa de Índio
30/06/2010
Fonte: UNESP Ciência n. 9, jun 2010, p. 18-29
Documentos anexos
O novo programa de Índio
Pesquisadores vão à Amazônia em busca de plantas que possam levar a uma nova droga contra malária; mas antes precisam superar as dificuldades de fazer bioprospecção baseada no conhecimento tradicional
Luciana Christante, texto;
Guilherme Gomes, fotos
Antigamente nós não tínhamos noção do papel do pesquisador e da finalidade dele, então ninguém discutia. Já passaram muitos pesquisadores aqui pelo rio Negro, mas quanto ao retorno, quase não se vê. Nunca discutíamos, sempre fomos passivos, era ouvir e aceitar. Agora não. Agora nós queremos entender o papel do pesquisador, queremos discutir, queremos saber, queremos ter o que é de nosso direito."
Essas palavras, de Pedro Fernandes Machado, da etnia Tukano, de São Gabriel da Cachoeira (AM), chamam a atenção para um dos temas mais complicados da ciência brasileira: a prospecção de ativos da biodiversidade associados ao conhecimento das comunidades tradicionais.
Para tratar desse assunto, nos dias 20 a 26 de abril, Lin Chau Ming, da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp em Botucatu, e outros cinco pesquisadores participaram de dez reuniões no noroeste do Amazonas. O objetivo da viagem era contatar lideranças indígenas do alto e médio rio Negro para viabilizar uma exigência legal: o consentimento prévio de suas comunidades para investigar as plantas ali usadas contra a malária.
Mais do que as negociações sobre essa pesquisa propriamente dita, os encontros, acompanhados pela reportagem de Unesp Ciência, revelam a delicada situação do estudo de recursos naturais no país, regulamentado há menos de dez anos. Para agir com a anuência indígena, é preciso ir além do cumprimento das regras e ter sensibilidade para superar um histórico de conflitos e lidar com as demandas e expectativas dos indígenas.
Radicado no Brasil desde a infância, esse pesquisador chinês não pensava que seria tão intensa sua estadia na região da Cabeça do Cachorro, conhecida por seus contornos que no mapa lembram o perfil de um cão mordendo um canto da Colômbia. O pedido de autorização é só a etapa inicial de um projeto que pode, em última instância, vir a descobrir um novo medicamento para a principal doença endêmica da Amazônia. A missão foi cumprida com sucesso, mas Lin gastou muita saliva para se explicar, precisou de muita de sua paciência oriental para ouvir e de muita sensibilidade para poder negociar.
O pesquisador é especialista em etnobotânica, o estudo dos usos tradicionais dos vegetais pelo homem. Passou anos em meio a seringueiros do Acre, trabalhou com comunidades do Mato Grosso, do Vale do Ribeira (SP) e, mais recentemente, de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, ambas no Amazonas e próximas a São Gabriel da Cachoeira, considerando o padrão amazônico de distâncias. Desta vez, porém, a experiência foi bem diferente das outras.
A situação encontrada pelo pesquisador na Cabeça do Cachorro, onde nove de cada dez habitantes são indígenas, foi bem resumida nas palavras do tukano Pedro Fernandes Machado que abrem esta reportagem. Funcionário da Funai na cidade e representante do órgão na Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), onde Lin e sua equipe passaram por duas sabatinas, Pedro tem como marco temporal, ao falar em antes e depois, o surgimento do movimento indígena do alto e médio rio Negro, do qual ele foi um dos pioneiros no início dos anos 1980.
Na época, a principal reivindicação era a demarcação contínua das terras onde vivem hoje cerca de 45 mil indígenas em mais de 700 comunidades, pertencentes a 23 etnias e quatro famílias lingüísticas (veja mapa à dir.).
O desfecho da longa batalha na Justiça só veio em 1998, com a homologação de cinco grandes áreas indígenas, num total de 106 mil km2, que abrangem cerca de 90% do território de São Gabriel da Cachoeira, um dos mais extensos municípios do país - duas vezes e meia maior que o Estado do Rio de Janeiro.
Cultura estilhaçada
Fortalecidas pela experiência, as lideranças da região carregam hoje duas grandes bandeiras. Uma é o resgate da cultura tradicional, estilhaçada pelo longo histórico de escravidão e assimilação forçada à cultura dos brancos. Outra é a busca de modos sustentáveis de desenvolvimento para evitar o esvaziamento das comunidades à beira do rio Negro e de seus grandes afluentes Içana, Xié, Uaupés e Tiquié.
A população do núcleo urbano de São Gabriel mais que dobrou nos últimos 20 anos, com a migração principalmente de jovens em busca de educação ou descontentes com a falta de oportunidades no interior. Apesar da paisagem exuberante que encanta forasteiros, essa é uma das regiões mais pobres da Amazônia devido à natural acidez do solo e das águas, que não favorece a agricultura e a pesca.
Para tratar suas mazelas, o movimento indígena de São Gabriel da Cachoeira tem a educação como prioridade. Um número crescente de escolas com ensino diferenciado - com professores indígenas e instaladas nas comunidades - procura colar os cacos do que sobrou do patrimônio cultural e capacitar os jovens para projetos que possam trazer segurança alimentar e geração de renda.
A equipe do pesquisador de Botucatu chegou a São Gabriel da Cachoeira num momento de orgulho ainda mais acirrado - um dia depois do Dia Nacional do Índio.
Ali as celebrações se estenderam por mais alguns dias. Por causa dessa e de outras efemérides fortuitas, o grupo presenciou várias festividades e demonstrações de autoestima no período. A maioria protagonizada por crianças e jovens.
Ao lado de Lin estava o professor Ari de Freitas Hidalgo, da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), um dos principais parceiros no projeto, filho de mãe são-gabrielense e, portanto, bem familiarizado com a região. Completavam a equipe uma doutoranda e uma mestranda da Unesp de Botucatu, e dois alunos de iniciação científica, um da Ufam e outra também da Unesp. Mas a pesquisa, financiada por CNPq e Fapesp, envolverá muito mais gente (veja detalhes na pág. 21).
A ampulheta do projeto, com duração de três anos, já está em pé. E Lin ainda precisa obter o consentimento prévio informado das comunidades indígenas que pretende pesquisar. Regulamentado pela medida provisória 2.186-16 de 2001, o expediente é necessário para ter a autorização do Cgen, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Só então ele poderá trabalhar sem risco de ser acusado de biopirataria. A tramitação no órgão, entretanto, leva cerca de seis meses. "Já informei o CNPq que vou precisar de uma prorrogação, para compensar esse tempo", justifica.
Primeiro encontro
Do tímido aeroporto de São Gabriel da Cachoeira, vamos direto para o campus do Instituto Federal do Amazonas, que oferece cursos profissionalizantes de nível médio. Quem nos recebe são o diretor-geral Elias Brasilino de Souza e o professor Rinaldo Sena, ambos brancos, mediadores do contato com as lideranças indígenas.
Meio pegos de surpresa, o tukano Pedro, da Funai, e Abrahão de Oliveira França, etnia Baré, da Foirn, acabaram ouvindo uma apresentação rápida do projeto. Eles estavam no local porque eram jurados do concurso de dança indígena que acontecia no ginásio da escola na manhã daquela terça-feira e não podiam demorar.
A ideia de Lin era consultar quatro comunidades no baixo rio Uaupés, como fora combinado com Rinaldo, natural de Manaus e grande conhecedor da região, que acompanharia a expedição. Os índios ouviram tudo com olhos baixos e expressão dura. Quando tomaram a palavra mostraram-se bem articulados e calejados. Resumiram de modo altivo e didático a organização da região, sua imensa diversidade étnica, o passado de abusos e experiências infelizes com pesquisadores.
"Rinaldo, vocês iam para as comunidades sem falar com a gente?", pergunta Abrahão, um pouco incrédulo por não saber previamente da chegada dos pesquisadores. "Claro que não, a ideia era justamente conversar com vocês antes", esclarece o professor, diligente. "Ah bom.
Porque um assunto desses precisa passar pela Foirn, senão já ia começar errado", replica o diretor-presidente da federação criada há 23 anos, que representa 63 associações e é o principal fórum de discussão da política indígena da região.
O encontro durou menos de uma hora e a conversa continuaria à tarde, na sede da Foirn. Uma coisa, porém, já estava certa: o roteiro de viagem seria radicalmente alterado. Isso porque consultar apenas comunidades no baixo rio Uaupés privilegiaria apenas uma das cinco regiões administrativas sob jurisdição da federação, onde prevalece a etnia Tukano. "Aqui no rio Negro a gente tem uma grande diversidade [de etnias], mas muitas coisas que a gente usa são iguais", explicou Abrahão.
O receio é que, no caso de a pesquisa resultar num medicamento, isso acabe beneficiando as etnias de só uma região, quando pode ocorrer de outros povos, como os Baré e os Baniwa (para citar apenas duas outras predominantes em outros lugares), também conhecerem bem e usarem a mesma planta que deu origem ao produto. "Isso pode trazer problema. É o que aconteceu com a pimenta Baniwa", compara com desgosto o líder.
Pimenta da discórdia
A especiaria tem gerado mal-estar entre os indígenas do alto e médio rio Negro.
O produto foi desenvolvido pelos Baniwa do alto Içana com o apoio do ISA (Instituto Socioambiental), ONG com longa e forte presença na região. Outras etnias sentiram-se prejudicadas por não terem participado do processo, alegando que a pimenta jiquitaia, na qual os Baniwa imprimiram sua marca, é amplamente usada por todos os povos do rio Negro (veja quadro à dir.).
Para evitar mais ressentimentos, Lin foi orientado a consultar pelo menos uma comunidade de cada uma das cinco regiões administrativas, que levam os nomes das calhas de seus respectivos rios: Tiquié, Uaupés, alto Negro e Xié, Içana e baixo Negro. O que, na prática, seria impossível de fazer somente nos quatro dias disponíveis pela equipe. O combinado, portanto, foi cumprir o trato nas três regiões mais próximas. Tiquié e Içana ficarão para uma segunda etapa. "Os pesquisadores geralmente calculam mal o tempo, porque não conhecem a região", explica Pedro.
A pimenta e a partilha
Diversos povos indígenas da região do rio Negro usam em sua culinária a jiquitaia, uma mistura de pimentas torradas e moídas. Há cerca de quatro anos, os índios baniwa imprimiram sua marca ao produto para vendê-lo em vários pontos do país, tal como já faziam com sua cestaria. A "Pimenta Baniwa" nasceu em meio ao projeto "Arte Baniwa", que contou com o apoio do ISA (Instituto Socioambiental). A iniciativa, porém, causou ressentimentos entre outras etnias, que alegam que a pimenta não é só dos Baniwa.
Comparar o caso da Pimenta Baniwa a um projeto de bioprospecção de medicamento é inapropriado, segundo o antropólogo Beto Ricardo, coordenador do Programa Rio Negro do ISA. "Os Baniwa estão vendendo uma pimenta e dizendo que são eles que fazem. Não patentearam o produto, não estão impedindo ninguém de fazer a pimenta. É uma marca de origem", afirma. "Não tem nada a ver com a prospecção de ativos da biodiversidade com conhecimento tradicional associado", acrescenta o antropólogo. O diretor-presidente da Foirn, Abrahão de Oliveira França, reconhece a natureza distinta dos dois casos, mas enfatiza que "o problema foi eles [os Baniwa] não terem exposto e discutido o projeto na Foirn [com lideranças de outras etnias]".
Apropriada ou não, a discussão exemplifica as dificuldades de lidar com conhecimento tradicional difuso em projetos de bioprospecção, um dos pontos frágeis da legislação brasileira. O caso mais emblemático envolveu o farmacologista Elisaldo Carlini, da Unifesp, em 2002, que estudava plantas medicinais em três comunidades indígenas Krahô no Tocantins. A pesquisa foi paralisada depois da divulgação de uma carta em que a associação Kapéy alegava que o conhecimento tradicional das plantas pertencia à etnia e que todas as 17 comunidades da associação deveriam ter sido consultadas, estipulando multa milionária. O caso foi parar na CPI da biopirataria, que absolveu os cientistas da acusação.
Entre 2006 e 2007, o Cgen (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético) manteve aberta uma consulta pública sobre como reger a repartição de benefícios nos casos em que o conhecimento tradicional é compartilhado por mais de um grupo. A Unesp Ciência procurou representantes do órgão para saber se, quando e como mudanças na legislação serão implementadas, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
(texto imcompleto), em anexo pdf com a reportagem completa.
UNESP Ciência n. 9, jun 2010, p. 18-29
http://www.unesp.br/aci/revista/ed09/
Pesquisadores vão à Amazônia em busca de plantas que possam levar a uma nova droga contra malária; mas antes precisam superar as dificuldades de fazer bioprospecção baseada no conhecimento tradicional
Luciana Christante, texto;
Guilherme Gomes, fotos
Antigamente nós não tínhamos noção do papel do pesquisador e da finalidade dele, então ninguém discutia. Já passaram muitos pesquisadores aqui pelo rio Negro, mas quanto ao retorno, quase não se vê. Nunca discutíamos, sempre fomos passivos, era ouvir e aceitar. Agora não. Agora nós queremos entender o papel do pesquisador, queremos discutir, queremos saber, queremos ter o que é de nosso direito."
Essas palavras, de Pedro Fernandes Machado, da etnia Tukano, de São Gabriel da Cachoeira (AM), chamam a atenção para um dos temas mais complicados da ciência brasileira: a prospecção de ativos da biodiversidade associados ao conhecimento das comunidades tradicionais.
Para tratar desse assunto, nos dias 20 a 26 de abril, Lin Chau Ming, da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp em Botucatu, e outros cinco pesquisadores participaram de dez reuniões no noroeste do Amazonas. O objetivo da viagem era contatar lideranças indígenas do alto e médio rio Negro para viabilizar uma exigência legal: o consentimento prévio de suas comunidades para investigar as plantas ali usadas contra a malária.
Mais do que as negociações sobre essa pesquisa propriamente dita, os encontros, acompanhados pela reportagem de Unesp Ciência, revelam a delicada situação do estudo de recursos naturais no país, regulamentado há menos de dez anos. Para agir com a anuência indígena, é preciso ir além do cumprimento das regras e ter sensibilidade para superar um histórico de conflitos e lidar com as demandas e expectativas dos indígenas.
Radicado no Brasil desde a infância, esse pesquisador chinês não pensava que seria tão intensa sua estadia na região da Cabeça do Cachorro, conhecida por seus contornos que no mapa lembram o perfil de um cão mordendo um canto da Colômbia. O pedido de autorização é só a etapa inicial de um projeto que pode, em última instância, vir a descobrir um novo medicamento para a principal doença endêmica da Amazônia. A missão foi cumprida com sucesso, mas Lin gastou muita saliva para se explicar, precisou de muita de sua paciência oriental para ouvir e de muita sensibilidade para poder negociar.
O pesquisador é especialista em etnobotânica, o estudo dos usos tradicionais dos vegetais pelo homem. Passou anos em meio a seringueiros do Acre, trabalhou com comunidades do Mato Grosso, do Vale do Ribeira (SP) e, mais recentemente, de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, ambas no Amazonas e próximas a São Gabriel da Cachoeira, considerando o padrão amazônico de distâncias. Desta vez, porém, a experiência foi bem diferente das outras.
A situação encontrada pelo pesquisador na Cabeça do Cachorro, onde nove de cada dez habitantes são indígenas, foi bem resumida nas palavras do tukano Pedro Fernandes Machado que abrem esta reportagem. Funcionário da Funai na cidade e representante do órgão na Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), onde Lin e sua equipe passaram por duas sabatinas, Pedro tem como marco temporal, ao falar em antes e depois, o surgimento do movimento indígena do alto e médio rio Negro, do qual ele foi um dos pioneiros no início dos anos 1980.
Na época, a principal reivindicação era a demarcação contínua das terras onde vivem hoje cerca de 45 mil indígenas em mais de 700 comunidades, pertencentes a 23 etnias e quatro famílias lingüísticas (veja mapa à dir.).
O desfecho da longa batalha na Justiça só veio em 1998, com a homologação de cinco grandes áreas indígenas, num total de 106 mil km2, que abrangem cerca de 90% do território de São Gabriel da Cachoeira, um dos mais extensos municípios do país - duas vezes e meia maior que o Estado do Rio de Janeiro.
Cultura estilhaçada
Fortalecidas pela experiência, as lideranças da região carregam hoje duas grandes bandeiras. Uma é o resgate da cultura tradicional, estilhaçada pelo longo histórico de escravidão e assimilação forçada à cultura dos brancos. Outra é a busca de modos sustentáveis de desenvolvimento para evitar o esvaziamento das comunidades à beira do rio Negro e de seus grandes afluentes Içana, Xié, Uaupés e Tiquié.
A população do núcleo urbano de São Gabriel mais que dobrou nos últimos 20 anos, com a migração principalmente de jovens em busca de educação ou descontentes com a falta de oportunidades no interior. Apesar da paisagem exuberante que encanta forasteiros, essa é uma das regiões mais pobres da Amazônia devido à natural acidez do solo e das águas, que não favorece a agricultura e a pesca.
Para tratar suas mazelas, o movimento indígena de São Gabriel da Cachoeira tem a educação como prioridade. Um número crescente de escolas com ensino diferenciado - com professores indígenas e instaladas nas comunidades - procura colar os cacos do que sobrou do patrimônio cultural e capacitar os jovens para projetos que possam trazer segurança alimentar e geração de renda.
A equipe do pesquisador de Botucatu chegou a São Gabriel da Cachoeira num momento de orgulho ainda mais acirrado - um dia depois do Dia Nacional do Índio.
Ali as celebrações se estenderam por mais alguns dias. Por causa dessa e de outras efemérides fortuitas, o grupo presenciou várias festividades e demonstrações de autoestima no período. A maioria protagonizada por crianças e jovens.
Ao lado de Lin estava o professor Ari de Freitas Hidalgo, da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), um dos principais parceiros no projeto, filho de mãe são-gabrielense e, portanto, bem familiarizado com a região. Completavam a equipe uma doutoranda e uma mestranda da Unesp de Botucatu, e dois alunos de iniciação científica, um da Ufam e outra também da Unesp. Mas a pesquisa, financiada por CNPq e Fapesp, envolverá muito mais gente (veja detalhes na pág. 21).
A ampulheta do projeto, com duração de três anos, já está em pé. E Lin ainda precisa obter o consentimento prévio informado das comunidades indígenas que pretende pesquisar. Regulamentado pela medida provisória 2.186-16 de 2001, o expediente é necessário para ter a autorização do Cgen, o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Só então ele poderá trabalhar sem risco de ser acusado de biopirataria. A tramitação no órgão, entretanto, leva cerca de seis meses. "Já informei o CNPq que vou precisar de uma prorrogação, para compensar esse tempo", justifica.
Primeiro encontro
Do tímido aeroporto de São Gabriel da Cachoeira, vamos direto para o campus do Instituto Federal do Amazonas, que oferece cursos profissionalizantes de nível médio. Quem nos recebe são o diretor-geral Elias Brasilino de Souza e o professor Rinaldo Sena, ambos brancos, mediadores do contato com as lideranças indígenas.
Meio pegos de surpresa, o tukano Pedro, da Funai, e Abrahão de Oliveira França, etnia Baré, da Foirn, acabaram ouvindo uma apresentação rápida do projeto. Eles estavam no local porque eram jurados do concurso de dança indígena que acontecia no ginásio da escola na manhã daquela terça-feira e não podiam demorar.
A ideia de Lin era consultar quatro comunidades no baixo rio Uaupés, como fora combinado com Rinaldo, natural de Manaus e grande conhecedor da região, que acompanharia a expedição. Os índios ouviram tudo com olhos baixos e expressão dura. Quando tomaram a palavra mostraram-se bem articulados e calejados. Resumiram de modo altivo e didático a organização da região, sua imensa diversidade étnica, o passado de abusos e experiências infelizes com pesquisadores.
"Rinaldo, vocês iam para as comunidades sem falar com a gente?", pergunta Abrahão, um pouco incrédulo por não saber previamente da chegada dos pesquisadores. "Claro que não, a ideia era justamente conversar com vocês antes", esclarece o professor, diligente. "Ah bom.
Porque um assunto desses precisa passar pela Foirn, senão já ia começar errado", replica o diretor-presidente da federação criada há 23 anos, que representa 63 associações e é o principal fórum de discussão da política indígena da região.
O encontro durou menos de uma hora e a conversa continuaria à tarde, na sede da Foirn. Uma coisa, porém, já estava certa: o roteiro de viagem seria radicalmente alterado. Isso porque consultar apenas comunidades no baixo rio Uaupés privilegiaria apenas uma das cinco regiões administrativas sob jurisdição da federação, onde prevalece a etnia Tukano. "Aqui no rio Negro a gente tem uma grande diversidade [de etnias], mas muitas coisas que a gente usa são iguais", explicou Abrahão.
O receio é que, no caso de a pesquisa resultar num medicamento, isso acabe beneficiando as etnias de só uma região, quando pode ocorrer de outros povos, como os Baré e os Baniwa (para citar apenas duas outras predominantes em outros lugares), também conhecerem bem e usarem a mesma planta que deu origem ao produto. "Isso pode trazer problema. É o que aconteceu com a pimenta Baniwa", compara com desgosto o líder.
Pimenta da discórdia
A especiaria tem gerado mal-estar entre os indígenas do alto e médio rio Negro.
O produto foi desenvolvido pelos Baniwa do alto Içana com o apoio do ISA (Instituto Socioambiental), ONG com longa e forte presença na região. Outras etnias sentiram-se prejudicadas por não terem participado do processo, alegando que a pimenta jiquitaia, na qual os Baniwa imprimiram sua marca, é amplamente usada por todos os povos do rio Negro (veja quadro à dir.).
Para evitar mais ressentimentos, Lin foi orientado a consultar pelo menos uma comunidade de cada uma das cinco regiões administrativas, que levam os nomes das calhas de seus respectivos rios: Tiquié, Uaupés, alto Negro e Xié, Içana e baixo Negro. O que, na prática, seria impossível de fazer somente nos quatro dias disponíveis pela equipe. O combinado, portanto, foi cumprir o trato nas três regiões mais próximas. Tiquié e Içana ficarão para uma segunda etapa. "Os pesquisadores geralmente calculam mal o tempo, porque não conhecem a região", explica Pedro.
A pimenta e a partilha
Diversos povos indígenas da região do rio Negro usam em sua culinária a jiquitaia, uma mistura de pimentas torradas e moídas. Há cerca de quatro anos, os índios baniwa imprimiram sua marca ao produto para vendê-lo em vários pontos do país, tal como já faziam com sua cestaria. A "Pimenta Baniwa" nasceu em meio ao projeto "Arte Baniwa", que contou com o apoio do ISA (Instituto Socioambiental). A iniciativa, porém, causou ressentimentos entre outras etnias, que alegam que a pimenta não é só dos Baniwa.
Comparar o caso da Pimenta Baniwa a um projeto de bioprospecção de medicamento é inapropriado, segundo o antropólogo Beto Ricardo, coordenador do Programa Rio Negro do ISA. "Os Baniwa estão vendendo uma pimenta e dizendo que são eles que fazem. Não patentearam o produto, não estão impedindo ninguém de fazer a pimenta. É uma marca de origem", afirma. "Não tem nada a ver com a prospecção de ativos da biodiversidade com conhecimento tradicional associado", acrescenta o antropólogo. O diretor-presidente da Foirn, Abrahão de Oliveira França, reconhece a natureza distinta dos dois casos, mas enfatiza que "o problema foi eles [os Baniwa] não terem exposto e discutido o projeto na Foirn [com lideranças de outras etnias]".
Apropriada ou não, a discussão exemplifica as dificuldades de lidar com conhecimento tradicional difuso em projetos de bioprospecção, um dos pontos frágeis da legislação brasileira. O caso mais emblemático envolveu o farmacologista Elisaldo Carlini, da Unifesp, em 2002, que estudava plantas medicinais em três comunidades indígenas Krahô no Tocantins. A pesquisa foi paralisada depois da divulgação de uma carta em que a associação Kapéy alegava que o conhecimento tradicional das plantas pertencia à etnia e que todas as 17 comunidades da associação deveriam ter sido consultadas, estipulando multa milionária. O caso foi parar na CPI da biopirataria, que absolveu os cientistas da acusação.
Entre 2006 e 2007, o Cgen (Conselho de Gestão do Patrimônio Genético) manteve aberta uma consulta pública sobre como reger a repartição de benefícios nos casos em que o conhecimento tradicional é compartilhado por mais de um grupo. A Unesp Ciência procurou representantes do órgão para saber se, quando e como mudanças na legislação serão implementadas, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
(texto imcompleto), em anexo pdf com a reportagem completa.
UNESP Ciência n. 9, jun 2010, p. 18-29
http://www.unesp.br/aci/revista/ed09/
Las noticias publicadas en el sitio Povos Indígenas do Brasil (Pueblos Indígenas del Brasil) son investigadas en forma diaria a partir de fuentes diferentes y transcriptas tal cual se presentan en su canal de origen. El Instituto Socioambiental no se responsabiliza por las opiniones o errores publicados en esos textos. En el caso en el que Usted encuentre alguna inconsistencia en las noticias, por favor, póngase en contacto en forma directa con la fuente mencionada.