From Indigenous Peoples in Brazil
Notícias
Sem laudo, investigação sobre índios pára
12/08/2007
Fonte: FSP, Brasil, p. A16
Sem laudo, investigação sobre índios pára
Antropólogos se recusam a fazer parecer que ateste se cintas-largas sabiam que cometiam crime no caso do massacre de garimpeiros
Em relatório ao Ministério Público, delegada da PF diz que, após dois anos, desiste de obter a avaliação; peça é fundamental ao julgamento
Elvira Lobato
Da sucursal do Rio
Dois anos após o indiciamento pela Polícia Federal de 23 índios cintas-largas e um funcionário da Funai pelo massacre de 29 garimpeiros, em Rondônia, ocorrido em 2004, a investigação emperrou por falta de laudo antropológico que ateste se os índios tinham ou não discernimento de que cometiam crime. A Polícia Federal não conseguiu antropólogos que se dispusessem a fazer o trabalho.
O laudo é peça fundamental para que os índios sejam levados a julgamento. Sem ele, o Ministério Público Federal até pode denunciar os acusados, mas os advogados de defesa conseguiriam facilmente trancar o processo judicial.
Há dois meses, a delegada da PF Alessandra Borba enviou um relatório ao Ministério Público Federal em que desiste de continuar na busca pelo laudo antropológico. O relatório descreve o fracasso dos contatos feitos desde maio de 2005, quando a Procuradoria da República devolveu os autos do inquérito à polícia para que fosse providenciado o laudo.
O principal empecilho, segundo a delegada, foi a resistência do antropólogo Antonio Dal Poz Neto, apontado por seus pares como o maior especialista na etnia cinta-larga do país. Ele negou-se a fazer o laudo e a orientar outros antropólogos que se dispuseram a fazê-lo, sob sua coordenação.
Em entrevista à Folha, por telefone, o antropólogo disse que tem uma filha adolescente para cuidar e não pode se afastar de Juiz de Fora (MG), onde é professor na universidade federal. ""A vida moderna tem coisas como paternidade responsável", disse. Ele discorda que seja o único com conhecimento suficiente sobre os cintas-largas para fazer o estudo.
Busca pelo laudo
A PF indiciou os acusados pelas mortes dos garimpeiros em 9 de abril de 2005. Quatro meses depois, o inquérito voltou à PF para que a delegada Alessandra Borba obtivesse os laudos antropológicos. São necessários dois laudos, segundo o Ministério Público Federal.
No relatório, a delegada diz que procurou a Associação Brasileira de Antropologia duas vezes, em 2005, para que indicasse profissionais e que a entidade prometeu fazer a indicação, mas não cumpriu a promessa.
Ainda em 2005, a delegada procurou a antropóloga Carmen Alvarenga Junqueira, da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), que, segundo o relatório, afirmou não ter contato com os cintas-largas desde 1989. A antropóloga recomendou à delegada procurar João Dal Poz Neto, que estudou a etnia por cerca de 20 anos. Na época, ele lecionava na Universidade Federal de Mato Grosso.
Em fevereiro deste ano, o atual presidente da associação, Luiz Roberto Oliveira, indicou os antropólogos Aloir Pacini e Maria da Fátima Machado, da UFMT, e Dal Poz Neto, como aptos a fazer os laudos.
Em reunião com a delegada, em abril, os antropólogos insistiram na presença de Dal Poz na equipe, e disseram que não poderiam, a princípio, assumir o encargo sem sua supervisão.
A delegada desistiu da busca após consultar a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, responsável pelas questões das comunidades indígenas, e ouvir que também seus antropólogos não poderiam fazer o laudo sem a supervisão de Dal Poz Neto, que, segundo a PF, recusou a incumbência todas as vezes em que foi procurado.
Constrangimento
O procurador da República em Ji-Paraná, Svamer Adriano Cordeiro, responsável pelo inquérito sobre o massacre dos garimpeiros, diz que a perícia dos antropólogos pode determinar o destino da eventual ação penal contra os índios, o que explicaria sua resistência.
Se o laudo concluir que os cintas-largas não têm consciência do crime praticado, eles, dificilmente, irão a júri.
Neste caso, os profissionais enfrentariam as críticas das famílias da vítimas. Se o parecer for no sentido contrário, haveria reação negativa das organizações não-governamentais defensoras dos índios.
""Seja qual for o resultado, o laudo trará descontentamento. Não ignoro que é uma missão de grande responsabilidade, passível de inúmeras críticas", afirma o procurador.
Cordeiro cogita recorrer aos antropólogos da Universidade Estadual de Rondônia para obter os laudos, mas adverte, de antemão, que a tarefa será difícil. Recentemente, um índio cinta-larga foi preso como mandante da tentativa de assassinato de um advogado.
O primeiro laudo antropológico obtido foi no sentido de que ele não tinha discernimento do crime.
Antropólogos preferem dar laudo à Justiça
Da sucursal do Rio
O presidente da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), Luiz Roberto Cardoso de Oliveira, diz que os antropólogos se sentiriam mais confortáveis se o pedido do laudo sobre os cintas-largas partisse da Justiça, e não do Ministério Público, que tem papel de acusação.
O procurador da República Svamer Adriano Cordeiro, que comanda as investigações sobre o massacre dos garimpeiros, diz que o Ministério Público Federal tem um papel duplo, pois ao mesmo tempo em que faz a acusação, tem o dever constitucional de defender os interesses dos índios.
Para a antropóloga Maria de Fátima Machado, indicada pela ABA como uma das profissionais aptas a fazer o laudo, não há antropólogo com conhecimento profundo sobre os cintas-largas, além de João Dal Poz Neto. ""Até hoje, eles têm imensa dificuldade de falar o português, e, por isso, é um trabalho difícil. Como eu nunca trabalhei com estes índios, sugeri a coordenação do Dal Poz. Senão, o trabalho pode levar anos para ser concluído."
Segundo a antropóloga, o importante para a produção do laudo é saber se a morte dos garimpeiros é entendida pela cultura indígena da mesma forma que pela nossa. Dal Poz diz que recusou fazer o laudo por problemas pessoais, e não pelo fato de poder ser usado na acusação.
Massacre está ligado à extração ilegal de diamante; 200 índios teriam participado
Da sucursal do Rio
O massacre dos garimpeiros está ligado à extração ilegal de diamante na área indígena dos cintas-largas. A legislação proíbe o garimpo em terra indígena, mas os próprios índios facilitam a exploração ilegal.
Cerca de 200 guerreiros indígenas teriam participado do massacre, no dia 7 de abril de 2004. Na época, os chefes declararam que eles mataram para defender o território, as mulheres e as crianças. "Quando um bandido entra na casa do branco, o branco mata o bandido. Assim é na nossa casa", afirmou à reportagem da Folha, na ocasião, o chefe João Bravo Cinta-Larga, uma das lideranças mais influentes da etnia.
O inquérito policial está sob segredo de Justiça, e é proibido o acesso aos depoimentos dos acusados, entre os quais lideranças como os caciques Oita Matina Cinta Larga e Nacoça Pio Cinta-Larga. O indiciamento foi por homicídio triplamente qualificado: por emboscada, com uso de tortura e ocultação de cadáveres. Dos 29 mortos, segundo a polícia, 26 corpos estavam com as mãos amarradas com cipó, o que indica que não tiveram chance de defesa.
Os índios atacaram um grupo de garimpeiros, que extraíam diamante sem autorização dos cintas-largas dentro da reserva. O primeiro a morrer no local foi o líder do grupo, Baiano. Os outros 26 foram amarrados e seriam levados até uma base da polícia, mas no caminho decidiu-se pela execução. Segundo um dos caciques, eles teriam entendido garimpeiros dizer que, depois de soltos, matariam os cintas-largas.
Um texto do procurador da República Reginaldo Trindade, de Porto Velho, especialista nas questões dos cintas-largas, diz que o garimpo ilegal de diamantes nas terras indígenas retoma com mais força a cada tentativa do governo federal de erradicá-lo. Após a morte dos garimpeiros, houve uma mega-operação do Estado, com participação das Forças Armadas. Em dezembro daquele ano, o garimpo estava parado, mas seis meses depois já havia máquinas e garimpeiros.
"O vácuo deixado pela deficiência do Poder Público vem sendo preenchido pelo crime organizado, em que políticos, servidores corruptos, atravessadores, empresários e multinacionais, ansiosos por lucrar às expensas do povo cinta-larga, alimentam o círculo vicioso", escreveu o procurador.
Frase
Seja qual for o resultado, o laudo trará descontentamento. Não ignoro que é uma missão de grande responsabilidade, passível de críticas
Svamer Adriano Cordeiro
procurador da República em Ji-Paraná
FSP, 12/08/2007, Brasil, p. A16
Antropólogos se recusam a fazer parecer que ateste se cintas-largas sabiam que cometiam crime no caso do massacre de garimpeiros
Em relatório ao Ministério Público, delegada da PF diz que, após dois anos, desiste de obter a avaliação; peça é fundamental ao julgamento
Elvira Lobato
Da sucursal do Rio
Dois anos após o indiciamento pela Polícia Federal de 23 índios cintas-largas e um funcionário da Funai pelo massacre de 29 garimpeiros, em Rondônia, ocorrido em 2004, a investigação emperrou por falta de laudo antropológico que ateste se os índios tinham ou não discernimento de que cometiam crime. A Polícia Federal não conseguiu antropólogos que se dispusessem a fazer o trabalho.
O laudo é peça fundamental para que os índios sejam levados a julgamento. Sem ele, o Ministério Público Federal até pode denunciar os acusados, mas os advogados de defesa conseguiriam facilmente trancar o processo judicial.
Há dois meses, a delegada da PF Alessandra Borba enviou um relatório ao Ministério Público Federal em que desiste de continuar na busca pelo laudo antropológico. O relatório descreve o fracasso dos contatos feitos desde maio de 2005, quando a Procuradoria da República devolveu os autos do inquérito à polícia para que fosse providenciado o laudo.
O principal empecilho, segundo a delegada, foi a resistência do antropólogo Antonio Dal Poz Neto, apontado por seus pares como o maior especialista na etnia cinta-larga do país. Ele negou-se a fazer o laudo e a orientar outros antropólogos que se dispuseram a fazê-lo, sob sua coordenação.
Em entrevista à Folha, por telefone, o antropólogo disse que tem uma filha adolescente para cuidar e não pode se afastar de Juiz de Fora (MG), onde é professor na universidade federal. ""A vida moderna tem coisas como paternidade responsável", disse. Ele discorda que seja o único com conhecimento suficiente sobre os cintas-largas para fazer o estudo.
Busca pelo laudo
A PF indiciou os acusados pelas mortes dos garimpeiros em 9 de abril de 2005. Quatro meses depois, o inquérito voltou à PF para que a delegada Alessandra Borba obtivesse os laudos antropológicos. São necessários dois laudos, segundo o Ministério Público Federal.
No relatório, a delegada diz que procurou a Associação Brasileira de Antropologia duas vezes, em 2005, para que indicasse profissionais e que a entidade prometeu fazer a indicação, mas não cumpriu a promessa.
Ainda em 2005, a delegada procurou a antropóloga Carmen Alvarenga Junqueira, da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), que, segundo o relatório, afirmou não ter contato com os cintas-largas desde 1989. A antropóloga recomendou à delegada procurar João Dal Poz Neto, que estudou a etnia por cerca de 20 anos. Na época, ele lecionava na Universidade Federal de Mato Grosso.
Em fevereiro deste ano, o atual presidente da associação, Luiz Roberto Oliveira, indicou os antropólogos Aloir Pacini e Maria da Fátima Machado, da UFMT, e Dal Poz Neto, como aptos a fazer os laudos.
Em reunião com a delegada, em abril, os antropólogos insistiram na presença de Dal Poz na equipe, e disseram que não poderiam, a princípio, assumir o encargo sem sua supervisão.
A delegada desistiu da busca após consultar a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, responsável pelas questões das comunidades indígenas, e ouvir que também seus antropólogos não poderiam fazer o laudo sem a supervisão de Dal Poz Neto, que, segundo a PF, recusou a incumbência todas as vezes em que foi procurado.
Constrangimento
O procurador da República em Ji-Paraná, Svamer Adriano Cordeiro, responsável pelo inquérito sobre o massacre dos garimpeiros, diz que a perícia dos antropólogos pode determinar o destino da eventual ação penal contra os índios, o que explicaria sua resistência.
Se o laudo concluir que os cintas-largas não têm consciência do crime praticado, eles, dificilmente, irão a júri.
Neste caso, os profissionais enfrentariam as críticas das famílias da vítimas. Se o parecer for no sentido contrário, haveria reação negativa das organizações não-governamentais defensoras dos índios.
""Seja qual for o resultado, o laudo trará descontentamento. Não ignoro que é uma missão de grande responsabilidade, passível de inúmeras críticas", afirma o procurador.
Cordeiro cogita recorrer aos antropólogos da Universidade Estadual de Rondônia para obter os laudos, mas adverte, de antemão, que a tarefa será difícil. Recentemente, um índio cinta-larga foi preso como mandante da tentativa de assassinato de um advogado.
O primeiro laudo antropológico obtido foi no sentido de que ele não tinha discernimento do crime.
Antropólogos preferem dar laudo à Justiça
Da sucursal do Rio
O presidente da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), Luiz Roberto Cardoso de Oliveira, diz que os antropólogos se sentiriam mais confortáveis se o pedido do laudo sobre os cintas-largas partisse da Justiça, e não do Ministério Público, que tem papel de acusação.
O procurador da República Svamer Adriano Cordeiro, que comanda as investigações sobre o massacre dos garimpeiros, diz que o Ministério Público Federal tem um papel duplo, pois ao mesmo tempo em que faz a acusação, tem o dever constitucional de defender os interesses dos índios.
Para a antropóloga Maria de Fátima Machado, indicada pela ABA como uma das profissionais aptas a fazer o laudo, não há antropólogo com conhecimento profundo sobre os cintas-largas, além de João Dal Poz Neto. ""Até hoje, eles têm imensa dificuldade de falar o português, e, por isso, é um trabalho difícil. Como eu nunca trabalhei com estes índios, sugeri a coordenação do Dal Poz. Senão, o trabalho pode levar anos para ser concluído."
Segundo a antropóloga, o importante para a produção do laudo é saber se a morte dos garimpeiros é entendida pela cultura indígena da mesma forma que pela nossa. Dal Poz diz que recusou fazer o laudo por problemas pessoais, e não pelo fato de poder ser usado na acusação.
Massacre está ligado à extração ilegal de diamante; 200 índios teriam participado
Da sucursal do Rio
O massacre dos garimpeiros está ligado à extração ilegal de diamante na área indígena dos cintas-largas. A legislação proíbe o garimpo em terra indígena, mas os próprios índios facilitam a exploração ilegal.
Cerca de 200 guerreiros indígenas teriam participado do massacre, no dia 7 de abril de 2004. Na época, os chefes declararam que eles mataram para defender o território, as mulheres e as crianças. "Quando um bandido entra na casa do branco, o branco mata o bandido. Assim é na nossa casa", afirmou à reportagem da Folha, na ocasião, o chefe João Bravo Cinta-Larga, uma das lideranças mais influentes da etnia.
O inquérito policial está sob segredo de Justiça, e é proibido o acesso aos depoimentos dos acusados, entre os quais lideranças como os caciques Oita Matina Cinta Larga e Nacoça Pio Cinta-Larga. O indiciamento foi por homicídio triplamente qualificado: por emboscada, com uso de tortura e ocultação de cadáveres. Dos 29 mortos, segundo a polícia, 26 corpos estavam com as mãos amarradas com cipó, o que indica que não tiveram chance de defesa.
Os índios atacaram um grupo de garimpeiros, que extraíam diamante sem autorização dos cintas-largas dentro da reserva. O primeiro a morrer no local foi o líder do grupo, Baiano. Os outros 26 foram amarrados e seriam levados até uma base da polícia, mas no caminho decidiu-se pela execução. Segundo um dos caciques, eles teriam entendido garimpeiros dizer que, depois de soltos, matariam os cintas-largas.
Um texto do procurador da República Reginaldo Trindade, de Porto Velho, especialista nas questões dos cintas-largas, diz que o garimpo ilegal de diamantes nas terras indígenas retoma com mais força a cada tentativa do governo federal de erradicá-lo. Após a morte dos garimpeiros, houve uma mega-operação do Estado, com participação das Forças Armadas. Em dezembro daquele ano, o garimpo estava parado, mas seis meses depois já havia máquinas e garimpeiros.
"O vácuo deixado pela deficiência do Poder Público vem sendo preenchido pelo crime organizado, em que políticos, servidores corruptos, atravessadores, empresários e multinacionais, ansiosos por lucrar às expensas do povo cinta-larga, alimentam o círculo vicioso", escreveu o procurador.
Frase
Seja qual for o resultado, o laudo trará descontentamento. Não ignoro que é uma missão de grande responsabilidade, passível de críticas
Svamer Adriano Cordeiro
procurador da República em Ji-Paraná
FSP, 12/08/2007, Brasil, p. A16
As notícias publicadas no site Povos Indígenas no Brasil são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos .Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.