From Indigenous Peoples in Brazil

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Digam que nós existimos e mantemos a nossa cultura

09/09/2010

Autor: Rachel Moreno

Fonte: Revista Caros Amigos - http://carosamigos.terra.com.br/



Dez Nações Indígenas, mais os Kalungas (Quilombolas), a Tribo do Arco-iris, indigenistas, técnicos e alguns turistas mais ousados se juntaram em uma semana de intensa vivência na Chapada dos Veadeiros, Goiás, em fins de julho de 2010, no 10 Encontro de Povos Tradicionais e 4ª Aldeia Multiétnica.

No dia-a-dia, muito canto, muita dança, rodas de prosa, oficinas e muita conversa informal, em vários idiomas se entrecruzando, eventualmente se ignorando mas certamente se entendendo.

O fenômeno político mais interessante se dava no Encontro dos Povos, no mesmo local e pauta, destas nações, normalmente dispersas pelo país. "Não podemos tudo papai-Funai, mamãe-Funai", Temos que juntar e mostrar nossas forças - dizia o cacique Krahô, centrando a solução dos problemas comuns na ação conjunta das nações indígenas.

Uns concordavam, outros acrescentavam relatos, idéias, situações. Diversas nações indígenas pensavam os seus problemas comuns, e comungavam. O que nasceu dali, o futuro dirá.

Uma prefeitura a cada dia
Diante da multiplicidade de nações presentes, convencionou que cada dia ficasse sob a condução de uma delas, que determinava o ritual, até passar a gestão, às 6 horas da manhã seguinte, a outra nação presente no Encontro.

O dia começa cedo. Às 4h30 ouviam-se os primeiros cantos, na "praça", onde se plantou um tronco, à guisa de totem. Ao lado, uma fogueira, para os mais friorentos ou para alguns ainda deitados. Dormia quem queria e podia.

Os Krahôs optaram por representar, ao longo do dia, o ritual de iniciação dos rapazes. De madrugada, a saudação aos espíritos.

Os Caiapós decidiram mostrar o ritual de dar o nome a uma criança. E, assim, cada povo decidia o que fazer, o que apresentar.

Às 6 horas, o ritual de passagem à outra nação que iniciava o seu canto e dança, entoado por cerca de duas horas, quando se dirigiam então para o café da manhã.

Depois do café, as oficinas. Na praça, não raro se reuniam os caciques de nações distintas, discutindo seus problemas.

Nenhuma mulher indígena presente, nessas conversas. O mesmo, me certifiquei, acontecia nas aldeias. Elas, "em casa", cuidando da lida da vida, enquanto eles discutem os grandes problemas e as decisões políticas.

E vocês, então não participam? - perguntei a uma delas.

Para descobrir que, depois de horas de conversa no pátio, os homens voltavam para a oca e contavam a decisão tomada à mulher.

Estas conversavam rápida e informalmente entre si. Caso a decisão tomada não fosse de seu agrado, os homens voltavam ao pátio e retomavam a conversa, até chegar a uma decisão que contasse com a aprovação das mulheres...

Em nossa Aldeia MultiÉtnica, enquanto isso, rolavam as oficinas de reciclagem de lixo, de auto-exame ginecológico e sexualidade, de pintura corporal e, a partir do segundo dia, de exposição e venda de artesanato indígena, acompanhados no último dia, pela exposição e venda de produtos trazidos pelos Quilombolas - paçoca feita de gergelim e tapetes de retalhos.

As rodas de prosa da tarde
Almoço e, à tarde, as tais rodas de prosa, na oca central. Horário solto e maneiro para começar. Colocados os bancos em círculo, algum dos coordenadores do evento tentava articular, chamar, enviar mensageiros para agrupar. Até finalmente descobrir que só mesmo dando a voz e o microfone a um índio, que chamava ou cantava em sua língua, para que só então os demais fossem chegando, um por um, se não estivessem envolvidos em outra atividade, e tivessem interesse no tema. Vem-quem-quer, a chamado de quem interessa.

As rodas de prosa terminavam lá pelas 16 horas, também por não ousar enfrentar a concorrência da cantoria e dança na praça, onde absolutamente todos queriam estar presentes. Os temas discutidos foram a perda da biodiversidade e de muitas das sementes tradicionais dos povos indígenas, a educação diferenciada, a violência contra as mulheres nas aldeias e a Lei Maria da Penha, a usina de Belo Monte.

A perda da biodiversidade
Terezinha, da Embrapa, fez uma exposição sobre o problema da redução e desaparecimento de sementes tradicionais dos povos indígenas, falando também do risco das sementes modificadas, até chegar à Terminator, que não poderia ser aproveitada para uma próxima semeadura, obrigando o agricultor a comprar sementes a cada novo plantio. Falou também da preocupação diante do resultado da pesquisa recente da Funasa, sobre a saúde dos indígenas, revelando uma tendência à obesidade, entre os homens, convivendo com um índice de anemia entre as mulheres.

Eu já sabia, por conversas anteriores, que a caça, em terras cercadas por fazendas, escasseia, quando não desaparece. Esta história me foi revelada quando, anos atrás, numa conversa com Cacique Aleixo Porrí, que me convidava a visitá-los na aldeia dos Krahôs, sobre o que levar de presente, ele me surpreendeu com "leva um boi, Rachel, Porque a caça acabou".

Descobri também, conversando com as mulheres presentes ao encontro, que a alimentação e os hábitos culinários também haviam mudado. Se, antes, o índio chegava com o peixe recém-pescado e acocorava-se fazendo a fogueira para assá-lo, enquanto ela, ao seu lado, ralava a mandioca para fazer o biju que o acompanharia, hoje ela gasta boa parte do dia cozendo sozinha o feijão, ao arroz, a comida, nas panelas dentro de casa.

Somei mentalmente aos problemas apontados pela pesquisa referida por Terezinha, o alongamento da jornada doméstica das mulheres e a maior segregação a que isto levava...

Fiquei assuntando sobre as razões da anemia das mulheres - mudança da dieta, sobrecarga de trabalho na aldeia enquanto os homens eventualmente vão à cidade, interiorização de um padrão de beleza?... Continuei sem saber, e o assunto não veio à tona, na roda de prosa.

Voltando à roda de prosa, depois de algumas intervenções, P., índio da região do Acre, cumprimentou e questionou a Embrapa:

"Vocês mandam sementes, mas precisam prestar atenção no que mandam". E contou alguns casos ilustrativos.

Contou do envio de uma semente de melancia que, na primeira vez, deu uma safra belíssima. Tornou a ser plantada, mas, na seguinte, ficou longe do resultado inicial, enquanto a semente original ficava perdida por não ter sido utilizada por este tempo.

Contou também que outra das sementes enviada pela Embrapa simplesmente não permitiu um segundo plantio.

A descrição era exatamente o que T. havia descrito, para se referir às sementes modificadas e ao Terminator... Ela então lhe pediu que os ajudasse a descrever a situação, enviando o relato à Embrapa.

Vicente tomou da palavra pra contar do projeto de Segurança Alimentar.

Relatou que o governo, antes publicava editais para compra de grandes quantidades de alimentos visando compor as merendas e cestas básicas, que só poderiam ser atendidas por grandes fazendeiros, Agora é comprado em quantidades bem menores, de modo a favorecer a agricultura familiar, bem como os índios.

Assim, explicava ele "se você tem milho a mais do que pode comer, em sua aldeia, e seu vizinho não tem, a Embrapa compra o excedente de milhos de você, mesmo que seja um pé, e você pode dar ao seu vizinho, que nada paga por isso. Ou o governo paga e compra o seu excedente, que usa para suprir a distribuição em creches, asilos, abrigos e todos os demais projetos sociais".

Educação diferenciada
A educação diferenciada responde a uma reivindicação dos povos indígenas. Querem que eles e seus filhos aprendam tanto o português quanto a sua língua nativa e que seja também re-transmitida a sua cultura.

Mas, a partir daí, uma diversidade de formas de ensino se apresenta e parece haver ainda problemas decorrentes a resolver.

Algumas aldeias têm que enviar os seus filhos para a cidade próxima, onde fica a escola. A ida à cidade significa o distanciamento do dia-a-dia da aldeia, dos hábitos e da cultura de seu povo.

"De que adianta meu filho aprender 'meu pai caça, minha mãe rala mandioca', se ele nunca vê isso acontecer?!"

A naturalização desta divisão sexual do trabalho chama a minha atenção, mas não a deles - e, afinal, estamos diante de outra cultura. Naturalmente, me calo - o papo vai muito além deste problema.

Outro índio toma da palavra para contar que, no caso dele, a escola fica dentro da aldeia.

Mas eis que surge outro problema apontado por um terceiro. Sim, a escola fica dentro da aldeia, mas os professores kupen (não-indígenas) querem ali lecionar. E dizem conhecer a língua daquela nação.

"Mas tem problema. Por exemplo, água, na minha língua, se diz "u" - e solta um som gutural, que fica entre o "u" e o "i". O professor kupen, quando vai escrever a palavra, escreve "i". E as crianças aprendem a ler "i". Então, o que acontece? Muda a nossa língua! Tem que ser professor indígena!"

Paro para pensar na justeza da demanda. Mas parece que ela só, não basta.

"Na minha aldeia" diz outro, "tem professor índio e professor kupen. Mas precisa não só aprender as coisas na escrita, tem que 'fazer pesquisa' na aldeia. Tem que estar junto na caça, na pesca, na festa. Tem que aprender a cultura, viver a cultura, além de aprender na escola".

Outro ainda intervém para reclamar: "quando tem festa na aldeia, a gente quer as crianças junto. Mas o professor diz 'não pode - hoje não é feriado, é dia letivo'. Como vai aprender a cultura se não está lá, junto, vivendo as festas?!"

Saio de lá, convencida de que não só o calendário letivo nas escolas das aldeias tem que mudar, mas que o nosso calendário letivo teria que incorporar o conhecimento e respeito às datas e festividades importantes dos povos indígenas...

Comento isso com S. que trabalha há anos na FUNAI, na carona de volta para Brasília. E outro lado surge na conversa.

"Mas, minha filha, o professor indígena não tem o mesmo respeito pelo calendário, pela carga horária, e faltam por uma série de motivos. Se hoje vai chover, falta! Se morreu uma formiga, é motivo para falta! Como dar conta da matéria, como querem ensinar e aprender, desta maneira!? O ensino fica prejudicado!"

Distanciamento ou proximidade entre escola e aldeia, produtividade, estilo de ensino, conteúdo, carga horária, cultura, ensino bilingue, pronúncia, vivência de campo, festa, respeito (ou desculpa esfarrapada) à morte da formiga, calendário, professor kupen ou indígena... a solução não é fácil, e merece alguns ajustes.

A vez e a voz das mulheres
Foi só a partir do ano passado que a presença das mulheres indígenas se fez mais massiva a este encontro. E foi só a partir deste ano que se pensou uma programação específica que fosse de seu interesse.

Nesta programação, a oficina sobre sexualidade e auto-exame ginecológico, que Jucinete e eu realizamos, pelo Coletivo Feminista de Sexualidade e Saúde (constando na programação, por engano ou cautela como "coletivo feminino de saúde da mulher"), a roda de conversa sobre o Projeto das Avós, a ser apresentado pela Maria Amélia e a discussão sobre a Lei Maria da Penha, a pedido de Creusa Krahô.

Violência de gênero
De repente, um dia de roda de prosa só de mulheres. A primeira (e única) convocada por uma mulher indígena - Creusa, da etnia Krahô. Creusa está terminando a sua formação como agente de saúde em Brasília, e divide seu tempo entre a aldeia e o curso, na capital. Um dia, participou de um debate sobre a Lei Maria da Penha.

Observando o cotidiano nas aldeias, deu-se conta do aumento e da impunidade da violência de gênero, e quer "trazer a Lei Maria da Penha para as aldeias". O seu relato passava por uma descrição do cotidiano das mulheres - sempre ocupadas com alguma tarefa, sempre sabendo onde foi guardada tal ou qual coisa, nunca descansando como ocorria com os homens. E, o mais grave era a percepção de que muitos homens bebiam, agrediam suas mulheres e que o cacique não mais tinha a autoridade de antigamente, quando podia admoestar o marido, ou mesmo sugerir a separação do casal, e ser acatado.

Creusa socializava e informação e agendava uma reunião em sua aldeia, para conversar sobre a proposta, em sua língua natal, com todas as mulheres que quisessem lá comparecer. Enquanto falávamos, uma roda de homens se formava ao redor da nossa, ouvindo-nos em silêncio.

Falaram muitas mulheres, de diversas nações. Para dizer do alcoolismo de muitos homens, da impunidade da violência contra as mulheres, que crescia, e declarando que "queriam a Lei Maria da Penha".

Coordenando esta roda de prosa, respondi ao questionamento de uma delas, esclareci como surgiu a lei e disse-lhes de minha sensação de que as presentes que pleiteavam a aplicação da lei, pareciam estar fazendo-o na esperança de simplesmente atemorizar os homens violentos e deter a violência com a simples ameaça da aplicação da lei.

Disse-lhes que muitas mulheres kupen também pensavam da mesma forma, mas que a lei tinha vindo para aumentar o rigor da punição e instaurar medidas protetivas. Que outras iniciativas (mulheres da paz, promotoras populares), entre nós, atuavam mais no sentido de esclarecer e prevenir a violência, e que valeria a pena elas tomarem contato com isso, e decidir se não seria mais caso de prevenção do que de punição.

As falas que se seguiram à minha enfatizaram a necessidade da lei e da punição. Relatou-se o caso de um índio que, alcoolizado, matou a sua mulher, retaliando-a.

A irmã de um cacique, seguida de outra, tomaram outro rumo, contestando a conveniência de se "importar a lei dos brancos" para as aldeias, e enfatizando a importância de se reforçar a autoridade dos caciques.

Creusa retomou o discurso, mostrando que as tentativas anteriores foram infrutíferas e que urgia fazer algo para inibir a violência.

De repente, um índio pediu a palavra. Tomando do microfone, identificou-se como cacique de sua aldeia e iniciou um longo discurso em que, em síntese, criticava a iniciativa, dizia que em sua aldeia o problema, quando porventura surgisse, era resolvido por ele; questionando a adequação da lei ("falaram conosco antes de fazer a lei? Em quantas línguas expuseram a tal Maria da Penha?") e declarando-se disposto a ajudar a resolver os problemas dos"parentes" nas aldeias onde havia tal necessidade.

O tom, claramente, era de bronca.

Duas falas rápidas "nossas" justificando a necessidade da discussão, diante da grandeza do problema, foram seguidas de mais duas intervenções de mulheres indígenas.

A primeira, para reiterar a existência da violência na aldeia, a sua não-resolução e impunidade, e terminando com "eu quero a Lei Maria da Penha na aldeia!"

A segunda, da própria Creusa, dizendo que ignorou a fala do cacique, já que a conversa, ali, era com as mulheres. E tornando a agendar o encontro nas aldeias, para aprofundar a discussão sobre a trazer e eventuais adaptações da lei para elas.

Fim do encontro
No ultimo dia, fomos à cidade de São Jorge, distante 8 km de onde estávamos. Os Krahôs foram correndo e levando toras (troncos de árvore) no ombro. Outros foram acompanhando, correndo ou andando. Alguns ainda, de ônibus, ou carro.

O grande palco com público e arquibancadas a céu aberto, os índios se revezavam mostrando os cantos e danças de suas nações. E a mensagem, explicitada de viva voz pelo cacique-apresentador, era só uma: digam a todos que nós existimos, sim, e que temos - e preservamos - a nossa cultura.

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