De Pueblos Indígenas en Brasil
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Câmara de Conciliação encerra trabalhos sem solução e Lei 14.701 continua acirrando conflitos

11/07/2025

Fonte: CIMI - https://cimi.org.br



Criada sob o falso pretexto de garantir segurança jurídica e estabilidade fundiária, a Lei 14.701 foi promulgada em 28 de dezembro de 2023, após o Congresso Nacional derrubar os vetos presidenciais feitos ao então Projeto de Lei (PL) 2903/2023. A norma foi chamada de "Lei do Marco Temporal" por ter institucionalizado um marco no tempo (5 de outubro de 1988) para demarcação das terras indígenas, ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha declarado a tese inconstitucional em setembro do mesmo ano, no Tema 1031, de repercussão geral. Quase dois anos depois de sua promulgação, a lei continua em vigor apesar de sua flagrante inconstitucionalidade e tem sido usada para barrar a regularização dos territórios, negar direitos originários assegurados pela Constituição Federal brasileira e incentivar a invasão das terras indígenas.

Sem efetividade e com conflitos territoriais em crescente escala, organizações indígenas e indigenistas, partidos políticos e instituições recorreram à Suprema Corte por meio de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) questionando a lei. Por meio deste recurso jurídico, apresentaram subsídios técnicos e jurídicos e apontaram violações dos direitos originários. Além disso, apontaram divergências com o entendimento já consolidado pela Corte no caso de Repercussão Geral (RE 1.017.365/SC) do Tema 1031, e a violação de acordos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, a exemplo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

"Sem efetividade e com conflitos territoriais em crescente escala, organizações indígenas e indigenistas, partidos políticos e instituições recorreram à Corte"

A manobra do Congresso Nacional, composto em sua maioria de parlamentares anti-indígenas e ruralistas, escancara os reais motivos da promulgação da Lei 14.701: barrar as demarcações das terras indígenas e abrir os territórios para invasão, desmatamento, e exploração minerária, do agro e do hidronegócio.

No STF, o ministro Gilmar Mendes, relator de cinco ações que questionam a validade da norma, ao invés de suspendê-la, abriu um suposto diálogo com parlamentares, ruralistas, União, entidades civis e representantes indígenas. Assim, em 5 de agosto de 2024, ocorre a primeira reunião da Comissão Especial de Conciliação designada pelo ministro com o objetivo de "discutir a aplicação da Lei 14.701/2023, mediar conflitos e conciliar a aplicação do marco temporal, ignorando sua inconstitucionalidade", como argumenta a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

"Ao invés de suspender a norma considerada inconstitucional pela Corte, ministro Gilmar Mendes cria a Câmara de Conciliação"

Com trâmites pouco esclarecidos, sem metodologia ou objeto definidos, após a segunda audiência entidades de representação indígena e indigenistas deixaram a Câmara de Conciliação, por entenderem que "direitos indígenas não se negociam e nem estão à venda". A Apib e organizações de apoio à causa indígena se retiraram "após o Supremo não atender às condições de participação dos indígenas na Câmara, além de ignorar os pedidos do movimento indígena nas ações que discutem a lei no STF, entre elas, a suspensão da Lei 14.701 e o reconhecimento da inadequação da criação da Comissão de Conciliação" para tratar da proteção dos direitos indígenas.

Os povos indígenas apontam que a lei é inconstitucional e que não há negociação possível sobre ela. Por isso, precisa ser imediatamente suspensa. "A conciliação está sendo conduzida com premissas equivocadas, desinformadas e pouco aberta a um verdadeiro diálogo intercultural", destaca um trecho da carta lida por Maria Baré, liderança indígena do Amazonas e uma das representantes da Apib à mesa no dia em que as entidades deixaram a conciliação.

Por outro lado, ao conduzir monocraticamente o processo e apresentar uma proposta de lei alternativa, o ministro Gilmar Mendes exerce um papel inusitado de intermediário entre os Três Poderes, uma espécie de "articulador político" com poder de legislar, e não mais um "guardião da Constituição". A manobra adotada pelo ministro tem sofrido fortes críticas de juristas e estudiosos do direito.

"O ministro exerce um papel inusitado de intermediário entre os Três Poderes, uma espécie de 'articulador político' com poder de legislar e não mais um 'guardião da Constituição'"

Acabou a negociação

Sem a presença dos indígenas, depois de quase um ano de reuniões infrutíferas, a Câmara de Conciliação foi dada por encerrada pelo ministro Gilmar Mendes no dia 23 de junho.

"A mesa de negociação era absolutamente desnecessária, dado que a discussão sobre a temática já havia sido superada pela Corte, quando em setembro de 2023 o plenário do Supremo decidiu que o marco temporal é inconstitucional e reafirmou o caráter originário dos direitos indígenas", aponta o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto.

O período foi marcado por ampla mobilização popular. Em Brasília, centenas de indígenas marcharam pela Esplanada dos Ministérios, realizaram cantos e rezas na Praça dos Três Poderes, e protocolaram documentos aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Dos territórios, fizeram ecoar o "não ao marco temporal" que ultrapassou as fronteiras do país.

"A mesa de negociação era absolutamente desnecessária, dado que o Supremo já decidiu que o marco temporal é inconstitucional"

Quase um ano depois, sem nitidez sobre o que iria se conciliar, quais seriam os pontos em discussão e o que poderia ser concretamente alterado na proteção dos direitos indígenas, a Câmara se encerra "sem nenhuma resposta concreta, além de paralisar todas as demarcações de terras indígenas no país, contribuindo diretamente, por isso mesmo, com o aumento das invasões e a violência nos territórios", aponta o secretário executivo do Cimi, Luis Ventura.

Na prática, não está claro qual foi o resultado da Câmara de Conciliação, assim como não há clareza sobre como se darão os trâmites após o encerramento das audiências da mesa. O certo é que ela permitiu a manutenção da Lei 14.701/2023, e essa sim teve impactos concretos sobre a vida dos povos indígenas.

"Não está claro qual foi o resultado da Câmara, assim como não há clareza sobre como se darão os trâmites após o encerramento das audiências da mesa"

No início do ano, em fevereiro, o gabinete do ministro Gilmar Mendes apresentou uma minuta de proposta legislativa que previa a retirada do marco temporal da Lei 14.701. Porém, o departamento jurídico da Apib aponta que o "texto possui ao menos dez retrocessos aos direitos indígenas". Listou na publicação a "exploração em terras indígenas, mineração, consulta indígena enfraquecida, mudança nas demarcações, criminalização de retomadas, indenização de ocupantes não-indígenas, interferência de Estados e Municípios, interferência de proprietários rurais, indenizações mais lentas e limite para revisão de terras indígenas".

Prevendo não haver resultado, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assegurou às lideranças Pataxó e Tupinambá em audiência (no dia 12 de março de 2025), que não era possível aguardar indefinidamente essa conciliação. "Há muitos interesses envolvidos e talvez não exista uma conciliação. Se não houver conciliação, vai-se para o julgamento. É isso que eu disse aos meus ex-colegas do Supremo Tribunal Federal, que nós precisamos resolver a situação. Não podemos mais aguardar", disse Lewandowski.

"Há muitos interesses envolvidos e talvez não exista uma conciliação. Se não houver conciliação, vai-se para o julgamento"

Na avaliação da Apib, a Câmara de Conciliação se tornou um espaço ilegítimo e inconstitucional. A articulação aponta, ainda, a falta de resultados concretos para os povos indígenas e que não houve avanço real na garantia de demarcação de terras ou na proteção dos territórios contra a tese do marco temporal. Afirma também que a mesa de conciliação não produziu medidas efetivas para garantir direitos já previstos na Constituição. E que, pelo contrário, a tentativa de "conciliar" pode resultar em acordos que legitimem ocupações ilegais ou retrocessos em direitos constitucionais.

Para as lideranças indígenas, a Câmara de Conciliação acabou sendo capturada por interesses ruralistas e de governos estaduais, gerando pressão para conciliação de direitos inconciliáveis, como o direito originário à terra em detrimento à titulação irregular de propriedades. "A câmara é um espaço inconstitucional que tenta negociar os direitos indígenas e realizar uma conciliação forçada", afirma o coordenador executivo da Apib, Dinamam Tuxá.

"A câmara é um espaço inconstitucional que tenta negociar os direitos indígenas e realizar uma conciliação forçada"

A falta de transparência sobre o objeto do debate e da conciliação, sem uma metodologia adequada que atenda a diversidade cultural do Brasil e a autodeterminação dos povos, tem o potencial de gerar danos irreparáveis, além de abrir precedentes para a retomada de discussões sobre temas já determinados pela Corte no processo de repercussão geral, gerando enorme insegurança e instabilidade jurídica, aponta o assessor jurídico do Cimi, Rafael Modesto.

Na avaliação da jurista e advogada Deborah Duprat, "essa é a questão mais grave que o movimento indígena vive desde 1988. Temos um projeto absolutamente neutralizador das conquistas da Constituinte. O que eles estão discutindo [na mesa] são estratégias de neutralizar a demarcação das terras indígenas - e, no final, de neutralizar as próprias terras indígenas".

"Essa é a questão mais grave que o movimento indígena vive desde 1988. Temos um projeto absolutamente neutralizador das conquistas da Constituinte"

A Câmara de Conciliação serviu para atender às pressões políticas e interesses daqueles que querem tomar de assalto as terras indígenas, ao invés de consolidar garantias constitucionais dos povos indígenas. Por isso, o movimento indígena "defende que o STF avance na efetivação das decisões já tomadas e sem abrir espaço para retrocessos, a exemplo da inconstitucionalidade definitiva da tese do marco temporal, da imediata declaração de inconstitucionalidade da Lei 14.701, e a extinção do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 717/2024". Esse projeto busca sustar a homologação de terras indígenas já demarcadas e, o mais grave, suspender o artigo 2o do Decreto 1775/1996, que regulamenta o processo administrativo de demarcação.

"A Câmara de Conciliação serviu para atender às pressões políticas e interesses daqueles que querem tomar de assalto as terras indígenas"

Lei 14.701 do marco temporal segue vigente

Aprovada pelo Congresso Nacional em represália à decisão do STF no Tema 1031, de repercussão geral, a Lei 14.701/2023 segue vigente e causando graves retrocessos aos direitos dos povos indígenas. Durante a Câmara de Conciliação, todas as demarcações de terras indígenas foram paralisadas, algumas sendo inclusive revertidas, como Morro dos Cavalos e Toldo Imbu, ambas em Santa Catarina, por meio do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 717/2024.

Para o ministro Lewandowski, a vigência da lei tornaria novos atos de demarcação inseguros. "A demarcação não pode avançar enquanto o STF não decidir quem tem razão: se ele mesmo, o Supremo Tribunal Federal, ou se essa lei editada pelo Congresso Nacional que reconhece o marco temporal", afirmou em audiência com lideranças Pataxó e Tupinambá. Na oportunidade, ele informou que o governo federal não emitirá novas portarias enquanto o STF não analisar a constitucionalidade da Lei do Marco Temporal.

"O governo federal não emitirá novas portarias enquanto o STF não analisar a constitucionalidade da Lei do Marco Temporal"

No entendimento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), "todas as terras indígenas que se encontram em fase administrativa anterior à regularização da mesma se encontram potencialmente afetadas pela Lei 14.701/2023". Segundo o órgão indigenista, "304 procedimentos de demarcação se encontram em fases anteriores à regularização, sendo, portanto, afetados de formas diversas pela Lei 14.701/2023". As informações foram obtidas pelos Cimi por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), "a Lei 14.701/2023 tem aplicação geral", sendo assim, "deve ser levada em consideração na análise de todos os procedimentos de demarcação de terras indígenas, assim como a Constituição Federal" e lista outras leis, decretos e portarias do ministério, dentre outras normas e jurisprudências sobre o tema.

"Segundo a Funai, 304 procedimentos de demarcação se encontram em fases anteriores à regularização, sendo, portanto, afetados de formas diversas pela Lei 14.701"

Dados do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil - dados de 2023, aponta a existência de 1.381 terras indígenas no Brasil: 432 registradas; 281 em alguma fase do processo administrativo de demarcação (homologadas, declaradas, identificadas, a identificar); 563 sem providências; 105 reservadas, dominiais e com portaria de restrição. Os dados referentes ao ano de 2024, período de vigência da Lei do Marco Temporal, serão divulgados em breve pela entidade.

Na avaliação do Cimi, a Lei 14.701 é inconstitucional na forma e na materialidade, e impacta todas as terras indígenas no Brasil, sem distinção do estágio em que estejam os processos de regularização.

A lei representa um verdadeiro "decreto de extermínio" dos povos indígenas: contraria os artigos 231 e 232 da Constituição e o entendimento do STF sobre o tema; rompe com o pacto constitucional; aumenta a insegurança jurídica nos territórios; e expõe os povos indígenas a invasões, despejos e violências. Razões pelas quais é urgente que o STF suspenda a vigência da lei e declare sua inconstitucionalidade.

"A lei representa um verdadeiro "decreto de extermínio" dos povos indígenas"

O plano da União

No dia 26 de junho, a União, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), apresentou no âmbito das ações que discutem a inconstitucionalidade da Lei 14.701/23 um "Plano Transitório" para viabilizar medidas emergenciais enquanto se consolida uma solução definitiva para a regularização fundiária de terras indígenas que estão em conflito judicial ou administrativo. O documento foi destinado ao ministro da Suprema Corte, Gilmar Mendes.

O objetivo, segundo a União, é "viabilizar soluções consensuais para os conflitos judicializados envolvendo a aplicação da legislação vigente e o Tema 1031, especialmente quanto à regularização fundiária de terras indígenas", aponta o documento.

"O objetivo é viabilizar soluções consensuais para os conflitos judicializados envolvendo a aplicação da legislação vigente e o Tema 1031"

Entre as proposições, a União sugere criar núcleos de mediação e conciliação para resolver de forma consensual conflitos territoriais sob o argumento e garantia de "segurança jurídica às partes, respeito aos direitos originários dos povos indígenas e tratamento equitativo aos ocupantes de boa-fé".

O plano e seus anexos devem ser submetidos à apreciação das partes e amigos da corte e, após, podem ser levados à homologação pelo plenário da Suprema Corte, se esse for o entendimento do ministro Gilmar Mendes.

https://cimi.org.br/2025/07/camara-conciliacao-encerra-sem-solucao/
 

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