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Os últimos 11 dias da vida de Naldo, assassinado por terra em Vitória do Xingu
12/05/2025
Autor: Guilherme Guerreiro Neto
Fonte: Sumauma - https://sumauma.com
Em 30 de janeiro deste ano, Ednaldo Palheta da Cunha chorou. Em uma reunião com 40 agricultores familiares, contou que haviam tentado suborná-lo. Disse que queriam acabar com sua liderança em uma área disputada com latifundiários. Aos seus companheiros, Naldo, como era mais conhecido, prometeu que era gente honesta e morreria sustentando sua palavra. A palavra de Naldo era a luta coletiva pela terra, a mesma da missionária estadunidense Dorothy Stang no município vizinho, onde ela foi assassinada com seis tiros 20 anos antes. Naquele dia, o choro de Naldo tinha o peso de uma luta que segue, há décadas, derrubando muitos ao seu redor.
Entre 2014 e 2024, segundo os relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT), morreram por conflitos agrários 21 pessoas nos municípios da Região de Integração do Xingu - 16 delas em Anapu, onde Dorothy lutou e enfrentou seu martírio. Desde a execução da religiosa, em 2005, pelo menos 37 pessoas perderam a vida em disputas de terra nessa região do Pará, que abrange também Vitória do Xingu, a cidade onde Naldo vivia e onde foi morto. Os últimos assassinatos contabilizados pela CPT em Vitória do Xingu haviam ocorrido dez anos atrás, quando um carro avançou no meio de uma mobilização contra a usina de Belo Monte matando Leidiane Machado e Daniel Dias.
Onze dias depois da assembleia de agricultores, em 10 de fevereiro, Naldo passava pelo ramal do Água Boa, seu caminho diário. Era perto das 10 da noite e ele voltava para casa após mais um dia de trabalho na frente do hospital municipal, onde vendia churrasquinho para fechar as contas do mês. Estava acompanhado de seu filho de 10 anos. Dois homens de capacete se aproximaram em uma moto e dispararam. Três tiros atingiram Naldo, incluindo o que a polícia chama de "disparo de confirmação", dado para que não reste chance de a pessoa sobreviver. Seu filho correu para pedir ajuda aos vizinhos, mas não houve tempo. Assim como Dorothy, Naldo morreu no chão que sonhava ver partilhado.
O agricultor de 45 anos havia assumido em dezembro de 2024 a presidência da Associação da União dos Pequenos Agricultores Rurais do Km 40 de Vitória do Xingu, município de menos de 16 mil habitantes no sudoeste do Pará. A entidade representa cerca de 120 famílias que ocupam uma área que querem ver destinada para a reforma agrária, mas é reivindicada por uma família poderosa, cuja origem remete aos senhores de engenho do Nordeste brasileiro. A terra pública tem o tamanho de 5 mil campos de futebol - maior do que a cidade de Olinda, em Pernambuco.
O palco da batalha dos agricultores da associação são as "fazendas" Rio Xingu I e II, de Gustavo Ferreira Tenório, e Farrara, de José Sabino Maynart Tenório, que, juntas, somam quase 4,8 mil hectares. As duas primeiras nunca foram tituladas. Ou seja, não têm, oficialmente, um papel que assegure que ali há um dono particular. Já a Farrara recebeu a titulação em maio de 2023, mas como naquela data os agricultores já reivindicavam parte de sua área, o título acabou anulado em 21 de janeiro de 2025. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, José Sabino foi notificado sobre isso em 4 de fevereiro - seis dias antes do assassinato de Naldo. Não há, até o momento, nenhum indício de que a proximidade das datas seja mais do que uma coincidência. O Incra afirma que as áreas das três fazendas pertencem à União.
O cenário se tornou ainda mais complexo com a chegada de informações ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) apontando que a área teria sido arrendada para terceiros, autores de outro crime agrário na região. Conforme a denúncia, eles teriam interesse em plantar soja no local. O grão passou a alimentar a cobiça por terras ali desde 2024, conforme mostrou SUMAÚMA. Neste caso específico, porém, até o momento não há comprovação do suposto arrendamento.
Família Tenório, de Alagoas ao Xingu
Gustavo Tenório e José Sabino, este segundo mais conhecido como Zezinho Tenório, são primos. Ambos são netos do falecido empresário Jorge Tenório Maia, que foi acionista do Pajuçara Sistema de Comunicação, afiliada da Rede Record em Alagoas, e da Usina Triunfo, produtora de açúcar e etanol localizada no município de Boca da Mata, uma cidade de 21 mil habitantes em Alagoas. O fundador da usina, bisavô dos fazendeiros, foi José Tenório de Albuquerque Lins, o Major Zé Tenório. O pai de José Sabino, José Maynart Tenório, foi prefeito de Boca da Mata por dois mandatos, em 2004 e 2008, primeiro pelo PTB, em seguida pelo MDB. Anos depois, em 2016 e 2020, Zezinho Tenório também tentou a sorte na política. Foi candidato a prefeito do mesmo município, primeiro pelo mesmo PTB e depois pelo PL, mas não conseguiu se eleger. Condenado por compra de votos, está inelegível até 2028.
A empresa Agropecuária Estrela do Xingu, da qual Gustavo Tenório é sócio-administrador, tem a criação de gado para a produção de carne como atividade principal e o aluguel de imóveis próprios como atividade secundária. Segundo moradores da ocupação, quem aparece muitas vezes por lá como dono das fazendas é o pai de Gustavo, Jorge Luiz Maynart Tenório. Jorge Luiz consta, em uma das ações de reintegração de posse contra Naldo e outros agricultores da ocupação, como procurador de Gustavo.
As fazendas teriam sido adquiridas em 2014 de outras sete pessoas. E, segundo a família, no processo que tramita na Justiça, a Rio Xingu I e II mantinha em setembro de 2022 atividade pecuária, com 564 bois. Em julho daquele ano, agricultores familiares decidiram ocupar a área para reivindicar a reforma agrária e afirmam na ação não terem encontrado cerca ou gado. A porção de terra ocupada pela associação virou roça familiar. "Nós planta mandioca, milho, arroz, abóbora, abacaxi", conta um morador. Por segurança, a reportagem opta por não identificar nenhum deles.
Depois que a ocupação se assentou na terra, a família Tenório entrou com um pedido de reintegração de posse da área para expulsar os agricultores. A Defensoria Pública do Estado do Pará, que representa a associação de Naldo, argumentou no processo que não há licença ambiental da área, que o autor do pedido [pretenso proprietário] não mora no local e que não havia, sequer, funcionários suficientes para o trabalho com o rebanho.
Como aponta Diego Diehl, coordenador do Departamento de Mediação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, os agricultores atrapalharam os planos dos latifundiários. "Essa ocupação acabou sendo um entrave para a tentativa de regularização fundiária da área ocupada pela família Tenório", afirma. Além do grupo liderado por Naldo, há outra ocupação na área, com cerca de 60 famílias, nas proximidades do Igarapé Joa. Lideranças dessa ocupação contam que também enfrentam pressões e ameaças.
SUMAÚMA entrou em contato com a advogada dos Tenório e questionou, entre outros pontos, como se manifestam a respeito do cancelamento do título da Fazenda Farrara, como respondem aos relatos dos agricultores familiares de que sofrem ameaças desde o início da ocupação, se alguém da família ou ligado a ela chegou a conversar com Naldo, como se manifestam sobre indícios de crimes como grilagem e lavagem de dinheiro apontados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (ver texto no final desta página). A advogada Jacy Mary Gioia Rufino, por aplicativo de mensagem, informou que os Tenório, por ora, preferem se manter calados.
A soja aumenta a pressão na região
Segundo pessoas da mesma ocupação de Naldo, no início de 2025 uma parte do terreno começou a ser arada por tratores. Mas, afirmam, o maquinário teria sido retirado de lá no final de fevereiro. O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, em visita ao local, em março, identificou um desmate recente por correntão, técnica em que uma corrente presa a dois tratores sai derrubando a vegetação que encontra pela frente. "A área parecia mesmo estar sendo preparada para o plantio de soja", confirma Diego Diehl. Dias após a presença do ministério, agricultores contam que a terra que serviria à soja foi tomada por gado.
"Antes, a luta era contra fazendeiros, hoje tem sojeiros querendo tomar a terra, muitas vezes nem comprando, mas arrendando, porque a soja acaba com a terra. Então eles arrendam até estragar e passam para outro", explica a irmã Jane Dwyer, da Comissão Pastoral da Terra, em Anapu. Embora os indicadores oficiais ainda não registrem produção de soja no município, a expansão da monocultura de grãos já pressiona a região. Como SUMAÚMA contou nesta reportagem de dezembro de 2024, a empresa Dura Mais Armazenagem de Grãos está erguendo quatro silos com capacidade para 26,4 mil toneladas de soja em Vitória do Xingu.
A partir do testemunho de agricultores, o relatório do Departamento de Mediação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar conta que, "semanas antes do crime, Naldo havia sido abordado [por pessoas ligadas a um antigo assassinato na região de Anapu], que teriam proposto pagar altos valores em dinheiro à vítima, caso esta desistisse da ocupação da área nas fazendas Farrara e Rio Xingu, e que auxiliasse na desmobilização das demais famílias". SUMAÚMA não publica seus nomes porque, até o momento, a denúncia não foi comprovada.
O advogado de umas das pessoas mencionadas afirmou à reportagem que seu cliente lamenta o ocorrido, que não arrendou nenhuma fazenda para o plantio de soja, que não sabe onde fica a ocupação mencionada, que não sabe onde ficam os imóveis mencionados, que não conhecia Ednaldo, que não abordou e nem mandou abordar Ednaldo e que não tem relação com os fatos apurados.
Pescador sem rio
Além de a região de Vitória do Xingu ser um centro de conflitos agrários, sua situação social se agravou quando, em 2011, o governo federal autorizou a instalação da Usina Hidrelétrica Belo Monte, que atravessou a vida dos povos do Xingu e desde 2021 opera com a licença vencida. Antes de Belo Monte, Naldo era pescador. Com a chegada da barragem, os peixes ficaram escassos. Foi preciso recomeçar a vida: ele fazia bico de pedreiro, trabalhou em frigorífico, limpou bucho de boi - foi quando ficou conhecido como Naldo Bucheiro. Por lutar boxe, tinha ainda o apelido de "Vovô do Ringue".
Em agosto de 2024, Naldo esteve em Brasília com uma caravana de pescadores atingidos por Belo Monte. Durante a viagem, ele foi recebido no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar para tratar da situação da ocupação. Uma das consequências da hidrelétrica foi o surgimento de ocupações, por conta do aumento populacional na região, de pessoas que não tinham como comprar uma terra ou pagar aluguel, parte delas de ex-trabalhadores na construção da usina. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) apoiou quatro ocupações urbanas em Vitória do Xingu e, desde 2024, passou a acompanhar a luta de Naldo por aquele pedaço de chão.
Crime ainda sem solução
O assassinato de Naldo começou a ser investigado pela Delegacia de Polícia de Vitória do Xingu. Depois, passou para a Delegacia Especializada de Conflitos Agrários (Deca) de Altamira, que responde por 11 municípios da região. Ninguém está preso.
Em nota, o diretor da Delegacia Especializada de Conflitos Agrários (Deca) de Altamira, delegado Michael Andrey de Sousa Oliveira, afirma que a investigação está sob sigilo legal. Mas diz que escutou e investigou suspeitos, inclusive com mandados de busca e apreensão. Na casa de um dos suspeitos, apontado como a pessoa que teria oferecido vantagens financeiras à vítima para que abandonasse a área em disputa, foram encontradas munições, o que culminou na sua prisão em flagrante. O suspeito pagou fiança e foi liberado. "As investigações prosseguem sob a responsabilidade da Deca de Altamira, que está inteiramente empenhada na elucidação do crime", garante o delegado. "A unidade emprega, inclusive, técnicas modernas de investigação criminal semelhantes às utilizadas no caso que apura o assassinato da vereadora Marielle Franco, incluindo análise de dados forenses, cruzamento de informações em sistemas integrados e técnicas de inteligência."
O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar pediu à Polícia Federal (PF) de Altamira que abrisse inquérito para apurar os crimes, mas a PF avaliou que não tem atribuição sobre o caso. O Ministério Público do Estado do Pará e o Ministério Público Federal acompanham. Para a promotora de Justiça de Vitória do Xingu, Samara Viana Correa, o ato contra a vida de Ednaldo é uma grave violação aos direitos humanos e um crime possivelmente relacionado a conflitos agrários.
O Movimento dos Atingidos por Barragens também acompanha as investigações. Jaqueline Damasceno Alves, assessora jurídica popular do MAB, vê a regra da impunidade se repetindo. "A nossa preocupação agora tem sido o inquérito. Ainda nenhuma prisão, nenhum acusado. Mas isso é o comum. O inédito é quando a polícia realmente investiga", diz. Em 11 de março, um ato em Vitória do Xingu reuniu moradores da ocupação e movimentos sociais com cartazes pedindo justiça.
Quem vive na ocupação, da sua roça, ainda quer sonhar o sonho de Naldo. Mas alguns de seus companheiros, com medo, precisaram se esconder. Deixaram suas casas e suas plantações. Ficaram sem comer, sem dormir, contam que enfrentaram crises de pânico. "Nós estamos em risco. Fizeram isso pra acabar com tudo. Então ninguém tá seguro", afirma uma liderança da ocupação. Eles dizem que, durante o velório de Naldo, uma pessoa desconhecida apareceu e fez fotos de lideranças. O gerente da fazenda também teria sido visto no local.
A Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos do Pará informou que o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do estado fez escutas e encaminhamentos a partir do pedido de outros defensores ameaçados na região. Em 2023, SUMAÚMA mostrou como o programa, desenhado para proteger aqueles que lutam pela Amazônia com seus corpos, falha.
Dois dias após o assassinato de Naldo, uma cerimônia no município vizinho de Anapu relembrou a morte de Dorothy Stang. O homicídio de Naldo é a continuação dessa história. E pode ser o início de um novo capítulo, em que a velha grilagem se alia à mais nova invasão da soja na Floresta.
TERRA PÚBLICA PRIVATIZADA E INVESTIGADA
A área reivindicada pelos agricultores da associação comandada por Ednaldo Palheta da Cunha, o Naldo, fica na Gleba Federal Tapará - gleba é como são chamados os terrenos sem títulos. Durante a ditadura empresarial-militar (1964-1985), um decreto-lei do presidente general Emílio Garrastazu Médici transformou em bens da União as terras não destinadas que ficavam na faixa de 100 quilômetros das margens de rodovias federais abertas ou projetadas na Amazônia Legal, como a Transamazônica. Por isso, até hoje, boa parte das terras na região do Xingu pertence à União, entre elas a Gleba Tapará. Em uma manifestação feita no processo de reintegração de posse movido pelos alegados "fazendeiros" contra os agricultores da associação, o Incra confirma que as áreas continuam sendo de domínio público.
Maurício Torres, professor da Universidade Federal do Pará e estudioso dos conflitos de terra na Amazônia, explica: "Constitucionalmente, há uma ordem de prioridades para destinação de terras públicas. A primeira são as Terras Indígenas, seguidas dos outros tipos de territórios tradicionalmente ocupados. Se ali não houver Indígenas ou outra comunidade tradicional, a prioridade seguinte é o interesse ambiental. Se não houver interesse ambiental, aí vem a reforma agrária, e é bom lembrar que estamos falando de uma região com muita pressão por reforma agrária. Apenas se não houver nenhuma dessas demandas, a terra pública poderá ser destinada ao interesse privado individual".
Isso tudo é o que diz a lei. Mas a lei, claro, não evitou que ao longo dos anos ali, e em toda a Amazônia, pessoas interessadas em lucrar com a Floresta ocupassem áreas públicas para, depois, tentar regularizar essa posse irregular. No caminho, elas foram ajudadas pela própria legislação, feita em diferentes governos. A 11.952, de 2009, durante o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por exemplo, ficou conhecida como Lei da Grilagem, por, justamente, legalizar terras públicas roubadas. Mas, mesmo essa norma tão criticada por quem protege a Floresta, impõe limites: ela diz que a regularização em terras da União na Amazônia Legal não pode acontecer em ocupações com mais de 2,5 mil hectares.
No caso da área onde estão os pequenos agricultores de Vitória do Xingu, o Incra aponta indícios de fracionamento fraudulento das fazendas para burlar esse limite máximo para a regularização fundiária. "Resta claro que se trata de apenas um imóvel rural, dividido em dois para viabilizar a regularização", afirma o Incra sobre o caso, ainda no processo de reintegração de posse. Conforme o órgão responsável pela reforma agrária, o Instrumento Particular de Promessa de Compra e Venda (documento feito entre o grileiro inicial da área e a família que diz tê-la comprado) demonstra que, além da Rio Xingu I e II e da Farrara, José Sabino, Gustavo Tenório e outras pessoas da família teriam adquirido, ao todo, nove propriedades rurais desmembradas, que, somadas, chegam a quase 10 mil hectares, no valor de 19,5 milhões de reais.
"Em poucas palavras: é terra pública; não tem condição de ser regularizada, porque descumpre as exigências legais", diz Maurício Torres. "Há indícios de se tratar de uma detenção ilegal de terra pública, pois temos sinais de que ali acontece o dito fracionamento, que nada mais é do que dividir áreas imensas e colocar cada pedaço em nome de um laranja diferente, para se burlar a lei que coloca limites no tamanho das pretensões." Em seu relatório, o Departamento de Mediação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar considera "haver indícios de possíveis crimes de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, fraude processual, além de grilagem de terras públicas e corrupção (ativa e passiva)", por conta da negociação e do valor que constam no Instrumento Particular de Promessa de Compra e Venda dos Tenório.
https://sumauma.com/os-ultimos-11-dias-da-vida-de-naldo-assassinado-por-terra-em-vitoria-do-xingu/
Entre 2014 e 2024, segundo os relatórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT), morreram por conflitos agrários 21 pessoas nos municípios da Região de Integração do Xingu - 16 delas em Anapu, onde Dorothy lutou e enfrentou seu martírio. Desde a execução da religiosa, em 2005, pelo menos 37 pessoas perderam a vida em disputas de terra nessa região do Pará, que abrange também Vitória do Xingu, a cidade onde Naldo vivia e onde foi morto. Os últimos assassinatos contabilizados pela CPT em Vitória do Xingu haviam ocorrido dez anos atrás, quando um carro avançou no meio de uma mobilização contra a usina de Belo Monte matando Leidiane Machado e Daniel Dias.
Onze dias depois da assembleia de agricultores, em 10 de fevereiro, Naldo passava pelo ramal do Água Boa, seu caminho diário. Era perto das 10 da noite e ele voltava para casa após mais um dia de trabalho na frente do hospital municipal, onde vendia churrasquinho para fechar as contas do mês. Estava acompanhado de seu filho de 10 anos. Dois homens de capacete se aproximaram em uma moto e dispararam. Três tiros atingiram Naldo, incluindo o que a polícia chama de "disparo de confirmação", dado para que não reste chance de a pessoa sobreviver. Seu filho correu para pedir ajuda aos vizinhos, mas não houve tempo. Assim como Dorothy, Naldo morreu no chão que sonhava ver partilhado.
O agricultor de 45 anos havia assumido em dezembro de 2024 a presidência da Associação da União dos Pequenos Agricultores Rurais do Km 40 de Vitória do Xingu, município de menos de 16 mil habitantes no sudoeste do Pará. A entidade representa cerca de 120 famílias que ocupam uma área que querem ver destinada para a reforma agrária, mas é reivindicada por uma família poderosa, cuja origem remete aos senhores de engenho do Nordeste brasileiro. A terra pública tem o tamanho de 5 mil campos de futebol - maior do que a cidade de Olinda, em Pernambuco.
O palco da batalha dos agricultores da associação são as "fazendas" Rio Xingu I e II, de Gustavo Ferreira Tenório, e Farrara, de José Sabino Maynart Tenório, que, juntas, somam quase 4,8 mil hectares. As duas primeiras nunca foram tituladas. Ou seja, não têm, oficialmente, um papel que assegure que ali há um dono particular. Já a Farrara recebeu a titulação em maio de 2023, mas como naquela data os agricultores já reivindicavam parte de sua área, o título acabou anulado em 21 de janeiro de 2025. Segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, José Sabino foi notificado sobre isso em 4 de fevereiro - seis dias antes do assassinato de Naldo. Não há, até o momento, nenhum indício de que a proximidade das datas seja mais do que uma coincidência. O Incra afirma que as áreas das três fazendas pertencem à União.
O cenário se tornou ainda mais complexo com a chegada de informações ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) apontando que a área teria sido arrendada para terceiros, autores de outro crime agrário na região. Conforme a denúncia, eles teriam interesse em plantar soja no local. O grão passou a alimentar a cobiça por terras ali desde 2024, conforme mostrou SUMAÚMA. Neste caso específico, porém, até o momento não há comprovação do suposto arrendamento.
Família Tenório, de Alagoas ao Xingu
Gustavo Tenório e José Sabino, este segundo mais conhecido como Zezinho Tenório, são primos. Ambos são netos do falecido empresário Jorge Tenório Maia, que foi acionista do Pajuçara Sistema de Comunicação, afiliada da Rede Record em Alagoas, e da Usina Triunfo, produtora de açúcar e etanol localizada no município de Boca da Mata, uma cidade de 21 mil habitantes em Alagoas. O fundador da usina, bisavô dos fazendeiros, foi José Tenório de Albuquerque Lins, o Major Zé Tenório. O pai de José Sabino, José Maynart Tenório, foi prefeito de Boca da Mata por dois mandatos, em 2004 e 2008, primeiro pelo PTB, em seguida pelo MDB. Anos depois, em 2016 e 2020, Zezinho Tenório também tentou a sorte na política. Foi candidato a prefeito do mesmo município, primeiro pelo mesmo PTB e depois pelo PL, mas não conseguiu se eleger. Condenado por compra de votos, está inelegível até 2028.
A empresa Agropecuária Estrela do Xingu, da qual Gustavo Tenório é sócio-administrador, tem a criação de gado para a produção de carne como atividade principal e o aluguel de imóveis próprios como atividade secundária. Segundo moradores da ocupação, quem aparece muitas vezes por lá como dono das fazendas é o pai de Gustavo, Jorge Luiz Maynart Tenório. Jorge Luiz consta, em uma das ações de reintegração de posse contra Naldo e outros agricultores da ocupação, como procurador de Gustavo.
As fazendas teriam sido adquiridas em 2014 de outras sete pessoas. E, segundo a família, no processo que tramita na Justiça, a Rio Xingu I e II mantinha em setembro de 2022 atividade pecuária, com 564 bois. Em julho daquele ano, agricultores familiares decidiram ocupar a área para reivindicar a reforma agrária e afirmam na ação não terem encontrado cerca ou gado. A porção de terra ocupada pela associação virou roça familiar. "Nós planta mandioca, milho, arroz, abóbora, abacaxi", conta um morador. Por segurança, a reportagem opta por não identificar nenhum deles.
Depois que a ocupação se assentou na terra, a família Tenório entrou com um pedido de reintegração de posse da área para expulsar os agricultores. A Defensoria Pública do Estado do Pará, que representa a associação de Naldo, argumentou no processo que não há licença ambiental da área, que o autor do pedido [pretenso proprietário] não mora no local e que não havia, sequer, funcionários suficientes para o trabalho com o rebanho.
Como aponta Diego Diehl, coordenador do Departamento de Mediação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, os agricultores atrapalharam os planos dos latifundiários. "Essa ocupação acabou sendo um entrave para a tentativa de regularização fundiária da área ocupada pela família Tenório", afirma. Além do grupo liderado por Naldo, há outra ocupação na área, com cerca de 60 famílias, nas proximidades do Igarapé Joa. Lideranças dessa ocupação contam que também enfrentam pressões e ameaças.
SUMAÚMA entrou em contato com a advogada dos Tenório e questionou, entre outros pontos, como se manifestam a respeito do cancelamento do título da Fazenda Farrara, como respondem aos relatos dos agricultores familiares de que sofrem ameaças desde o início da ocupação, se alguém da família ou ligado a ela chegou a conversar com Naldo, como se manifestam sobre indícios de crimes como grilagem e lavagem de dinheiro apontados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (ver texto no final desta página). A advogada Jacy Mary Gioia Rufino, por aplicativo de mensagem, informou que os Tenório, por ora, preferem se manter calados.
A soja aumenta a pressão na região
Segundo pessoas da mesma ocupação de Naldo, no início de 2025 uma parte do terreno começou a ser arada por tratores. Mas, afirmam, o maquinário teria sido retirado de lá no final de fevereiro. O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, em visita ao local, em março, identificou um desmate recente por correntão, técnica em que uma corrente presa a dois tratores sai derrubando a vegetação que encontra pela frente. "A área parecia mesmo estar sendo preparada para o plantio de soja", confirma Diego Diehl. Dias após a presença do ministério, agricultores contam que a terra que serviria à soja foi tomada por gado.
"Antes, a luta era contra fazendeiros, hoje tem sojeiros querendo tomar a terra, muitas vezes nem comprando, mas arrendando, porque a soja acaba com a terra. Então eles arrendam até estragar e passam para outro", explica a irmã Jane Dwyer, da Comissão Pastoral da Terra, em Anapu. Embora os indicadores oficiais ainda não registrem produção de soja no município, a expansão da monocultura de grãos já pressiona a região. Como SUMAÚMA contou nesta reportagem de dezembro de 2024, a empresa Dura Mais Armazenagem de Grãos está erguendo quatro silos com capacidade para 26,4 mil toneladas de soja em Vitória do Xingu.
A partir do testemunho de agricultores, o relatório do Departamento de Mediação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar conta que, "semanas antes do crime, Naldo havia sido abordado [por pessoas ligadas a um antigo assassinato na região de Anapu], que teriam proposto pagar altos valores em dinheiro à vítima, caso esta desistisse da ocupação da área nas fazendas Farrara e Rio Xingu, e que auxiliasse na desmobilização das demais famílias". SUMAÚMA não publica seus nomes porque, até o momento, a denúncia não foi comprovada.
O advogado de umas das pessoas mencionadas afirmou à reportagem que seu cliente lamenta o ocorrido, que não arrendou nenhuma fazenda para o plantio de soja, que não sabe onde fica a ocupação mencionada, que não sabe onde ficam os imóveis mencionados, que não conhecia Ednaldo, que não abordou e nem mandou abordar Ednaldo e que não tem relação com os fatos apurados.
Pescador sem rio
Além de a região de Vitória do Xingu ser um centro de conflitos agrários, sua situação social se agravou quando, em 2011, o governo federal autorizou a instalação da Usina Hidrelétrica Belo Monte, que atravessou a vida dos povos do Xingu e desde 2021 opera com a licença vencida. Antes de Belo Monte, Naldo era pescador. Com a chegada da barragem, os peixes ficaram escassos. Foi preciso recomeçar a vida: ele fazia bico de pedreiro, trabalhou em frigorífico, limpou bucho de boi - foi quando ficou conhecido como Naldo Bucheiro. Por lutar boxe, tinha ainda o apelido de "Vovô do Ringue".
Em agosto de 2024, Naldo esteve em Brasília com uma caravana de pescadores atingidos por Belo Monte. Durante a viagem, ele foi recebido no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar para tratar da situação da ocupação. Uma das consequências da hidrelétrica foi o surgimento de ocupações, por conta do aumento populacional na região, de pessoas que não tinham como comprar uma terra ou pagar aluguel, parte delas de ex-trabalhadores na construção da usina. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) apoiou quatro ocupações urbanas em Vitória do Xingu e, desde 2024, passou a acompanhar a luta de Naldo por aquele pedaço de chão.
Crime ainda sem solução
O assassinato de Naldo começou a ser investigado pela Delegacia de Polícia de Vitória do Xingu. Depois, passou para a Delegacia Especializada de Conflitos Agrários (Deca) de Altamira, que responde por 11 municípios da região. Ninguém está preso.
Em nota, o diretor da Delegacia Especializada de Conflitos Agrários (Deca) de Altamira, delegado Michael Andrey de Sousa Oliveira, afirma que a investigação está sob sigilo legal. Mas diz que escutou e investigou suspeitos, inclusive com mandados de busca e apreensão. Na casa de um dos suspeitos, apontado como a pessoa que teria oferecido vantagens financeiras à vítima para que abandonasse a área em disputa, foram encontradas munições, o que culminou na sua prisão em flagrante. O suspeito pagou fiança e foi liberado. "As investigações prosseguem sob a responsabilidade da Deca de Altamira, que está inteiramente empenhada na elucidação do crime", garante o delegado. "A unidade emprega, inclusive, técnicas modernas de investigação criminal semelhantes às utilizadas no caso que apura o assassinato da vereadora Marielle Franco, incluindo análise de dados forenses, cruzamento de informações em sistemas integrados e técnicas de inteligência."
O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar pediu à Polícia Federal (PF) de Altamira que abrisse inquérito para apurar os crimes, mas a PF avaliou que não tem atribuição sobre o caso. O Ministério Público do Estado do Pará e o Ministério Público Federal acompanham. Para a promotora de Justiça de Vitória do Xingu, Samara Viana Correa, o ato contra a vida de Ednaldo é uma grave violação aos direitos humanos e um crime possivelmente relacionado a conflitos agrários.
O Movimento dos Atingidos por Barragens também acompanha as investigações. Jaqueline Damasceno Alves, assessora jurídica popular do MAB, vê a regra da impunidade se repetindo. "A nossa preocupação agora tem sido o inquérito. Ainda nenhuma prisão, nenhum acusado. Mas isso é o comum. O inédito é quando a polícia realmente investiga", diz. Em 11 de março, um ato em Vitória do Xingu reuniu moradores da ocupação e movimentos sociais com cartazes pedindo justiça.
Quem vive na ocupação, da sua roça, ainda quer sonhar o sonho de Naldo. Mas alguns de seus companheiros, com medo, precisaram se esconder. Deixaram suas casas e suas plantações. Ficaram sem comer, sem dormir, contam que enfrentaram crises de pânico. "Nós estamos em risco. Fizeram isso pra acabar com tudo. Então ninguém tá seguro", afirma uma liderança da ocupação. Eles dizem que, durante o velório de Naldo, uma pessoa desconhecida apareceu e fez fotos de lideranças. O gerente da fazenda também teria sido visto no local.
A Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos do Pará informou que o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do estado fez escutas e encaminhamentos a partir do pedido de outros defensores ameaçados na região. Em 2023, SUMAÚMA mostrou como o programa, desenhado para proteger aqueles que lutam pela Amazônia com seus corpos, falha.
Dois dias após o assassinato de Naldo, uma cerimônia no município vizinho de Anapu relembrou a morte de Dorothy Stang. O homicídio de Naldo é a continuação dessa história. E pode ser o início de um novo capítulo, em que a velha grilagem se alia à mais nova invasão da soja na Floresta.
TERRA PÚBLICA PRIVATIZADA E INVESTIGADA
A área reivindicada pelos agricultores da associação comandada por Ednaldo Palheta da Cunha, o Naldo, fica na Gleba Federal Tapará - gleba é como são chamados os terrenos sem títulos. Durante a ditadura empresarial-militar (1964-1985), um decreto-lei do presidente general Emílio Garrastazu Médici transformou em bens da União as terras não destinadas que ficavam na faixa de 100 quilômetros das margens de rodovias federais abertas ou projetadas na Amazônia Legal, como a Transamazônica. Por isso, até hoje, boa parte das terras na região do Xingu pertence à União, entre elas a Gleba Tapará. Em uma manifestação feita no processo de reintegração de posse movido pelos alegados "fazendeiros" contra os agricultores da associação, o Incra confirma que as áreas continuam sendo de domínio público.
Maurício Torres, professor da Universidade Federal do Pará e estudioso dos conflitos de terra na Amazônia, explica: "Constitucionalmente, há uma ordem de prioridades para destinação de terras públicas. A primeira são as Terras Indígenas, seguidas dos outros tipos de territórios tradicionalmente ocupados. Se ali não houver Indígenas ou outra comunidade tradicional, a prioridade seguinte é o interesse ambiental. Se não houver interesse ambiental, aí vem a reforma agrária, e é bom lembrar que estamos falando de uma região com muita pressão por reforma agrária. Apenas se não houver nenhuma dessas demandas, a terra pública poderá ser destinada ao interesse privado individual".
Isso tudo é o que diz a lei. Mas a lei, claro, não evitou que ao longo dos anos ali, e em toda a Amazônia, pessoas interessadas em lucrar com a Floresta ocupassem áreas públicas para, depois, tentar regularizar essa posse irregular. No caminho, elas foram ajudadas pela própria legislação, feita em diferentes governos. A 11.952, de 2009, durante o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por exemplo, ficou conhecida como Lei da Grilagem, por, justamente, legalizar terras públicas roubadas. Mas, mesmo essa norma tão criticada por quem protege a Floresta, impõe limites: ela diz que a regularização em terras da União na Amazônia Legal não pode acontecer em ocupações com mais de 2,5 mil hectares.
No caso da área onde estão os pequenos agricultores de Vitória do Xingu, o Incra aponta indícios de fracionamento fraudulento das fazendas para burlar esse limite máximo para a regularização fundiária. "Resta claro que se trata de apenas um imóvel rural, dividido em dois para viabilizar a regularização", afirma o Incra sobre o caso, ainda no processo de reintegração de posse. Conforme o órgão responsável pela reforma agrária, o Instrumento Particular de Promessa de Compra e Venda (documento feito entre o grileiro inicial da área e a família que diz tê-la comprado) demonstra que, além da Rio Xingu I e II e da Farrara, José Sabino, Gustavo Tenório e outras pessoas da família teriam adquirido, ao todo, nove propriedades rurais desmembradas, que, somadas, chegam a quase 10 mil hectares, no valor de 19,5 milhões de reais.
"Em poucas palavras: é terra pública; não tem condição de ser regularizada, porque descumpre as exigências legais", diz Maurício Torres. "Há indícios de se tratar de uma detenção ilegal de terra pública, pois temos sinais de que ali acontece o dito fracionamento, que nada mais é do que dividir áreas imensas e colocar cada pedaço em nome de um laranja diferente, para se burlar a lei que coloca limites no tamanho das pretensões." Em seu relatório, o Departamento de Mediação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar considera "haver indícios de possíveis crimes de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, fraude processual, além de grilagem de terras públicas e corrupção (ativa e passiva)", por conta da negociação e do valor que constam no Instrumento Particular de Promessa de Compra e Venda dos Tenório.
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