De Pueblos Indígenas en Brasil
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As marcas da ditadura na vida de um guarani-kaiowá
10/08/2025
Autor: VALIENTE, Celuniel Aquino
Fonte: FSP - https://www1.folha.uol.com.br/
As marcas da ditadura na vida de um guarani-kaiowá
Documentário 'Yõg Atãk: Meu Pai, Kaiowá' faz cinema indígena que fala por si mesmo com vestígios íntimos de história coletiva
10/08/2025
Celuniel Aquino Valiente
Antropólogo e professor kaiowá, doutorando em antropologia social na Universidade de São Paulo
O filme "Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá" se abre com a cineasta e liderança indígena Sueli Maxakali de frente para a câmera, apresentando um a um os integrantes de sua família. Logo depois, ela se aproxima de uma mulher mais velha, em busca das histórias de um guarani que andou por aquelas terras depois de meados do século passado. Sueli pega o telefone, tenta ligar para ele, espera. Mas ninguém atende.
Nesse início, o documentário nos apresenta a retomada liderada por Sueli, chamada Aldeia-Escola-Floresta, em Teófilo Otoni, Minas Gerais. Dois homens indígenas se juntam para apagar as letras de uma placa e escrever, no lugar, o nome da nova aldeia. Enquanto trabalham, comentam, em um tom de alerta contido, que os fazendeiros estão furiosos com a presença deles ali.
Após muitas tentativas, o guarani finalmente atende. É Luiz Kaiowá, que vive em outra aldeia, a Terra Indígena Panambizinho, em Mato Grosso do Sul. A partir desse momento, o filme muda de cenário e nos leva até a aldeia de Luiz.
Jovens parentes de Luiz conversam com os moradores, buscando vestígios da história desse homem que, para muitos guarani-kaiowá que vivem na região, era visto apenas como um andarilho. Um casal mais velho conta que Luiz percorreu muitos lugares, carregando consigo as memórias e as dores de um tempo em que, durante a ditadura militar, soldados arrancavam indígenas de suas terras e os espalhavam pelo país.
Foi em uma dessas travessias forçadas que Luiz constituiu família em Minas Gerais, vivendo junto a outro povo indígena: os Tikmu~'u~n, também conhecidos como Maxakali. Ali nasceram suas filhas, entre elas, Sueli.
Em Panambizinho, Luiz é um "ñanderu", um xamã respeitado por sua sabedoria kaiowá. Mora em uma casa simples, de alvenaria. No início, ele se recusa a receber as filhas depois de 40 anos, talvez por causa das memórias violentas que carrega. Mas os jovens guarani-kaiowá que acompanham as filmagens insistem. Buscam estratégias, conversam com paciência, até que Luiz se rende e aceita receber sua família.
É então que Luiz começa a contar sua história: os 16 anos que passou em Minas Gerais; suas filhas que nasceram lá; as caminhadas; as violências sofridas; os medos carregados; as andanças durante o período da ditadura.
Enquanto ele fala, suas filhas Maxakali já estão a caminho, cruzando de ônibus até Mato Grosso do Sul para reencontrá-lo. Quando chegam, caminham na direção do pai entoando seus cantos, os mesmos cantos que Luiz reconhece na memória e se junta a elas para cantar.
O encontro é feito de abraços curtos, sorrisos que não cabem no rosto, olhos úmidos de lembranças. O corpo de Luiz se alegra ao reencontrar aquelas que um dia precisou deixar para trás.
Durante a estadia, a aldeia de Luiz se transforma em festa. Danças, cantos, chichas, risadas de crianças correndo. É como se toda a família, enfim reunida, costurasse de volta o que a história rasgou.
A história de Luiz carrega em si o peso de muitas outras. Mostra o tempo do "sarambi" -esparramo-, das remoções forçadas, das imposições e das violências que atingiram os povos indígenas.
Luiz não escolheu partir. Foi arrancado, levado pelos soldados, forçado a viver longe do seu "tekoha" (aldeia) e treinado para impor modos "karai" (dos não indígenas) para outras comunidades.
Em Mato Grosso do Sul, há muitas histórias como a de Luiz: homens que deixaram suas famílias para sempre; outros que morreram longe dos seus; e ainda aqueles que se transformaram em alguém diferente, sem chance de voltar a ser quem eram. Foram expulsos à força, espalhados não por vontade própria, mas pela violência colonial que ainda marca os corpos e as memórias dos kaiowá, dos Maxakali e outros povos indígenas no Brasil.
Um detalhe profundo se revela: a família Maxakali de Luiz guarda semelhanças com os kaiowá; a retomada lembra as retomadas kaiowá; as brincadeiras das crianças, as conversas, as interações -tudo carrega essas marcas comuns. O roteiro também chama a atenção: ele me lembra o jeito dos kaiowá de contar suas histórias. É um jeito próprio, que deixa a história se revelar no seu tempo, do seu modo.
A crítica não indígena, publicada na Folha, destacou o quanto as violências sofridas pelos povos indígenas na ditadura, infelizmente, persistem até hoje, mas não soube notar as potências do cinema indígena praticado há anos pelos cineastas Sueli e Isael Maxakali, que assinam a direção do longa com seus aliados não indígenas Roberto Romero e Luisa Lanna -e com a assistência de Michele Kaiowá e Daniela Kaiowá.
O filme é inteiramente indígena. Nenhuma voz que não seja indígena interrompe as histórias ou as imagens. A forma como o filme se constrói revela detalhes poderosos. É um cinema que não traduz nem explica para o outro, mas fala para si mesmo, transformando a câmera em "tekoha" -um espaço de pertencimento. O filme indigeniza o próprio cinema.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/08/as-marcas-da-ditadura-na-vida-de-um-guarani-kaiowa.shtml
Documentário 'Yõg Atãk: Meu Pai, Kaiowá' faz cinema indígena que fala por si mesmo com vestígios íntimos de história coletiva
10/08/2025
Celuniel Aquino Valiente
Antropólogo e professor kaiowá, doutorando em antropologia social na Universidade de São Paulo
O filme "Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá" se abre com a cineasta e liderança indígena Sueli Maxakali de frente para a câmera, apresentando um a um os integrantes de sua família. Logo depois, ela se aproxima de uma mulher mais velha, em busca das histórias de um guarani que andou por aquelas terras depois de meados do século passado. Sueli pega o telefone, tenta ligar para ele, espera. Mas ninguém atende.
Nesse início, o documentário nos apresenta a retomada liderada por Sueli, chamada Aldeia-Escola-Floresta, em Teófilo Otoni, Minas Gerais. Dois homens indígenas se juntam para apagar as letras de uma placa e escrever, no lugar, o nome da nova aldeia. Enquanto trabalham, comentam, em um tom de alerta contido, que os fazendeiros estão furiosos com a presença deles ali.
Após muitas tentativas, o guarani finalmente atende. É Luiz Kaiowá, que vive em outra aldeia, a Terra Indígena Panambizinho, em Mato Grosso do Sul. A partir desse momento, o filme muda de cenário e nos leva até a aldeia de Luiz.
Jovens parentes de Luiz conversam com os moradores, buscando vestígios da história desse homem que, para muitos guarani-kaiowá que vivem na região, era visto apenas como um andarilho. Um casal mais velho conta que Luiz percorreu muitos lugares, carregando consigo as memórias e as dores de um tempo em que, durante a ditadura militar, soldados arrancavam indígenas de suas terras e os espalhavam pelo país.
Foi em uma dessas travessias forçadas que Luiz constituiu família em Minas Gerais, vivendo junto a outro povo indígena: os Tikmu~'u~n, também conhecidos como Maxakali. Ali nasceram suas filhas, entre elas, Sueli.
Em Panambizinho, Luiz é um "ñanderu", um xamã respeitado por sua sabedoria kaiowá. Mora em uma casa simples, de alvenaria. No início, ele se recusa a receber as filhas depois de 40 anos, talvez por causa das memórias violentas que carrega. Mas os jovens guarani-kaiowá que acompanham as filmagens insistem. Buscam estratégias, conversam com paciência, até que Luiz se rende e aceita receber sua família.
É então que Luiz começa a contar sua história: os 16 anos que passou em Minas Gerais; suas filhas que nasceram lá; as caminhadas; as violências sofridas; os medos carregados; as andanças durante o período da ditadura.
Enquanto ele fala, suas filhas Maxakali já estão a caminho, cruzando de ônibus até Mato Grosso do Sul para reencontrá-lo. Quando chegam, caminham na direção do pai entoando seus cantos, os mesmos cantos que Luiz reconhece na memória e se junta a elas para cantar.
O encontro é feito de abraços curtos, sorrisos que não cabem no rosto, olhos úmidos de lembranças. O corpo de Luiz se alegra ao reencontrar aquelas que um dia precisou deixar para trás.
Durante a estadia, a aldeia de Luiz se transforma em festa. Danças, cantos, chichas, risadas de crianças correndo. É como se toda a família, enfim reunida, costurasse de volta o que a história rasgou.
A história de Luiz carrega em si o peso de muitas outras. Mostra o tempo do "sarambi" -esparramo-, das remoções forçadas, das imposições e das violências que atingiram os povos indígenas.
Luiz não escolheu partir. Foi arrancado, levado pelos soldados, forçado a viver longe do seu "tekoha" (aldeia) e treinado para impor modos "karai" (dos não indígenas) para outras comunidades.
Em Mato Grosso do Sul, há muitas histórias como a de Luiz: homens que deixaram suas famílias para sempre; outros que morreram longe dos seus; e ainda aqueles que se transformaram em alguém diferente, sem chance de voltar a ser quem eram. Foram expulsos à força, espalhados não por vontade própria, mas pela violência colonial que ainda marca os corpos e as memórias dos kaiowá, dos Maxakali e outros povos indígenas no Brasil.
Um detalhe profundo se revela: a família Maxakali de Luiz guarda semelhanças com os kaiowá; a retomada lembra as retomadas kaiowá; as brincadeiras das crianças, as conversas, as interações -tudo carrega essas marcas comuns. O roteiro também chama a atenção: ele me lembra o jeito dos kaiowá de contar suas histórias. É um jeito próprio, que deixa a história se revelar no seu tempo, do seu modo.
A crítica não indígena, publicada na Folha, destacou o quanto as violências sofridas pelos povos indígenas na ditadura, infelizmente, persistem até hoje, mas não soube notar as potências do cinema indígena praticado há anos pelos cineastas Sueli e Isael Maxakali, que assinam a direção do longa com seus aliados não indígenas Roberto Romero e Luisa Lanna -e com a assistência de Michele Kaiowá e Daniela Kaiowá.
O filme é inteiramente indígena. Nenhuma voz que não seja indígena interrompe as histórias ou as imagens. A forma como o filme se constrói revela detalhes poderosos. É um cinema que não traduz nem explica para o outro, mas fala para si mesmo, transformando a câmera em "tekoha" -um espaço de pertencimento. O filme indigeniza o próprio cinema.
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/08/as-marcas-da-ditadura-na-vida-de-um-guarani-kaiowa.shtml
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