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Cumbe: o quilombo que transformou resistência em celebração no Ceará

24/10/2025

Autor: Amanda Sobreira

Fonte: Brasil de Fato - https://www.brasildefato.com.br/



Cumbe: o quilombo que transformou resistência em celebração no Ceará
Festa do Mangue reafirma a identidade e transforma a dor em cultura para celebrar o bem viver quilombola pesqueiro

Localizado entre as águas do Rio Jaguaribe e o mar do litoral Leste do Ceará, o Quilombo do Cumbe fica a 9 km do município de Aracati. É um território sagrado, não apenas pela forte ancestralidade do lugar, com suas tradições e modos de criar, fazer e viver, mas também por seus moradores terem se consolidado, ao longo das últimas décadas, como um movimento social que trava uma das mais intensas lutas por território e justiça socioambiental no estado.

As dunas do litoral e o manguezal completam o cenário que abraça o território, onde vive uma população de cerca de mil pessoas e cujas primeiras referências históricas datam de 1761. Há também ruínas de antigos sítios e engenhos que indicam a produção de farinha e aguardente, evidenciando a existência de trabalho escravo na região.

"O próprio nome Cumbe tem origem africana e significa quilombo na Venezuela. Mas olha a ironia do destino: a fonte documental dita como 'oficial' mais antiga que se tem notícia sobre o Cumbe se encontra na Europa. É um documento que comprova a existência e a história da minha comunidade aqui no Brasil, como quilombo", explica João do Cumbe, liderança quilombola e historiador, referindo-se a uma carta escrita em 1761 pelo capitão-mor Matias Ferreira da Costa a Dom José I, rei de Portugal, que cita a existência do Cumbe. O documento pertence à Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa.

Historiador, especialista em cultura quilombola, mestre em educação e quase doutor, não por acaso. A vida de João do Cumbe se confunde com a história de luta pela defesa do território e da identidade quilombola. Desde criança, João queria estudar e frequentou a única escolinha que havia no Cumbe. Depois, o educador e defensor dos direitos humanos foi estudar na cidade, em Aracati, e lá sentiu o peso de vir do mangue. "Diziam na cidade que quem era do Cumbe fediam a lama", relembra.

De lá para cá, João do Cumbe e outros guardiões do mangue já enfrentaram inúmeras tentativas de apagamento. Na década de 1970, a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) se instalou na região, privatizando as fontes de água doce nas encostas das dunas. Em meados dos anos 1990, surgiram as fazendas de criação de camarão em cativeiro, a carcinicultura, causando enorme degradação ambiental nas áreas de manguezais. As fazendas avançaram sobre áreas de preservação, contaminando águas, destruindo o mangue e acendendo conflitos.

Mas foi em 2007 que o capitalismo chegou com força ao Quilombo. A instalação de uma usina eólica com cerca de 67 torres, no meio do campo de dunas, destruiu dezenas de sítios arqueológicos, retirou mais de 40 mil peças e alterou o curso das aves migratórias, mudando para sempre a vida dos quilombolas do Cumbe.

Na época, chegaram com promessas de emprego, renda e "desenvolvimento". Os empregos eram temporários e mal pagos, mas parte dos moradores abandonou a pesca artesanal para trabalhar no subemprego da usina. A comunidade se dividiu: de um lado, os que se mantiveram na resistência; do outro, os que passaram a se ver como obstáculos ao "progresso". Das cerca de mil pessoas que moram no Cumbe, pelo menos metade não se reconhece como quilombola nem como parte do movimento que tem salvado o território.

Festa do Mangue

Ao todo, 115 famílias se autodeclararam como quilombolas. São elas que estão diretamente envolvidas com a Festa do Mangue, um momento de celebração que se firmou como estratégia de resistência e sobrevivência comunitária e já está na 11ª edição. Realizada em outubro, a festa abre as portas da comunidade para receber moradores da cidade e abrir um debate prático sobre o que os livros não ensinam e as leis ainda não reconhecem: a importância do mangue para a sobrevivência de todos nós.

Este ano, a festa do Cumbe trabalhou o tema "Justiça climática: para tecer o bem viver quilombola", um chamado público para garantir que os povos que menos poluem e mais preservam não sejam empurrados para fora do seu próprio território. "É desse território que sai nossa fonte de renda e alimentação, e a gente se reuniu para lutar porque essa é a nossa história. Mas o caranguejo que você come lá na barraca da praia vem do mangue também, assim como o sururu e as ostras, que eram enormes e hoje estão pequenas e raras. Quando a gente decide realizar a festa é para provocar essa aproximação, porque quando você vive aquilo, você quer preservar aquilo", diz a marisqueira e presidenta da Associação Quilombola do Cumbe, Cleomar Ribeiro, durante a abertura da festa.

Entre as lembranças da infância, Cleomar fala das dunas como quintal de casa - até que suas memórias foram afetadas com a chegada da usina eólica. "O que mais me chocou foi ver a estrada aberta no meio da duna e a cerca proibindo a comunidade de ir pra praia. Mandaram eu sair de lá e disseram que eu era a intrusa, e eu respondi: eu sou intrusa? Quem chegou aqui primeiro, fui eu ou foi você? É adoecedor, mas não tinha mais como eu fugir da luta", conta Cleomar para um público de mais de 200 pessoas.

Ponto de cultura viva
São, na verdade, multiplicadores de conhecimento que atuam como defensores e defensoras do ecossistema responsável por praticamente toda a alimentação dos quilombolas - e, é preciso reconhecer, das cidades também. A pesca artesanal é o saber ancestral dominante na região. A programação da festa oferece, inclusive, oficinas ministradas por pescadores e marisqueiras sobre a ciência da pesca de mariscos (itã, sururu, búzios e ostra), peixe e caranguejo. Há ainda passeios de barco pelo Rio Jaguaribe e aprendizados da natureza sobre o vento, a maré e o movimento das dunas. Um cardápio farto de cultura e alimento que faz as inscrições para a festa se esgotarem em poucas horas.

"Para mim, é um privilégio acompanhar esse momento de celebração da resistência da comunidade e de partilha também, porque a gente percebe o quanto a cultura alimentar que vem do mangue sustenta os laços da comunidade, a forma de vida e os saberes dela", diz o servidor público Filipe Fernandes, que participa da festa pela segunda vez.

Os visitantes são recebidos nas casas dos moradores do Cumbe. Até quem não apoia o movimento quilombola se beneficia do turismo comunitário, alugando as casas para a Associação e participando da economia criativa que aquece o comércio local durante todo o fim de semana, com a venda de artesanatos, pinturas, roupas, bebidas e alimentos.

As noites de sexta e sábado são um espetáculo à parte de conhecimento, cultura e arte. Quem abre esse movimento é o cortejo pela comunidade com o grupo Maracaty Nação Bons Ventos e os Papangus do Cumbe. Aliás, não é incomum ver visitantes desavisados levando sustos nas vielas do Cumbe com as brincadeiras desses personagens carnavalescos. Rodas de coco e teatros de bonecos completam a partilha de saberes tradicionais.

Por meio de pesquisas e documentários exibidos na festa, é possível perceber a rede de solidariedade formada com universidades, instituições nacionais e internacionais, pastorais e movimentos sociais, que fomentam a visibilidade do quilombo como ponto de cultura viva e denunciam o racismo ambiental, garantindo que os quilombolas continuem resistindo às ameaças de empreendimentos predatórios.

A palavra do Estado
O superintendente do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace), João Alfredo Telles, participou pela primeira vez da festa. Ele ressaltou o papel histórico das comunidades tradicionais na formação cultural do Ceará e a dívida social que o Estado ainda carrega com esses povos. "Essas comunidades, sejam indígenas, quilombolas, povos de terreiro, pescadores ou ciganos, são a base da nossa identidade. São elas que guardam os saberes e modos de vida que sustentam o que somos enquanto povo", apontou.

Segundo João Alfredo, o Idace tem buscado fortalecer o diálogo com essas populações e avançar na regularização fundiária dos territórios tradicionais, mas classificou o Cumbe como um caso complexo. "Aqui temos terrenos de Marinha, que são de responsabilidade da União; áreas particulares, que cabem ao Incra; e também terras devolutas, que são do estado. Nós estamos identificando essas áreas para somá-las e garantir a regularização fundiária", disse o superintendente. "Por tudo o que o Cumbe representa, pelo tempo dessa luta e pelo seu valor simbólico, é uma entrega que queremos fazer. Para mim, é uma questão de honra", afirmou.

Desde dezembro de 2014, o Quilombo do Cumbe é certificado pela Fundação Cultural Palmares. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) iniciou o estudo sobre a delimitação da área do Cumbe em 2015, mas o processo nunca foi finalizado.

Como dizia Nêgo Bispo: "Mesmo que queimem a escrita, não queimarão a oralidade. Mesmo que queimem os símbolos, não queimarão os significados. Mesmo queimando o nosso povo, não queimarão a ancestralidade."

Editado por: Camila Garcia

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