De Povos Indígenas no Brasil

“Digo apenas simplesmente o que vi com meus olhos”

Registro do discurso de um chefe Tupinambá no século XVII
Chefe Momboré-uaçu - Aldeia de Essauap, Maranhão - 1612

Vi a chegada dos peró [portugueses] em Pernambuco e Potiú; e começaram eles como vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró não faziam senão traficar sem pretenderem fixar residência. Nessa época, dormiam livremente com as raparigas, o que nossos companheiros de Pernambuco reputavam grandemente honroso. Mais tarde, disseram que nos devíamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e edificarem cidades para morarem conosco.

E assim parecia que desejavam que constituíssemos uma só nação. Depois, começaram a dizer que não podiam tomar as raparigas sem mais aquela, que Deus somente lhes permitia possuí-las por meio do casamento e que eles não podiam casar sem que elas fossem batizadas. E para isso eram necessários paí [padres]. Mandaram vir os paí; e estes ergueram cruzes e principiaram a instruir os nossos e a batizá-los. Mais tarde afirmaram que nem eles nem os paí podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem. E, assim, se viram os nossos constrangidos a fornecer-lhos. Mas não satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram também os filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nação; e com tal tirania e crueldade a trataram, que os que ficaram livres foram, como nós, forçados a deixar a região.

Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós o fizestes somente para traficar. Como os peró, não recusáveis tomar nossas filhas e nós nos julgávamos felizes quando elas tinham filhos. Nesta época, não faláveis em aqui vos fixar. Apenas vos contentáveis com visitar-nos uma vez por ano, permanecendo entre nós somente quatro ou cinco luas. Regressáveis então a vosso país, levando os nossos gêneros para trocá-los com aquilo de que carecíamos.

Agora já nos falais de vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortalezas para defender-vos contra os vossos inimigos. Para isso, trouxestes um Morubixaba e vários paí. Em verdade, estamos satisfeitos, mas os peró fizeram o mesmo.

Depois da chegada dos paí, plantastes cruzes como os peró. Começais agora a instruir e batizar tal qual eles fizeram; dizeis que não podeis tomar nossas filhas senão por esposas e após terem sido batizadas. O mesmo diziam os peró. Como estes, vós não queríeis escravos, a princípio; agora os pedis e quereis como eles no fim. Não creio, entretanto, que tenhais o mesmo fito que os peró; aliás, isso não me atemoriza, pois velho como estou nada mais temo. Digo apenas simplesmente o que vi com meus olhos.

Os Tupinambá e a França Equinocial

por Beatriz Perrone-Moisés (antropóloga, USP)

Esse discurso foi registrado pelo missionário Claude d’Abbeville, em sua História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão (1614; aqui transcrito da tradução brasileira por Sérgio Milliet, São Paulo: Martins, 1945, p. 115-116). Proferido diante de um grupo de franceses que, em missão diplomática, tratavam de estabelecer a aliança com os povos indígenas da região, teve um grande impacto sobre os presentes. A resposta que lhe deu o intérprete-embaixador dos franceses, Des Vaux, eventualmente permitiu que a aliança fosse selada e que os franceses instalassem, no Maranhão, a sua França Equinocial. A colônia foi conquistada pelos portugueses dois anos mais tarde. Sob o domínio dos peró, os Tupi da região tiveram o mesmo destino que os de Pernambuco, tal como o descreveu Momboré-uaçu. Alguns anos mais tarde, já não havia registro de nenhuma aldeia Tupi livre na costa da colônia do Brasil.