De Povos Indígenas no Brasil
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“Eu tenho a bala na capa do coração”

Norivaldo Mendes Guarani Kaiowá, sobrevivente ao massacre de Caarapó, no Mato Grosso do Sul, denuncia as armas que violam os direitos de seu povo: em seu território, a arma; em Brasília, a caneta

Eu sou um dos sobreviventes do massacre de Caarapó, que aconteceu nesse último ano [em 2016]. Inclusive eu tenho a bala na capa do coração, por lutar pelo nosso direito. Então, eu estou aqui [no Acampamento Terra Livre] apresentando a minha comunidade [guarani kaiowá] e todas as etnias de Mato Grosso do Sul. Cada um tem a sua articulação, mas eu estou acompanhando cada organização.

A gente vem sofrendo grandes ameaças da segurança do Estado: Polícia Militar, Polícia Federal (que esteve semana passada para cumprir a reintegração de posse, suspensa no último instante). Bastante família, criança, idoso, tinha naquele lugar. Eles não iam recuar, iam permanecer ali para mostrar para o mundo e para o Brasil como é que o Estado brasileiro trata o povo indígena desse país. Então pensamos, não achamos caminhos. O governo que vem nos matando na caneta aqui em Brasília, lá na nossa base ele mata à bala. A gente vem sofrendo muitas consequências por estar retomando a nossa terra, que é a nossa terra. Hoje, a gente está ameaçado de ser expulso de novo da nossa terra (Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I) - que já foi publicada [identificada pela Funai], que já é reconhecida como uma área indígena, e hoje a gente sofre essa ameaça. Então a gente se sente inseguro.

Rezadoras guarani e kaiowá reunidas em Douradina, a cerca de 50 quilômetros de Dourados (MS). © Marcello Casal Jr/ABrRezadoras guarani e kaiowá reunidas em Douradina, a cerca de 50 quilômetros de Dourados (MS). © Marcello Casal Jr/ABr

A gente se sente inseguro, porque nós - que somos o povo originário desse país - a gente não tem segurança nesse país. De pedir, falar assim: "o governo está ao nosso lado". Em nenhum momento está ao nosso lado. O governo está querendo que a gente acabe mesmo. Acabar com o nosso direito. Hoje você vê que eles estão aplicando leis, cada vez mais leis, aplicando Marco Temporal, aplicando PEC 215, esse [parecer 001/2017] da AGU que eles tão aplicando. Então a gente não tem pra onde correr. É o único jeito, entregar nossa vida e ir pra luta. Ou derramando nosso sangue, ou entregando a nossa vida, mas vamos lutar pelo nosso direito e pela nossa terra e mostrar como são os povos indígenas.

Hoje a gente está aqui, nesse [Acampamento] Terra Livre, nós estamos unindo a nossa força com todas as etnias, porque isso vai ser muito importante para nós. Para mostrar para o mundo como são os povos indígenas desse país, que vêm sofrendo as consequências de todas as leis que o governo aplica sobre o direito dos povos indígenas.

[Nessa última reintegração de posse], a gente conseguiu articular bastante com várias pessoas, com nossos indígenas mesmo. O delegado foi lá para negociar, já estava pronto para eles atacarem. Na verdade, foi uns 15 minutos, a defesa. Eles já estavam chegando, faltando 5 km para chegar, para atacar. Inclusive helicóptero já estava sobrevoando em cima de nós, três deputados foram segurar ele no momento, enquanto isso os parceiros também conseguiram barrar aqui em Brasília. Porque eles iam invadir. Porque se o deputado não fosse segurar ele por um minuto, eles iam chegar até nós. Mas o helicóptero já estava sobrevoando nós. Inclusive as criança tava chorando. É dolorido... de ver isso, de ver as crianças chorando já. Os idosos não têm como correr. Então eles iam permanecer ali e iam entregar sua vida, e as crianças também. Todos nós iamos entregar nossa vida pelo nosso direito. Então... eu sinto bastante também. Que graças ao nossos deputados que foram barrar por um minuto, que não chegou até nós a Polícia Federal. Enquanto isso, os nossos apoiadores estavam pra cá pressionando também.

Conseguimos segurar. Não foi totalmente segurado, foi suspenso por um tempo só. E pode retornar de novo essa reintegração de posse. Então a gente tá sendo ameaçado sim. A gente está sofrendo essas ameaças com todas as nossas crianças e nossos anciões que estão lá. A gente vai aguardar a resposta, para mais pra frente, o que que vai ser.

Eu deixo meu apelo pra todos: que venha ver nossa situação de perto, venha conhecer mais de perto. Porque eu peço, eu dou meu apelo: de ir lá conhecer como é a nossa realidade, o que a gente vem sofrendo de três anos para cá. Massacre, tiroteio, ataque... De primeira vez era dos fazendeiros, agora não são mais. São só da Polícia Federal. Então a gente tá sofrendo muito e não tem pra onde correr. O único jeito é a gente encarar e entregar nossa vida pelo nosso direito, pelo nossos filhos.

Uma mensagem que eu quero deixar para todos os apoiadores que apoiam as causas indígenas: que venham com nós, e se manifestem com nós também. A gente agradeceria desde já, esses apoios que vocês derem pra nós. Mas... para os políticos e para os autoridades, eu peço que enxergue, que obedeça nossa lei. A gente tem nosso artigo [n. 231, da Constituição Brasileira] que não está sendo respeitado. Que olhe para nosso artigo. Nós temos direito, nós somos seres humanos! Nós somos originários desse país! Como vai ser hoje? A gente não está sendo considerado como ser humano...

O depoimento acima foi registrado durante o 15º Acampamento Terra Livre (2018), em Brasília (DF), por Giovanna Marra, Maria Carolina Botinhon e Mario Brunoro (ISA).