De Povos Indígenas no Brasil

“Não sabia se morria de sede ou de fome”

por Luiz Kaiowá

Naquela época a Funai não olhava por nós. Um dia, nós fomos em Campo Grande. Nós ficamos lá, naquela linha do trem de ferro. Fiquei doze dias na estrada. Pedia. Comia se me davam; comia se me davam. Aí... da Funai. Aí veio aquela sopa de milho. Vamos falar... polenta de milho, polenta doce. Aí deu pra nós... "Volta pra sua terra! Não é pra ficar andando, não... Não fica andando". Aí mandou nós sairmos e nós saímos rodando a estrada de novo. Nós saímos, não tinha aquela Nova Alvorada do Sul, não tinha casa; só tinha uma casa, que era um hotel-dormitório. Nós jantamos ali. Estava preparado para construir. Aí nós seguimos... Aquela ali era a estrada de cascalho. Não sabia se morria de sede ou se de fome. Era louco...

Nós achamos uma companhia lá na frente, com três dias [de caminhada]. Ele colocou matula pra nós e nós seguimos. Nós não sabia era [...], nós não sabia era como, não sabia o que era sofrimento, não queria saber de nada. Com quinze dias, vinte dias, chegamos a São Paulo, capital São Paulo. Naquela época São Paulo era pequeno. Se chegava por aqui, ia pro oeste; e aqui descia pra baixo. Você via a cidade looooonge, como assim no Mbokaja. Mbokaja é bem mais pertinho. Você via longe e ia de a pé. Aqui nós descemos de carona; naquela época já existia carona e hoje não está existindo. Aí nós fomos: eu, Pedrinho, Anibal e outro, Joselino. E outro, Francisco. São cinco. E um tuja, um menino desse tamanho; menino carijó. Pequeno, daquele tamanho. Foi de a pé, sem segurança. Foi de a pé. Aí nós fomos.

Naquela época a Funai não olhava o índio, não. Hoje a Funai tem que colocar assim, ó: "O meu índio... eu gosto de índio! Eu gosto de índio, eu gosto de índio!". Que nada! Eu conheço. Eu fui de ponta cabeça até o último. Eu, quando eu vejo a pessoa [dizer] "eu gosto", aqui está festejando, está pulando alto que não gosta da pessoa. Até o pai da gente não gosta da gente! Pode saber bem que até o pai da gente não gosta da gente! Gosta, mas não é muito! [risos]

É verdade! É realmente. Aí nós viemos, nós embora... Nós via aquela onça, atrás daquele mandiocal assim. Uma baita onça assim: "Oh a onça lá! A onça lá!". Nós tinha oração pra onça; o nativo tem oração pra onça não pegar. Você pode pousar aqui na beira da estrada, pode aqui e nem vê ali.

Fiquei pra lá... Acabou aquela matulita, nós tínhamos rapadura e farinha dentro da mochila. Nós mastigávamos aquilo pra enganar o estômago. [...] Aí nós dormimos na rua. Aí chegou o cabo. [...] Você não sabe o rumo... Nós já andamos aí pra achar a migração, nós não achamos.

"Entra aí!". Colocou a gente dentro do camburão. Ficamos lá 90 dias. Aí nós fomos pro Rio. No Rio ficamos um ano e oito meses. Aí falaram: "Vocês vão pra Belo Horizonte". Aí nós fomos pra Belo Horizonte. Chegamos em Belo Horizonte. Meio-dia chegou o cabo Antônio, que era Krenak lá de Krenak, de Espírito Santo, né? Na divisa. Aí chega o cabo Antônio. Chamou o Anibal, o Pedro e o outro, Francisco. Nós ficamos eu e o Joselino lá... na época falava pensão. Pensão de Dona Geni. Ficamos lá. Lá no centro de Belo Horizonte.

No outro dia veio de novo, nós fomos lá pra Casa da Floresta. Já era perto do Instituto Agronômico lá no prédio da Funai também - só que lá já é a Terceira Cavalaria. Tinha uma casa grande... Ficamos tempo lá. Seis anos, por aí. (...)

No outro dia, o Dr. Silva: "Eu vou levar você lá em Maxakali". Começou a falar: "Eu vou levar vocês lá em Maxakali". No outro dia nós pegamos aquela Secatur, caminhonete. Aí nós fomos. De lá nós viajamos um dia, dois dias, quando foi três dias que chegamos no Posto Maxakali. Aí já ficamos lá. Nós chegamos dia 22 de agosto, em 1950. Parece, 1950. 1949, por aí. Desde pequeno.

[Fomos] em dois. Era o meu primo. O Joselino já morreu. Polícia mataram ele. Andar e não achar o que quer. Não achar o certo. Chegamos [aqui]. Eu cheguei foi 1978 aqui. Cheguei no dia 3 de fevereiro aqui em Lagoa Rica. De noite ainda... Fevereiro, dia 3, à noite. Na época essa estrada não tinha, a pista não tinha ainda. Não tinha asfalto. Era uma poeira. E o tal de Penga, professor, morava aqui, bem perto da aldeia já. Nós encontramos ele lá em Presidente Prudente, lá no Paranazão. Foi lá no ônibus, onde nós estávamos. Aí ele veio: "Oh, che ray'i. Ele gostava de falar che ray'i". Ele conhecia nós. Ele é dali e foi servir quartel lá em São Paulo. Ele já morreu também, tem tempo já.

Indígenas soldados

Tem bastante! Tem, tem, tem muito! Tem o índio soldado Kalapalo, tem Kayapó. Kalapalo não. Kayapó, Kariri, Calha Norte. Tem Tupiniquim, tem vários. Só soldado, só nativo. Totó era Maxakali. Totó é nativo maxakali. E tupi-guarani. Ele é civil. Totó, Quelézim, Dival, Doutor, Carmino, quem mais? Carmino, quem mais? Rondon só passou; não serviu não. Totó, Quelezinho são irmãos. E o Dival já é outro. E o outro é Doutor. Tem outro mais, tem, Quimquim. Quimquim era louco. Quando ele bebe pinga, sai da frente; o facão come. Cortou tudo a mão do Guido. Foi feio. Eu não quero nem lembrar o que eu passei. Me entregar pro Deus.

Trecho de entrevista em vídeo concedida por Luiz Kaiowá em 15 de fevereiro de 2019 à pesquisadora Tatiane Klein, com a participação de Carolina Santanna, Felipe Almeida e Rafael Monteiro Tannus