De Povos Indígenas no Brasil

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Antes que o céu caia

29/06/2014

Autor: SERVA, Leão

Fonte: FSP, Serafina. p. 16-19



Documentos anexos


Antes que o céu caia

Líder indígena brasileiro mais conhecido no mundo, o ianomâmi Davi Kopenawa lança livro e participa da Flip enquanto relata o medo dos efeitos das mudanças climáticas sobre a Terra

Leão Serva

Davi Kopenawa está triste. "A cobra grande está devorando o mundo", ele diz. Em todo lugar, os homens semeiam destruição, esquentam o planeta e mudam o clima: até mesmo o lugar onde vive, a Terra Indígena Yanomami, que ocupa 96 mil km2 em Roraima e no Amazonas, na fronteira entre Brasil e Venezuela, vem sofrendo sinais estranhos. O céu pode cair a qualquer momento. Será o fim. Por isso, nem as muitas homenagens que recebe em todo o mundo aplacam sua angústia.
Ele decidiu escrever um livro para contar a sabedoria dos xamãs de seu povo, a criação do mundo, seus elementos e espíritos. Gravou 15 fitas em que narrou também sua própria trajetória. "Não adianta só os brancos escreverem os livros deles. Eu queria escrever para os não indígenas não acharem que índio não sabe nada."
O antropólogo francês Bruce Albert, seu amigo, fluente na língua ianomâmi de Davi, foi responsável por transformar as gravações em livro: "Juntei assim um enorme arquipélago de depoimentos [93 horas de gravação ou 1.100 páginas de transcrição]. A composição do texto consumiu um considerável trabalho de tradução e edição para chegar às 800 páginas da versão final", diz Bruce. "Descrevo esse trabalho, a amizade de 35 anos com Davi e como nasceu este projeto de coautoria num ensaio no final do livro."
A obra foi lançada em 2010, na França (ed. Plon), e no ano passado, nos EUA, pela editora da Universidade Harvard. Com o nome "A Queda do Céu", está sendo traduzido para o português pela Companhia das Letras. No fim de julho, Davi vai participar da Festa Literária de Paraty, mas a versão em português ainda não estará pronta. O lançamento está previsto para o ano que vem.
O livro explica os espíritos chamados "xapiris", que os ianomâmis creem ser os únicos capazes de cuidar das pessoas e das coisas. "Xapiri é o médico do índio. E também ajuda quando tem muita chuva ou está quente. O branco está preocupado com a mudança climática, que não chove mais em uns lugares e em outros têm muita chuva? Ele ajuda a nossa terra a não ficar triste."
Nascido em 1956, Davi logo cedo foi identificado como um possível xamã, pois seus sonhos eram frequentados por espíritos. Xamã, ou pajé, é a referência espiritual de uma sociedade tribal. Os ianomâmis acreditam que os xamãs recebem dos espíritos chamados "xapiris" a capacidade de cura dos doentes. Davi descreve assim sua vocação: "Quando eu era pequeno, costumava ver em sonho seres assustadores. (...) Não sabia o que me atrapalhava o sono, mas já eram os xapiris que vinham a mim". Quando jovem, recebeu a formação tradicional de pajé.
Na adolescência, teve contato com uma missão da organização norte-americana Novas Tribos do Brasil, entidade evangélica que procura converter índios à religião cristã. O proselitismo teve um efeito inverso: "Há muito tempo não quero mais ouvir suas palavras".
Desse período, ficou o domínio do português (com forte sotaque). Com cerca de 40 mil pessoas (entre Brasil e Venezuela), em todo o mundo os ianomâmis são o povo indígena mais populoso a viver de forma tradicional em floresta. Poucos falam português. Davi logo se tornou seu porta-voz.

PLANETA DOENTE
Davi Kopenawa tem urgência. Mesmo em sua terra coberta de florestas, há sinais de alterações graves. "No ano passado, a alma do nosso planeta ficou doente, parou de chover, ficou mais quente. O rio Grande e o rio Branco ficaram secos." Por isso, refere-se à construção de hidrelétricas na região como "mohoti" (loucura): "O governo só pensa em produzir luz para iluminar as cidades. Não pensa em não destruir. Para nós, isso só vai trazer problemas".
Além das alterações no ambiente, sua maior preocupação são as doenças, que crescem apesar dos gastos do Ministério da Saúde só aumentarem: "Não falta dinheiro, falta quem queira trabalhar e ser bom para os índios". O Ministério Público Federal em Roraima suspeita de irregularidades nos altos gastos com aluguel de aviões pela Secretaria de Saúde Indígena, tirando capacidade de investir em prevenção, médicos e remédios.
Nas comunidades, as enfermidades mais graves são principalmente aquelas levadas pela mineração ilegal: "Desde 1986, os garimpeiros invadem e trazem problemas. Mesmo expulsos, deixam para trás as doenças venéreas e a malária. E eles sempre voltam, porque a Funai não tem orçamento para combater e vigiar".
Apesar dos motivos de preocupação, nos últimos meses, Davi também tem tido razões de alegria: no último dia de maio, deixaram a Terra Yanomami os últimos fazendeiros que tinham propriedades dentro da área, delimitada em 1992. E saíram graças a um acordo entre índios e empresários, que pôs fim a uma disputa judicial que durava 22 anos.
O xamã e líder tribal tem atraído muita atenção. Recentemente, seu povo recebeu as visitas do ex-jogador inglês David Beckham e do fotógrafo Sebastião Salgado. Antes, veio o rei Harald 5o, da Noruega.
O monarca norueguês já estava instalado em uma rede na comunidade de Davi, num lugar chamado Demini (na região centro-sul da Terra Yanomami), quando a imprensa brasileira soube que o chefe de Estado estrangeiro veio ao Brasil para conhecer o líder indígena. Beckham foi visitar os ianomâmis em março.
Até poucos dias atrás, Davi Kopenawa não conhecia a importância do craque inglês. Ele não acompanha futebol. Agora mesmo, enquanto o mundo olha a Copa, ele pretende estar em sua casa, no Demini, olhando o céu, antes que ele caia sobre a Terra. O fim.

FSP, 29/06/2014, Serafina, p. 16-19

http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2014/06/1476751-lider-ianomami-participa-da-flip-e-atrai-atencao-de-david-beckham-e-rei-noruegues.shtml
 

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