De Povos Indígenas no Brasil

Notícias

"Ser indígena hoje é sinônimo de resistência", diz Nara Baré, a primeira mulher a assumir a Coiab

22/09/2017

Autor: Maria Fernanda Ribeiro

Fonte: Amazônia Real amazoniareal.com.br



Francinara Soares Baré, a Nara Baré, de 39 anos, é a primeira mulher a assumir a liderança da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a maior organização indígena do Brasil, criada há 28 anos. A eleição aconteceu em 30 de agosto na aldeia do Alto Rio Guamá, no Pará, e reuniu cerca de 600 lideranças indígenas de toda a Amazônia brasileira.

Fundada em 1989 e sediada na cidade de Manaus (AM), a Coiab representa 160 povos de nove estados amazônicos. São eles: Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Juntos, abrangem cerca de 60% do total da população indígena do país, cerca de 440 mil pessoas. Somado a isso, reúnem 403 terras indígenas demarcadas e muitos outros territórios que ainda não foram regularizados.

Nascida em São Gabriel da Cachoeira, município localizado a 835 quilômetros de Manaus com acesso somente por vias fluvial e aérea, Nara é filha de mãe indígena da etnia Baré. O pai é paraibano. O município, que fica na região do Alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela, possui 23 etnias diferentes, sendo que 90% da população é indígena. O restante dos habitantes são não-indígenas, sendo que a maioria formada por militares que atuam nas Forças Armadas na área fronteiriça.

Casada com um não-indígena e mãe de um filho - "por enquanto", como ela mesmo enfatizou - de cinco anos, Nara Baré foi criada em um ambiente em que as mulheres não tinham tanta voz, mas já lutavam por isso e se destacavam pela iniciativa em conquistar o protagonismo do movimento indígena.

A tia-avó, Rosa, foi a primeira mulher eleita vereadora em São Gabriel da Cachoeira em um tempo que o sexo feminino sequer tinha direito ao voto mas, segundo contou Nara, as esposas dos militares convenceram os maridos a optarem por ela na hora do pleito. "Tia Rosa" foi até homenageada recentemente na cidade e ganhou um salão com seu nome na Câmara de Vereadores.

No entanto, Nara reconhece que o movimento para que as vozes das mulheres pudessem ser realmente ouvidas começou na região do Alto Rio Negro na década de 1980. "Nós mulheres nunca tivemos a voz realmente. Nós tínhamos porta-vozes, que eram nossos irmãos, nossos pais, nossos maridos. É diferente de hoje, porque estamos juntos com eles. Hoje a nossa voz vai muito mais longe."

Antes de ser eleita para a coordenação-geral, Nara atuou como tesoureira da Coiab. Ela também cursou administração na Universidade Estadual do Amazonas (UEA), mas não concluiu por já estar dedicando o seu tempo ao movimento indígena. Mas foi lá que ingressou no Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam) que, encabeçado por duas mulheres, estavam num processo de retomada do trabalho. Foi sua primeira participação efetiva em uma organização que trabalhava pela melhoria de vida dos povos indígenas. E foi nesse processo que percebeu que trabalhar pela causa seria sua melhor graduação.

"Devido a toda essa conjuntura, essa ameaça de direitos que vivemos no nosso país e que só vem piorando, a nossa luta é por uma causa, é pelo nosso direito de viver. É pelo bem-estar da minha família, dos povos indígenas. Minha faculdade hoje é o movimento indígena. Meus professores são os caciques", afirma ela.

Atualmente, Nara mora em Manaus, mas a saudade do seu povo e da sua aldeia não cessa nunca. Sente falta do rio, da família, da alimentação e da liberdade de uma vida sem muros. "Mas minha mãe ainda me manda peixe, goma e tucupi."

Nara conversou com a Amazônia Real sobre quais as metas da Coiab em sua gestão, da importância da mulher desempenhar um papel como liderança e a alegria de ser inspiração para demais indígenas de outras partes do país.

Amazônia Real - Como será a nova gestão da Coiab, agora com você assumindo a coordenação-geral?

Nara Baré - A gestão anterior da Coiab foi um desafio muito grande. Pegamos uma gestão sem recurso financeiro, sem credibilidade perante os parceiros financiadores e sem credibilidade perante sua base. Nesses quatro anos trabalhamos muito, mesmo sem recurso, porque a Coiab é uma potência política muito forte. Então essa fortaleza não se rompeu, mas precisa alinhar essas articulações junto com os parceiros e financiadores, e fazer com que sua rede de organização se sinta Coiab.

Na assembleia até falamos pela minha continuidade na coordenação executiva mas, agora como coordenadora-geral, não é pela continuidade do trabalho. Mas pela inovação. Não na gestão política, mas na participação. Agregando o conselho deliberativo e fiscal, fazendo com que nossa rede de apoiadores se sinta fortalecida.

É pela continuidade e pela inovação. Temos que nos readequar diante de toda essa conjuntura de ameaças. As organizações politicas têm um papel fundamental não somente de pressão política, mas de mobilização.

É necessário estar sempre atento para qualquer comando, porque os retrocessos são diários. A cada momento, a cada segundo, a gente não tem como estar parado.



Amazônia Real - Como será a atuação da Coiab com as bases e suas organizações em uma região tão grande, complexa e de etnias diferentes?

Nara Baré - Queremos justamente trazer a responsabilidade. A Coiab tem seus conselheiros em cada estado. O conselheiro é a peça fundamental e o porta-voz na sua região. No Amazonas, estávamos com dificuldade dos conselheiros, muitos não sabiam qual era seu papel. O conselheiro precisa de capacitação no sentido de ter ferramentas e informações corretas para disseminar na sua base.

A gente precisa ter bem claro quem são nossas organizações e saber a nossa base nas calhas dos rios. A Coiab não é de um só povo. Precisamos também trabalhar a parte de comunicação. Precisamos ser a fonte da notícia. E não apenas a notícia.

Estamos com uma proposta ainda nesse semestre de fazer a primeira assembleia dos povos indígenas do Amazonas, justamente para trazer toda a participação de nossas lideranças.



Amazônia Real - Qual foi a representatividade da mulher na assembleia da Coiab e o que representa a escolha inédita de uma mulher para o cargo?

Nara Baré - A assembleia da Coiab tinha 70% de homens. As pessoas achavam que era quase impossível ter uma mulher à frente da Coiab nesse contexto. Eram 600 pessoas participando. Tinham 200 delegados na votação. Desses delegados a maioria era homem.

O pessoal fala que nossa sociedade é muito machista. Mas também é compreensiva. Eles sentiram e viram pela minha postura, pelo trabalho que a gente vem desenvolvendo... Não era a Nara Baré, mas era uma família de indígenas da Amazônia, lideranças que tiveram juntos conosco e que viram a credibilidade que a gente traz. Nessa assembleia não foi uma disputa de um homem e de uma mulher indígena. Mas tem importância eles acreditarem na mulher, em mim, na minha pessoa. Como eles falam, de "ter uma grande mulher na Coiab".

Amazônia Real - O que você acha de outras lideranças mulheres também assumirem funções de liderança nas organizações?

Nara Baré - Esse momento também é nosso. Agora fecha um ciclo de ter uma coordenadora geral na União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab), que é a Telma Taurepang (Roraima). De ter a Nara Baré. De ter a Sonia Guajajara, na Apib. Então são três mulheres de referência. Não estamos sozinhas. Temos a força da mulher e de todos os povos indígenas.



Amazônia Real - O que é ser indígena no Brasil hoje?

Nara Baré - Desde o primeiro contato, os portugueses chegaram aqui e não foram recebidos de arco e flecha. Eles foram muito bem recebidos, como qualquer visitante, como até hoje recebemos bem quem chega a nossa comunidade. E ainda chamaram a gente de silvícolas.

De todo esse processo de ocupação e depois o de escravidão e de perseguição - somos perseguidos até hoje - ser indígena hoje é sinônimo de resistência e persistência porque mesmo na época da ditadura militar, que fomos massacrados, continuamos na resistência. Mas hoje é muito mais difícil ser índio do que antes. Porque antes nós éramos sinal de atraso, de incapacidade. Atualmente, mesmo com a Constituição assegurando nossos direitos de que não somos mais tutelados, incapazes e silvícolas, e mesmo aprendendo o português e mudando de armas, a sociedade tenta invisibilizar o indígena, mas isso faz com que sejamos muito mais fortes.



Amazônia Real - A região do Alto Rio Negro é uma das pioneiras no movimento de mulheres indígenas do país. Temos organizações que foram criadas na década de 1980, como a Associação de Mulheres do Rio Negro (Amarn), que tem sede em Manaus. Há diversas referências femininas, como Rosimeire Teles (etnia Arapaço), Miquelinha Machado (Tukano), Mariazinha Baré (Baré), etc. De que maneira você se espelha na atuação dessas mulheres indígenas que também são lideranças reconhecidas?

Nara Baré - Elas são minhas orientadoras. Essas mulheres sempre disseram que eu não estaria só. Sempre me abraçaram e me guiaram. Hoje, quando vejo outras mulheres, que não são do rio Negro e que estão passando pelo o que passamos lá na década de 80 nesse processo de ter a voz, se espelhando em nós, é muito gratificante. E me sinto privilegiada de fazer parte desse processo.



http://amazoniareal.com.br/ser-indigena-hoje-e-sinonimo-de-resistencia-diz-nara-bare-primeira-mulher-assumir-coiab/
 

As notícias publicadas no site Povos Indígenas no Brasil são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos .Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.