De Povos Indígenas no Brasil
The printable version is no longer supported and may have rendering errors. Please update your browser bookmarks and please use the default browser print function instead.

Notícias

Infraestrutura da destruição

26/04/2024

Autor: Bruna Balbi e Lanna Paula Ramos

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil - diplomatique.org.br



Com o avanço de portos no Tapajós e da Ferrogrão, indígenas e povos tradicionais do Pará colhem impactos do agronegócio

Uma estrada de ferro atravessando a maior floresta do mundo poderia ser apenas um projeto do século passado, quando a borracha alimentava o mercado europeu. O ouro branco que escorria dos troncos das árvores amazônicas modificou toda a dinâmica territorial do Rio Madeira ao Tapajós. Diz-se que o número de trabalhadores mortos na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré equivale aos dormentes assentados, concedendo o título de ferrovia do diabo. Não houve registro das mortes de indígenas. Não há dados exatos quanto aos impactos sobre a floresta. Nenhum cientista poderia prever a crise climática que estava por vir.

Infraestrutura para destruição. É como podem ser chamados os projetos pensados para a Amazônia, há séculos, e que se atualizam com a Ferrovia EF-170, conhecida como Ferrogrão, e com os empreendimentos portuários identificados no oeste paraense, nos municípios de Santarém, Rurópolis e Itaituba pelo estudo, Portos no Tapajós, lançado no dia 24 de abril e elaborado por Terra de Direitos,

O que muda é a mercadoria: ontem borracha, hoje energia, minério, soja. O objetivo da Ferrogrão é a exportação de grãos para os mercados europeu e asiático. E o que denunciam os povos é que esse fluxo é uma via de mão dupla: o trem que vai carregado de soja e milho também é o trem que vem trazendo todo tipo de veneno para ser utilizado extensivamente na produção desses grãos, e bombardeado sobre os territórios originários e tradicionais, sobre os cursos de água, e as cidades que os rodeiam.

A Aliança #FerrogrãoNão, composta por povos indígenas do Pará e Mato Grosso, movimentos populares, organizações sociais nacionais e internacionais, tem reivindicado ao governo federal o cancelamento da ferrovia de mais de 900 quilômetros de extensão, que pretende ligar o município de Sinop (MT) ao Complexo Portuário de Miritituba (PA), cortando áreas de preservação permanente e territórios indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais, deixando um rastro de destruição em nome do "desenvolvimento" e "expansão do agronegócio".

Alguns podem se perguntar: então essas pessoas são contra o desenvolvimento da Amazônia? Não. O problema das grandes obras de logística e infraestrutura pensadas para a região é que elas jamais foram feitas para as pessoas da Amazônia.

A Ferrogrão entrou no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 3, lançado pelo governo federal em 2023, no eixo "Transporte Eficiente e Sustentável". No entanto, não abrange o transporte de passageiros. A obra destinada a transportar commodities foi incluída na modalidade "estudos de novas concessões". Isso quer dizer que mesmo com as diversas denúncias dos impactos socioambientais de empreendimentos deste porte para o governo Lula, não há sinalizações significativas de abandono ou desestímulo pelo poder público a projetos do capital internacional.

A intenção de construir a Ferrogrão não se diferencia de outros projetos sustentados pelo discurso de necessidade de desenvolvimento ou progresso, mas que deixa de considerar o potencial endógeno da floresta (em pé) e das dinâmicas tradicionais das comunidades residentes na região, deixando para estas apenas os danos e a destruição.

No centro de projetos de logística pensados para a Amazônia - dos quais fazem parte a ferrovia e os inúmeros portos às margens do Rio Tapajós, no oeste do Pará - há sempre alguma mercadoria que deve ser saqueada e escoada, da forma mais lucrativa possível - ou seja, a baixos custos para as empresas transnacionais, com danos irreparáveis para as gentes e para a natureza.

Se é a Ferrogrão - pelo transporte ferroviário - a via de conexão do agronegócio entre Centro-oeste do Brasil ao Norte do país, são os portos do Rio Tapajós que, ao conectar o Brasil com o mundo, estabelecem e concretizam a trama das commodities operada pelas transnacionais.

PORTOS NO TAPAJÓS
As empresas Amaggi, ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus atuam na Amazônia brasileira, e vêm movimentando barcaças carregadas de soja desde a década de 1990 pelo Rio Tapajós. O crescimento acelerado de empreendimentos dobrou: passando de 20 portos até 2013, para 41 após a edição da Lei de Portos (Lei n 12.815) - um aumento de 105%.

A maioria deles se concentra em Itaituba, onde fica o distrito de Miritituba, previsto como ponto final da Ferrogrão. Essas mesmas empresas são as financiadoras do projeto da ferrovia, com a realização de estudos para viabilizar a concessão.

Na plataforma online Portos no Tapajós é possível observar como estão distribuídos os portos no Tapajós - assim como outros projetos como a Ferrogrão, a BR-163 e hidrelétricas - que se concentram em direção ao Oeste do Pará, fixando-se nas proximidades de centenas de comunidades tradicionais.

EMPRESAS TRANSNACIONAIS E FALHAS NO LICENCIAMENTO AMBIENTAL ESTÃO NO CERNE DO PROBLEMA HÁ ANOS
A instalação de portos voltados ao agronegócio no Tapajós teve como marco a construção do terminal portuário da Cargill. Eleita como a pior empresa do mundo pela Mighty Earth em 2019, a Cargill Agrícola S.A chegou à Santarém, em 2003, em um processo marcado por fraudes no licenciamento ambiental e violações de direitos humanos e socioambientais.

Desde o início das operações da transnacional até os dias atuais, os reflexos nos territórios do Tapajós são a redução das áreas de pesca artesanal, a insegurança alimentar, a contaminação das águas e peixes, o aumento da prostituição de mulheres e exploração sexual de crianças e adolescentes e os impactos à saúde humana decorrentes do uso de agrotóxicos nas plantações. Como apontado em estudos anteriores de Terra de Direitos sobre os portos da empresa em Santarém e Itaituba.

Isso porque os Portos da Cargill não serviram apenas para escoar a produção que já existia, mas impulsionaram a expansão da monocultura de grãos na região. Alguns desses impactos já estão sendo novamente percebidos com o anúncio da Ferrogrão, como: desmatamento, grilagem de terras e especulação imobiliária, com a expulsão de povos e comunidades tradicionais de seus territórios.

Com a ampliação da infraestrutura para escoamento de produção com rota para o mercado exterior com baixo o custo, possuir fazendas de monocultivo na região resulta em alta rentabilidade.

O avanço da infraestrutura da cadeia da soja e milho acontece concomitantemente com o aumento do desmatamento, de queimadas e à expansão da monocultura. Dados que podem ser observados em pesquisa pelo site Portos no Tapajós, que tem esses números registrados de 2003 a 2021.

O estudo "Portos e Licenciamento Ambiental no Tapajós: irregularidades e violação de direitos", que é parte do portal Portos no Tapajós, revela que metade das instalações portuárias nos municípios de Santarém, Itaituba e Rurópolis atropelou as regras do processo de licenciamento ambiental.

O estudo identificou um total de 41 portos nos três munícipios até outubro de 2023 (período de coleta de dados). Desses, 27 estão em operação no momento e apenas 5 possuem a documentação completa do processo de licenciamento ambiental.

Essas lacunas precisam ser assumidas e, devidamente, investigadas pelo órgão licenciador responsável por realizar e conceder as licenças: a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas).

Parece incoerente que o estado que se apresenta como protagonista dos debates ambientais e climáticos continue renovando licenças ambientais com indícios de irregularidades e violações de direitos. A pouca transparência pública de documentos que deveriam estar disponíveis a toda a sociedade de acordo a Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.52) também depõe contra o estado do Pará.

O licenciamento ambiental é um instrumento de garantia de direitos socioambientais e que deve ter início sempre que forem pautados projetos com potencial poluidor ou degradador da natureza. E essa natureza tem gente.

Sem os ritos necessários e sem o amplo comprometimento e transparência do Estado e empresas para mensurar, avaliar e reparar o potencial de degradação dos portos, as falhas nas etapas de licenciamento ambiental seguiram violando não somente determinações jurídicas brasileiras, mas tendo efeitos devastadores ao meio ambiente, o clima, e à vida de povos tradicionais.

Os portos construídos e ainda previstos para a região do Tapajós vêm demonstrando que os interesses das transnacionais se sobrepõem aos de milhares de pessoas que vivem na região.

O projeto da Ferrogrão está sendo concebido como a espinha dorsal da rede logística que favorece diretamente as empresas ligadas ao agronegócio, em detrimento dos direitos de povos e comunidades tradicionais à terra e ao território e à consulta e consentimento prévio, livre, informado e de boa-fé. O curioso é que essas empresas somente existem e operam porque séculos atrás outras pessoas que falavam as mesmas línguas estrangeiras invadiram estas terras e roubaram da natureza amazônica o ouro, a borracha, as vidas indígenas. Eis a gênesis da acumulação da riqueza do norte global.

Com todo esse cenário, o que se coloca para reflexão e, principalmente, para posicionamento do Estado é algo que povos e comunidades tradicionais têm anunciado com insistência há anos: é urgente construir um outro projeto de sociedade.

No Acampamento Terra Livre deste ano, encerrado em 26 de abril, milhares de povos indígenas denunciaram a Ferrogrão e cobraram pela demarcação de seus territórios. Um grande caminhão com o nome das principais empresas transnacionais do agronegócio brasileiro representou o projeto da Ferrogrão como um "Trem da destruição". Enquanto isso, em outros espaços, ribeirinhos, trabalhadores rurais e quilombolas se somam às vozes indígenas por esse outro projeto de sociedade. Um projeto dos povos da Amazônia para e com a Amazônia

É a defesa de uma saída alternativa para problemas urgentes, como da crise climática, que só pode ser aceita com reestruturação de modelos de desenvolvimento e sem anúncios políticos "verdes" vazios.



Bruna Balbi é assessora jurídica popular da Terra de Direitos

Lanna Paula Ramos é jornalista da Terra de Direitos.


https://diplomatique.org.br/infraestrutura-da-destruicao-portos-tapajos-ferrograo-agronegocio/
 

As notícias publicadas no site Povos Indígenas no Brasil são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos .Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.