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Raoni lança biografia e planeja anunciar sucessor em agosto: 'Tem que ter o compromisso de continuar o meu trabalho, a minha luta'

28/06/2025

Fonte: O Globo - https://oglobo.globo.com/



Raoni lança biografia e planeja anunciar sucessor em agosto: 'Tem que ter o compromisso de continuar o meu trabalho, a minha luta'
'Memórias do cacique' é uma coletânea de entrevistas, cantos e sonhos coletados pela família e traduzidos ao português por desejo do líder indígena

28/06/2025

Daniel Biasetto

Voz incansável na defesa dos povos indígenas e da Amazônia por décadas, o líder Raoni Metyktire se dedicou nos últimos tempos a contar aos seus tàpdjw (netos) tudo o que aprendeu em vida, viu pelo mundo e ouviu de seus avós e pajés, como reza uma antiga tradição oral do povo Mebêngôkre. Rodeado por sua família, gravou entrevistas horas a fio entre 2020 e 2023 para fazer um testamento inédito de sua sabedoria ancestral e da trajetória de luta e resistência que o tornou uma das personalidades políticas mais conhecidas do planeta. "Memórias do cacique" (Companhia das Letras), recém-chegada às livrarias de todo o país, é uma coletânea desses encontros e também um antigo desejo de Raoni ver em vida suas mensagens e experiências mais íntimas publicadas em português.

Raoni é um "museu de conhecimento", como afirmam seus netos que participaram da captação das entrevistas para a construção de sua biografia. Um deles, Patxon Metyktire, traduziu perguntas do GLOBO direcionadas ao avô e interpretou as respostas ao repórter, entre elas, uma revelação: o anúncio de que Raoni fará "seu sucessor" em agosto.

- Eu quero muito reunir as lideranças para anunciar sobre o meu sucessor, mas em agosto farei isso. Eu vou me encontrar com esses líderes e informar publicamente sobre quem vai me suceder. Esse sucessor tem que ter o compromisso de continuar o meu trabalho, a minha luta para que as gerações mais novas, a juventude, saibam e vejam o que fiz como exemplo para também seguir - revela ao GLOBO por meio de videochamada.

Com aproximados 90 anos, fala e gestos de quem ainda tem muita disposição, Raoni surge à vontade, de camisa de manga comprida aberta e seu indefectível cocar amarelo com as penas do rabo do pássaro japu, no instituto que leva o seu nome, no município de Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso. Mesmo convalescido de problemas respiratórios, o cacique transborda eloquência em suas respostas:

- Esse meu trabalho é um trabalho grande e importante. Muitos brancos me procuram para falar sobre o meu trabalho, muitos brancos me procuram por causa dessa nossa luta. Eu falo, eu participo sempre, esse é o exercício do meu trabalho de cacique e liderança - afirma.

Essa fala, essa tradição da oralidade como legado de Raoni aos seus netos, é inerente a muitos povos indígenas, mas é especialmente valorizada entre os Kayapós, etnônimo mais conhecido dos Mebêngôkre, que se autodenominam "abem mei" ou "aqueles que falam bonito".

As "Memórias do cacique" foram desenvolvidas assim, com os relatos, cantos e sonhos de Raoni, em sua língua nativa, captados por seus netos, permitindo uma perspectiva mais íntima e autêntica de se expressar, em que passagens de eventos históricos e a inserção de mitos e cosmologias fluíram de maneira natural.

Mágoa com Lula
No livro, Raoni conta histórias inéditas de um Brasil que transitou da ditadura para a democracia desde o Estado Novo. Reverencia os irmãos Orlando e Claudio Villas-Boas, com quem trabalhou no Xingu, e não economiza elogios para as atuações de Fernando Collor nas demarcações de terras importantes, entre elas a Yanomami, a maior do país; relembra suas diversas reuniões com o ex-presidente José Sarney, de quem tentou salvar um amigo com seus poderes de pajé contra um feitiço de veneno de sapo; e sua proximidade com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva - e também de sua mágoa contra seu governo que não impediu a instalação da Usina de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará.

Suas muitas contribuições na demarcação de terras indígenas além do Xingu também ganham bastante destaque em suas memórias; de como surgiu sua insólita amizade com o cantor inglês popstar Sting, que viria a se tornar "um irmão" de Raoni, por sua parceria que rendeu um tour pelo mundo em defesa dos territórios indígenas.

Raoni nos faz entender que, para os Kayapó, a floresta, os rios e os animais não são apenas recursos naturais; são seres imbricados em histórias espirituais e com papel crucial em sua mitologia. Ao descrever a paisagem ou os desafios enfrentados pela Amazônia, Raoni automaticamente evoca essas conexões, mostrando como a destruição física do território é também uma agressão ao seu universo mítico e espiritual.

Ao compartilhar suas memórias, Raoni não apenas relata fatos de sua vida ou encontros políticos mundo afora; ele os insere dentro de um contexto maior. Para o cacique que também reúne poderes de pajé, as decisões e a luta pela demarcação de terras ou contra o desmatamento não são meras estratégias políticas modernas. Elas são, em sua essência, a aplicação prática de ensinamentos passados pelos seus ancestrais. A defesa da floresta, entende, é uma obrigação herdada dos criadores do mundo, e não apenas uma questão ambiental contemporânea.

'Nós vamos continuar resistindo e existindo'
Em "Memórias do cacique", Raoni dedica ao menos dois capítulos para contar suas lembranças de seu "tempo de menino" e de quando "se tornou um rapaz", ganhou seu estojo peniano, seu botoque labial e seu cocar de penas amarelas do rabo do japu. Explica também a origem do nome Raoni (Ropni/"onça fêmea"). E de quando se viu encantado por Bekwyjkà, mulher com quem viveu por quase 70 anos (ela morreu em 2020) e teve oito filhos. Fala também da perda de alguns familiares.

Mas é na sua trajetória de guerreiro, primeiro na luta armada conta os kubê (brancos), e depois como articulador político, tendo sua fala e presença como arco e flecha, que garantiu demarcações de territórios e também respeito de personalidades como reis, papas, chefes de Estado, entre outras lideranças mundiais, e até foi cotado para o Prêmio Nobel da Paz.

Foi voz ativa no Congresso durante a abertura política e no processo de redemocratização, formando com o ex-deputado federal Mario Juruna e a liderança kayapó Paulinho Paiakan um grupo forte na elaboração do capítulo "Dos índios" da Constituinte, em 1988. Antes, em 1984, já tinha ganhado a capa de todos os jornais com a foto do puxão de orelha no então ministro do Interior, Mário Andreazza, quando cobrou pela demarcação da Terra Indígena Capoto/Jarina, em meio a protestos no Xingu.

'Caça a Che Guevara'
A obra traz ainda trechos inusitados de quando precisou liderar um pelotão 'ruim de mato" das Forças Armadas para tentar encontrar supostamente o guerrilheiro argentino Che Guevara, na serra do Cachimbo, e dos encontros que teve com o ex-presidente Jair Bolsonaro em seus sonhos.

"Memórias do cacique" é sobretudo uma aula de Brasil, um manifesto de alerta a uma sociedade que carrega uma dívida histórica para com os povos originários. Narra um passado de guerras entre etnias e suas "correrias" em meio a massacres de invasores brancos que trouxeram doenças e mais violência. Ele viu muitos parentes morrerem. "Os brancos são mentirosos, gananciosos, manipuladores. Eu sou testemunha disso."

Ao ser provocado a explicar fotografias de acontecimentos históricos dos quais participou, Raoni transcende a simples cronologia de eventos para tecer uma narrativa rica na qual o mito e a história se entrelaçam de forma indissociável, refletindo a própria cosmovisão dos Kayapó ("aqueles que vieram do buraco/fundo da água"), cujo tempo não se apresenta linear, isolado do passado. Está profundamente enraizada em seus mitos de criação e nas leis que regem o Universo, segundo sua cultura.

É assim quando Raoni explica, em narrativa poética, a origem do mundo e como seu povo chegou à floresta e ao seu território, descendo do céu por uma corda feita de algodão, depois de um guerreiro perseguir um tatu-canastra que cavou um enorme buraco e achou a terra. São essas relações com a natureza e o astral, do encantamento com a visão das matas e seus rios que dão sentido, por exemplo, a divisão de seu povo entre "dois mundos".

Pergunto a Raoni sobre o porquê de chamar tanto a atenção da nova geração de indígenas no livro. Por diversas vezes ele se queixa de uma atração pelo modo de vida dos brancos e do esquecimento de suas tradições. Ele diz acreditar muito neles:

- Eu penso que os jovens vão continuar lutando pela floresta, as novas gerações vão continuar lutando pela terra, pelos rios, pela vida, pela comunidade indígena.

Mas ele também vê em seus sonhos tempos difíceis para a Humanidade, sobretudo pelas mudanças climáticas causadas pela ação humana.

- Os nossos criadores me falam que, mesmo que eu alerte para a preservação, ter cuidado com a natureza, os brancos continuaram a destruir as florestas e os animais, as aves. Nós indígenas temos que sobreviver. Nós vamos continuar resistindo e existindo. Os donos dos rios me dizem que vai ter enchentes grandes, se continuar com essa ação humana. Vamos ter ventos fortes. A Terra pode ter problemas sérios, a Terra pode não ser mais normal. E os criadores, os donos dessas coisas, eles falam que precisamos de floresta para continuar existindo. Assim os criadores me mostram. Isso não vai ser bom para nós indígenas nem para os brancos. Os espíritos já mostraram isso para mim - finaliza.

Mais do que uma biografia convencional, a obra se configura como um legado de sabedoria ancestral transmitido através de uma abordagem que não separa o tempo presente das origens míticas, e, assim, ele revela toda a complexidade do pensamento originário de seu povo.

Após quase quatro anos de entrevistas de Raoni ao seus netos, os trabalhos de produção e edição do livro ficaram a cargo do antropólogo Fernando Niemeyer, que se apoiou nos estudos etnográficos de colegas de peso como Vanessa Lea e Gustaaf Verswijver sobre os Kayapó para elaborar um glossário, cronologia e mapas que amarram a narrativa com outras informações importantes para o entendimento da obra.

'Memórias do cacique'
Autor: Raoni Metyktire. Tradução: Paimu Muapep Trumai Txukarramãe, Patxon Metuktire, Beptuk Metuktire, Bepro Metuktire, Roiti Metuktire, Tàkàktum Metuktire, Tàkàkpe Metuktire, Kremôrô Metuktire, Pati Kayapó, Fernando Niemeyer e João Lucas Moraes Passos. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 269. Preço: R$ 89,90/ R$ 39,90 (ebook)

https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/06/28/raoni-lanca-biografia-e-planeja-anunciar-sucessor-em-agosto-tem-que-ter-o-compromisso-de-continuar-o-meu-trabalho-a-minha-luta.ghtml
 

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