De Povos Indígenas no Brasil
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Notícias
'Longe de uma verdadeira justiça': Massacre do rio Abacaxis completa 5 anos sem dura punição aos PMs envolvidos na chacina
05/06/2025
Fonte: A Nova Democracia - https://anovademocracia.com.br
"Se nós topar no rio, é suspeito. Vai se considerado suspeito, e vamos matar". Segundo o indígena Teodoro Reis, foi assim que policiais militares do Amazonas anunciaram sua chegada e mobilização na região de Nova Olinda, no interior do Amazonas, nos dias da megaoperação iniciada no dia 5 de agosto de 2020 e que acabaria conhecida como a Chacina do rio Abacaxis. O massacre foi uma vingança dos policiais contra indígenas que proibiram o secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Estado do Amazonas, Saulo Rezende, de pescar ilegalmente em um rio protegido. A operação envolveu cerco a comunidades indígenas e camponeses, torturas, sequestros e execuções. Oficialmente, os dados registram que 5 pessoas do povo desapareceram, mas as massas denunciam um total de 11 a 20 mortes.
Até hoje, as investigações sobre o caso seguem em aberto, e os familiares das vítimas não conheceram a justiça pelos crimes cometidos pelos agentes do velho Estado. Somente esse ano, 13 policias militares, entre eles o ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas, Lousimar Bonates, foram indiciados por homicídio no crime. Eles vão responder por homicídio qualificado, sequestro e cárcere privado, destruição, subtração ou ocultação de cadáver, vilipêndio a cadáver, constituição de milícia privada, fraude processual e tortura.
"Apesar de representar algum avanço, ainda estamos longe de uma verdadeira justiça", comenta o cientista social Cláudio Lima, ao AND. Ele ressalta que Bonates tem um longo histórico de "práticas violentas e acusações nunca investigadas", e que "quem conhece a região sabe da violência cometida sistematicamente pela Polícia Militar e pelo coronel [Bonates]."
Pescando ilegalmente em terra indígena
O primeiro episódio do massacre aconteceu durante os dias 23 e 24 de julho e 2020, nas águas do rio Abacaxis entre os municípios de Nova Olinda do Note e Borba, a mais de 100 quilômetros (km) da capital Manaus, e dentro dos limites da Terra indígena Kwatá-Laranjal, nas proximidades da comunidade Terra Preta.
Era o auge da pandemia de Covid-19 quando o então secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Estado do Amazonas, Saulo Rezende, levou amigos para um dia de pesca ilegal no rio. Na época, o Amazonas enfrentava uma forte onda da doença, com quase 90 mil casos de infecção e mais de 3 mil óbitos desde o início da pandemia; a estrutura hospitalar do estado sofria um colapso e a região não possuía qualquer estrutura médica próxima, sendo considerada especialmente vulnerável. O homem, porém, ignorou os avisos e adentrou o território com seus amigos.
Uma vez na comunidade, Saulo foi avisado pelos populares de que não se deveria pescar ali, pois se tratava de área protegida tanto pela questão ambiental quanto pelo isolamento da pandemia. As massas teriam afirmado que, se insistisse, receberia resposta.
O aviso não foi respeitado. Sobrinho do então presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), desembargador Domingos Chalub e nomeado para o cargo de confiança de secretário-executivo em janeiro de 2019, Saulo estava acostumado a atropelar regulamentos. Ele já tinha passagem na polícia quando, certa vez, parado em uma blitz enquanto dirigia embriagado, insultou os agentes e alegou que não poderia ser preso porque era conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e sobrinho do desembargador.
No rio Abacaxis, as massas não se intimidaram com as credenciais de Saulo e decidiram defender o seu território. A confusão levou a um confronto armado e o político foi atingido com um tiro de raspão no ombro, fugindo às pressas com a promessa de vingança. Testemunhas afirmaram que o secretário afirmou para os indígenas e ribeirinhos que iria "buscar bala".
Em depoimento, o secretário afirmou que teria sido impedido que continuar sua intrusão ilegal "por líderes da comunidade autodenominados Bacurau e Maria". Ele relata que "vários milicianos (sic), sob a ordem de Bacurau, cercaram as duas embarcações, estando os mesmos fortemente armados com armas de fogo, arma branca e tochas de fogo". Não há nenhuma prova que confirme sua versão.
A tentativa de vingança
Era o dia 3 de agosto quando a embarcação de Saulo voltou a entrar no território. Dessa vez, quem tripulava o barco eram quatro policiais militares do Comando de Operações Especiais (COE) e do Batalhão Ambiental descaracterizados e com o óbvio objetivo de realizar uma operação de vingança pessoal sob a falsa justificativa de "combate ao tráfico de drogas".
A operação, que já era parte do que foi chamado posteriormente de Operação Lei e Ordem, foi planejada pelo então secretário de Segurança Pública, o coronel Louismar Bonates.
Vendo a embarcação, os moradores da região logo entenderam que se tratava de uma ação punitiva e, antecipando os crimes do bando disfarçado, se prepararam. Na troca de tiros, dois policiais morreram e outros dois foram feridos. O confronto foi repercutido em toda a imprensa local, com esforços da polícia em criminalizar o povo sem menção à pesca ilegal ou à opeação de vingança que quase ocorreu. A repercussão do caso na imprensa foi a preparação para uma nova etapa da vingança, que dessa vez se concretizaria.
No dia seguinte ao confronto, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM) estruturou a Operação Lei e Ordem. Os números oficiais do governo contam a transferência inicial de algo entre 50 e 60 policiais militares para a região sob o comando direto do então Comandante Geral da Polícia Militar, o coronel Ayrton Norte. Fontes do Portal Amazônia Real, afirmam, entretanto, que a operação teria mobilizado mais de 100 PMs. Os militares se alojaram no Hotel Jardim Paiva, no município de Nova Olinda, e na madrugada do dia seguinte partiram para a ofensiva da operação.
O início do massacre
Os irmãos Josimar, de 25 anos, e Josivan Moraes Lopes, de 18 anos, ambos indígenas da etnia Munduruku, viajavam em uma pequena embarcação motorizada, chamada de rabeta, quando foram interceptados por oito policiais militares do Batalhão Ambiental no rio Mari-Mari.
O bando fardado executou os irmãos, afundou a embarcação, esquartejou Josivan e ocultou os cadáveres. Foram os próprios indígenas Munduruku que descobriram o destino dos parentes depois de quase 20 dias de buscas, quando encontraram o crânio de Josivan. Até hoje, foi a única parte dele encontrada.
Na comunidade Santo Antônio do Lira, estava sendo executado o camponês Eligelson de Souza Silva, de 22 anos. Policiais militares trancaram o camponês com sua família em uma casa, encharcaram todos de gasolina e ameaçaram tocar fogo na família.
Eligelson tentou fugir do cárcere dos policiais, mas foi assassinado com tiros nas costas. Os agentes tentaram forjar o uso de arma de fogo e desfazer a cena do crime, alegando legítima defesa, mas a investigação concluiu que Eligelson morreu desarmado e assassinado covardemente.
Na mesma comunidade, as massas relatam mais casos de tortura, como o de uma criança que foi esmagada entre uma parede e um freezer. Os PMs também foram acusados de destruir móveis e patrimônios da população, assim como levar quantias em dinheiro que encontravam dentro das casas.
Ainda durante a tarde deste mesmo dia, em uma incursão sem mandato na comunidade ribeirinha Monte Horeb, nas margens do rio Abacaxis, oito PMs em uma embarcação interceptaram inicialmente os camponeses Anderson Monteiro e Vandrelânia Araújo, ambos de 34 anos, juntamente com o filho da mulher e um amigo do casal.
A investigação aponta que ambos os membros do casal foram torturados por várias horas, com Anderson tendo a cabeça mutilada, antes de finalmente serem mortos por tiros de fuzil. Já o enteado de Anderson, Matheus, de 15 anos, morreu em decorrência de múltiplas golpes de arma branca em várias partes do corpo. O relatório aponta que os policiais torturaram Matheus na frente da mãe e do padrasto.
Os corpos da família foram jogados nas águas do rio Abacaxis e ficaram lá por mais de uma semana. Foram amarradas pedras em seus pés para dificultar sua localização.
Outro camponês que também foi vítima de sequestro por parte dos agentes na mesma comunidade foi Admilson Silva dos Santos, de 39 anos, conhecido como "Macaco". O homem chegou a presenciar seus amigos, o casal Anderson e Vandrelânia serem assassinados. Admilson foi visto pela última vez por testemunhas algemado em uma embarcação dos policiais e segue desaparecido, presumido morto, pois seu cadáver nunca foi encontrado.
No dia seguinte, 06/08, Benahim da Silva Freire, de 26 anos, conhecido como Bena, também foi vítima dos agentes após sair da comunidade Novo Horizonte para comprar suprimentos. Segundo o inquérito, Bena teria morrido no mesmo dia em uma abordagem da polícia. Seu corpo segue desaparecido.
Ofensiva contra os indígenas Maraguá
Uma das áreas mais afetadas pelos ataques e incursões dos PMs durante o seguimento do mês de agosto foi justamente a Comunidade Terra Preta, local onde o primeiro incidente se desenrolou e lar de ribeirinhos e de indígenas da etnia Maraguá.
Segundo Teodoro Reis, indígena residente do local, quando a PM chegou no local já declarou seu toque de recolher. "Chegaram aqui e disseram que estavam para nos proteger, mas que não podia sair ninguém daqui [da aldeia]. Diziam: 'se nós topar no rio é suspeito, vai ser considerado suspeito, vamos matar'."
Esse cerco afetou completamente toda a comunidade. Os indígenas, sem poder transitar pelo rio perdiam sua principal fonte de alimentos.
Além da fome, os indígenas tiveram que enfrentar a guerra biológica. A chegada dos militares levou a surtos de Covid-19 entre o povo local e o despejo de corpos nos rios contaminou a água usada pela comunidade. "Teve uma situação de outra aldeia em que eles [moradores] estavam tão desesperados, que foram à noite até a aldeia Terra Preta porque o pajé estava doente. A gente conseguiu ir no dia seguinte. Mas o pajé faleceu depois, porque não conseguiu atendimento", relata ao portal Amazônia Real uma ativista que viveu com os indígenas durante os dias da chacina
Para ela, o terror era constante. "A gente não dormia porque não sabia quando alguém [da PM] ia entrar lá e matar todo mundo. A gente organizava as casas e as famílias. Todos ficaram preparados". A Aldeia Mereré, uma região recém habitada pelos indígenas, chegou a ser extinta, tendo suas moradias incendiadas e uma plantação de melancias destruída.
Denúncias vêm a público
As intimidações voltaram a acontecer depois que os moradores denunciaram a violência, compartilhando imagens dos corpos da família de camponeses do Monte Horebe nas redes sociais a partir do dia 11 de agosto, para provar o assassinato, e encaminhando uma denúncia com o Ministério Público.
Dois dias depois, mais policiais retornaram à comunidade Monte Horebe com os rostos ocultos por balaclavas para pressionar o líder comunitário Frank Oliveira. Ele relata ter sido intimidado por dias para que "confessasse" onde estavam os corpos, uma armadilha para incriminá-lo pelo assassinato.
"Eles vinham todos os dias. O 'meu café da manhã' já era a lancha deles chegando no porto. Diziam: 'bora lá mostrar os corpos'. Eu falava: 'Não, capitão, eu já falei que não sei de corpos'. Passaram três dias aqui, me pressionando. Eles diziam que queriam limpar o rio."
A camponesa Rozineide Barbosa, esposa de Frank, afirmou ter sido obrigada a se ajoelhar e por as mãos na cabeça, com um dos policiais lhe apontando uma arma. Ela disse ter certeza que seu marido e filhos seriam mortos, "A gente não conseguia dormir com estrondo, som de metralhadora. A gente tinha medo de soltarem bomba aqui".
Com a generalização das denúncias e o apoio imediato de entidades democráticas nacionais e locais, iniciou-se um processo de pressão popular para o encerramento da operação genocida e pela proteção dos indígenas e ribeirinhos locais.
Apenas no dia 21/08, o Tribunal Regional Federal achou por bem determinar um fim oficial da operação na região. A operação genocida terminou com um saldo oficial de oito assassinatos e um número ainda não contabilizado de várias vítimas de tortura e ameças. Movimentos democráticos e testemunhas afirmam que o número de homicídios é ainda maior.
Massas rechaçam acusação de 'narcotráfico'
Durante todo o período do massacre, a SSP-AM, apoiada pela imprensa marrom, buscou justificar os crimes dizendo se tratar de uma operação "contra o narcotráfico". em conjunto com quase todo o aparato midiático reacionário, fez questão de propagandear a todo o momento que se tratava de uma operação "contra o narcotráfico".
As massas, porém, rechaçam essas acusações sem fundamento. O camponês Antônio Monteiro, parente de uma das vítimas, diz que a mobilização das tropas não passou de uma justificativa para uma operação punitiva contra o povo.
"Mataram pessoas inocentes que não tinham nada a ver com a história do tráfico, como aconteceu com meu filho, nora e neto", denunciou ele. "O Anderson era um filho que me ajudava muito. Ele trabalhava na roça e também tirava óleo de copaíba para sobreviver. Ainda sinto trauma com o que aconteceu com ele."
O camponês também culpa o então secretário Saulo Rezende pelo massacre. "Ele achava que tinha todo direito de entrar no rio Abacaxis, sendo ele um secretário de governo, e passar por cima de nós como autoridade. Dias depois, quando foi proibido, o governo destacou uma tropa militar para invadir o rio Abacaxis para prender, humilhar e executar".
Outros ainda vão além e indicam ainda que atividades ilegais como tráfico de drogas e garimpo existem no rio, mas não há qualquer combate do velho Estado a esses grupos, o que pode indicar inclusive ligações da reação com esse comércio clandestino.
Os criminosos
Apesar de o inquérito oficial da Polícia Federal apontar que Louismar Bonates deve ser responsabilizado por "ter assumido o risco que isso poderia acontecer", ativistas populares e acadêmicos defendem que a punição deve ser mais dura.
"Ele deveria ser responsabilizado como mandante, mas o Estado brasileiro nacional e localmente tem um histórico de uma leniência inacreditável com criminosos de farda", diz o cientista social Cláudio Lima
O AND investigou a fundo a vida e a carreira de Bonates e fornece uma lista de crimes cometidos pelo PM, mas nunca punidos. Em 2015, o Coronel foi investigado por favorecer e negociar com o grupo paramilitar que dominava os presídios do Amazonas na ocasião. Em 2019, foi acusado de ter conexões com Grupos de Extermínio locais. As acusações começaram após uma série de interceptações telefônicas de 2005 reveladas pelo portal de notícias monopolista UOL, e se desenrolaram depois de o corpo de um policial civil assassinado ter sido encontrado enterrado nas imediações do sítio pessoal do coronel.
Ainda em 2019, a PM já chefiada pelo coronel Louismar Bonates e comandada pelo coronel Ayrton Norte protagonizaram o que ficou conhecido como a "Chacina do Crespo", na qual 17 jovens foram assassinados no bairro do Crespo, na capital amazonense.
O caso chamou atenção pois, mais uma vez sob a justificativa de "combate ao tráfico de drogas", foram apresentados armamentos pesados supostamente capturados na operação. A PM afirmou que foi recebida à tiros, por isso revidou, mas absolutamente nenhum policial ou viatura tinha quaisquer indícios de confronto e a balística aponta para uma possível execução coletiva.
Em 2020 e 2021, o coronel foi investigado por ter usado a SSP-AM em um grande esquema para grampear e rastrear autoridades do Judiciário e do Ministério Público. Essa ação resultou na prisão do ex-secretário-executivo adjunto de Inteligência da SSP, Samir Garzedim Freire, e mais três investigadores da Polícia Civil.
Ainda em 2021, um dos grupos paramilitares ligados ao tráfico de drogas na cidade, organizou uma série de incêndios a carros e edifícios. Em "salve" (comunicado) divulgado por membros da organização, a ação é justificada como forma de denúncia, onde acusam Bonates de usar a Secretaria de Segurança Pública para extorquir drogas e dinheiro dos narcotraficantes.
"O coronel também tem um histórico de repressão a movimentos populares, e esteve na operação de despejo contra o Monte Horeb [ocupação na capital amazonense]", diz ao AND o dirigente do Movimento de Luta dos Trabalhadores Independentes (MLTI) Júlio Ferraz. "Foi de uma violência terrível contra os moradores", afirmou.
O dirigente também conta que Bonates "serviu ao prefeito Arthur Virgílio na repressão aos camelôs no centro de Manaus. Quebrou bancas, a cavalaria passou por cima de bancas, destruindo, batendo e aterrorizando os camelôs no centro de Manaus para tirar os trabalhadores informais da rua."
Ameaças contra a Terra Indígena continuam
As terras do povo Maraguá não tem demarcação oficial junto a Funai. Existe um pedido pendente e sem resposta do órgão federal. A delimitação do território teve que ser feita pelos próprios indígenas em conjunto com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).0
Para Ozias de Oliveira, "enquanto a terra não for demarcada, as coisas vão continuar acontecendo". "Estamos nessa luta desde 2002. A gente sabe que, para ser demarcada, demora. Mas essa nossa terra já demorou muito."
Para além das ofensivas policiais, invasões de madeireiros, grileiros e garimpeiros, a TI Kwatá-Laranjal segue sob cerco em diversas outras frentes. Atualmente, segue envolta em um imbróglio jurídico, o Estado leiloou o território para exploração de petróleo e gás, na Bacia Sedimentar do Amazonas.
Os povos da região seguem sofrendo com as severas estiagens na região, que afetam o acesso a alimentos e o trânsito da população local. Os povos indígenas denunciam que, apesar de ser um fator natural, é a negligência do Estado a verdadeira culpada por manter e aprofundar a situação precária.
Cinco anos depois do Massacre do rio Abacaxis, o clamor das massas por autodefesa de seus territórios segue em voga. Nos últimos anos, a Liga dos Camponeses Pobres (LCP) tem capitaneado os chamados para que os camponeses exerçam o direito de se defender da ação de bandos paramilitares. Em comunicado emitido em 2023, o movimento conclamou "as lideranças camponesas que não dobraram os joelhos, as lideranças de posseiros, os povos indígenas, as organizações quilombolas, as populações atingidas por barragens, por mineração e por cultivos de eucalipto, as massas proletárias e demais trabalhadores da cidade, que cada vez mais lutam em defesa de seus direitos pisoteados, a cerrar fileiras com nosso bravo campesinato, com o caminho da Revolução Agrária", afirma a nota.
https://anovademocracia.com.br/massacre-rio-abacaxis-5-anos-impunidade/
Até hoje, as investigações sobre o caso seguem em aberto, e os familiares das vítimas não conheceram a justiça pelos crimes cometidos pelos agentes do velho Estado. Somente esse ano, 13 policias militares, entre eles o ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas, Lousimar Bonates, foram indiciados por homicídio no crime. Eles vão responder por homicídio qualificado, sequestro e cárcere privado, destruição, subtração ou ocultação de cadáver, vilipêndio a cadáver, constituição de milícia privada, fraude processual e tortura.
"Apesar de representar algum avanço, ainda estamos longe de uma verdadeira justiça", comenta o cientista social Cláudio Lima, ao AND. Ele ressalta que Bonates tem um longo histórico de "práticas violentas e acusações nunca investigadas", e que "quem conhece a região sabe da violência cometida sistematicamente pela Polícia Militar e pelo coronel [Bonates]."
Pescando ilegalmente em terra indígena
O primeiro episódio do massacre aconteceu durante os dias 23 e 24 de julho e 2020, nas águas do rio Abacaxis entre os municípios de Nova Olinda do Note e Borba, a mais de 100 quilômetros (km) da capital Manaus, e dentro dos limites da Terra indígena Kwatá-Laranjal, nas proximidades da comunidade Terra Preta.
Era o auge da pandemia de Covid-19 quando o então secretário executivo do Fundo de Promoção Social do Estado do Amazonas, Saulo Rezende, levou amigos para um dia de pesca ilegal no rio. Na época, o Amazonas enfrentava uma forte onda da doença, com quase 90 mil casos de infecção e mais de 3 mil óbitos desde o início da pandemia; a estrutura hospitalar do estado sofria um colapso e a região não possuía qualquer estrutura médica próxima, sendo considerada especialmente vulnerável. O homem, porém, ignorou os avisos e adentrou o território com seus amigos.
Uma vez na comunidade, Saulo foi avisado pelos populares de que não se deveria pescar ali, pois se tratava de área protegida tanto pela questão ambiental quanto pelo isolamento da pandemia. As massas teriam afirmado que, se insistisse, receberia resposta.
O aviso não foi respeitado. Sobrinho do então presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), desembargador Domingos Chalub e nomeado para o cargo de confiança de secretário-executivo em janeiro de 2019, Saulo estava acostumado a atropelar regulamentos. Ele já tinha passagem na polícia quando, certa vez, parado em uma blitz enquanto dirigia embriagado, insultou os agentes e alegou que não poderia ser preso porque era conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e sobrinho do desembargador.
No rio Abacaxis, as massas não se intimidaram com as credenciais de Saulo e decidiram defender o seu território. A confusão levou a um confronto armado e o político foi atingido com um tiro de raspão no ombro, fugindo às pressas com a promessa de vingança. Testemunhas afirmaram que o secretário afirmou para os indígenas e ribeirinhos que iria "buscar bala".
Em depoimento, o secretário afirmou que teria sido impedido que continuar sua intrusão ilegal "por líderes da comunidade autodenominados Bacurau e Maria". Ele relata que "vários milicianos (sic), sob a ordem de Bacurau, cercaram as duas embarcações, estando os mesmos fortemente armados com armas de fogo, arma branca e tochas de fogo". Não há nenhuma prova que confirme sua versão.
A tentativa de vingança
Era o dia 3 de agosto quando a embarcação de Saulo voltou a entrar no território. Dessa vez, quem tripulava o barco eram quatro policiais militares do Comando de Operações Especiais (COE) e do Batalhão Ambiental descaracterizados e com o óbvio objetivo de realizar uma operação de vingança pessoal sob a falsa justificativa de "combate ao tráfico de drogas".
A operação, que já era parte do que foi chamado posteriormente de Operação Lei e Ordem, foi planejada pelo então secretário de Segurança Pública, o coronel Louismar Bonates.
Vendo a embarcação, os moradores da região logo entenderam que se tratava de uma ação punitiva e, antecipando os crimes do bando disfarçado, se prepararam. Na troca de tiros, dois policiais morreram e outros dois foram feridos. O confronto foi repercutido em toda a imprensa local, com esforços da polícia em criminalizar o povo sem menção à pesca ilegal ou à opeação de vingança que quase ocorreu. A repercussão do caso na imprensa foi a preparação para uma nova etapa da vingança, que dessa vez se concretizaria.
No dia seguinte ao confronto, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM) estruturou a Operação Lei e Ordem. Os números oficiais do governo contam a transferência inicial de algo entre 50 e 60 policiais militares para a região sob o comando direto do então Comandante Geral da Polícia Militar, o coronel Ayrton Norte. Fontes do Portal Amazônia Real, afirmam, entretanto, que a operação teria mobilizado mais de 100 PMs. Os militares se alojaram no Hotel Jardim Paiva, no município de Nova Olinda, e na madrugada do dia seguinte partiram para a ofensiva da operação.
O início do massacre
Os irmãos Josimar, de 25 anos, e Josivan Moraes Lopes, de 18 anos, ambos indígenas da etnia Munduruku, viajavam em uma pequena embarcação motorizada, chamada de rabeta, quando foram interceptados por oito policiais militares do Batalhão Ambiental no rio Mari-Mari.
O bando fardado executou os irmãos, afundou a embarcação, esquartejou Josivan e ocultou os cadáveres. Foram os próprios indígenas Munduruku que descobriram o destino dos parentes depois de quase 20 dias de buscas, quando encontraram o crânio de Josivan. Até hoje, foi a única parte dele encontrada.
Na comunidade Santo Antônio do Lira, estava sendo executado o camponês Eligelson de Souza Silva, de 22 anos. Policiais militares trancaram o camponês com sua família em uma casa, encharcaram todos de gasolina e ameaçaram tocar fogo na família.
Eligelson tentou fugir do cárcere dos policiais, mas foi assassinado com tiros nas costas. Os agentes tentaram forjar o uso de arma de fogo e desfazer a cena do crime, alegando legítima defesa, mas a investigação concluiu que Eligelson morreu desarmado e assassinado covardemente.
Na mesma comunidade, as massas relatam mais casos de tortura, como o de uma criança que foi esmagada entre uma parede e um freezer. Os PMs também foram acusados de destruir móveis e patrimônios da população, assim como levar quantias em dinheiro que encontravam dentro das casas.
Ainda durante a tarde deste mesmo dia, em uma incursão sem mandato na comunidade ribeirinha Monte Horeb, nas margens do rio Abacaxis, oito PMs em uma embarcação interceptaram inicialmente os camponeses Anderson Monteiro e Vandrelânia Araújo, ambos de 34 anos, juntamente com o filho da mulher e um amigo do casal.
A investigação aponta que ambos os membros do casal foram torturados por várias horas, com Anderson tendo a cabeça mutilada, antes de finalmente serem mortos por tiros de fuzil. Já o enteado de Anderson, Matheus, de 15 anos, morreu em decorrência de múltiplas golpes de arma branca em várias partes do corpo. O relatório aponta que os policiais torturaram Matheus na frente da mãe e do padrasto.
Os corpos da família foram jogados nas águas do rio Abacaxis e ficaram lá por mais de uma semana. Foram amarradas pedras em seus pés para dificultar sua localização.
Outro camponês que também foi vítima de sequestro por parte dos agentes na mesma comunidade foi Admilson Silva dos Santos, de 39 anos, conhecido como "Macaco". O homem chegou a presenciar seus amigos, o casal Anderson e Vandrelânia serem assassinados. Admilson foi visto pela última vez por testemunhas algemado em uma embarcação dos policiais e segue desaparecido, presumido morto, pois seu cadáver nunca foi encontrado.
No dia seguinte, 06/08, Benahim da Silva Freire, de 26 anos, conhecido como Bena, também foi vítima dos agentes após sair da comunidade Novo Horizonte para comprar suprimentos. Segundo o inquérito, Bena teria morrido no mesmo dia em uma abordagem da polícia. Seu corpo segue desaparecido.
Ofensiva contra os indígenas Maraguá
Uma das áreas mais afetadas pelos ataques e incursões dos PMs durante o seguimento do mês de agosto foi justamente a Comunidade Terra Preta, local onde o primeiro incidente se desenrolou e lar de ribeirinhos e de indígenas da etnia Maraguá.
Segundo Teodoro Reis, indígena residente do local, quando a PM chegou no local já declarou seu toque de recolher. "Chegaram aqui e disseram que estavam para nos proteger, mas que não podia sair ninguém daqui [da aldeia]. Diziam: 'se nós topar no rio é suspeito, vai ser considerado suspeito, vamos matar'."
Esse cerco afetou completamente toda a comunidade. Os indígenas, sem poder transitar pelo rio perdiam sua principal fonte de alimentos.
Além da fome, os indígenas tiveram que enfrentar a guerra biológica. A chegada dos militares levou a surtos de Covid-19 entre o povo local e o despejo de corpos nos rios contaminou a água usada pela comunidade. "Teve uma situação de outra aldeia em que eles [moradores] estavam tão desesperados, que foram à noite até a aldeia Terra Preta porque o pajé estava doente. A gente conseguiu ir no dia seguinte. Mas o pajé faleceu depois, porque não conseguiu atendimento", relata ao portal Amazônia Real uma ativista que viveu com os indígenas durante os dias da chacina
Para ela, o terror era constante. "A gente não dormia porque não sabia quando alguém [da PM] ia entrar lá e matar todo mundo. A gente organizava as casas e as famílias. Todos ficaram preparados". A Aldeia Mereré, uma região recém habitada pelos indígenas, chegou a ser extinta, tendo suas moradias incendiadas e uma plantação de melancias destruída.
Denúncias vêm a público
As intimidações voltaram a acontecer depois que os moradores denunciaram a violência, compartilhando imagens dos corpos da família de camponeses do Monte Horebe nas redes sociais a partir do dia 11 de agosto, para provar o assassinato, e encaminhando uma denúncia com o Ministério Público.
Dois dias depois, mais policiais retornaram à comunidade Monte Horebe com os rostos ocultos por balaclavas para pressionar o líder comunitário Frank Oliveira. Ele relata ter sido intimidado por dias para que "confessasse" onde estavam os corpos, uma armadilha para incriminá-lo pelo assassinato.
"Eles vinham todos os dias. O 'meu café da manhã' já era a lancha deles chegando no porto. Diziam: 'bora lá mostrar os corpos'. Eu falava: 'Não, capitão, eu já falei que não sei de corpos'. Passaram três dias aqui, me pressionando. Eles diziam que queriam limpar o rio."
A camponesa Rozineide Barbosa, esposa de Frank, afirmou ter sido obrigada a se ajoelhar e por as mãos na cabeça, com um dos policiais lhe apontando uma arma. Ela disse ter certeza que seu marido e filhos seriam mortos, "A gente não conseguia dormir com estrondo, som de metralhadora. A gente tinha medo de soltarem bomba aqui".
Com a generalização das denúncias e o apoio imediato de entidades democráticas nacionais e locais, iniciou-se um processo de pressão popular para o encerramento da operação genocida e pela proteção dos indígenas e ribeirinhos locais.
Apenas no dia 21/08, o Tribunal Regional Federal achou por bem determinar um fim oficial da operação na região. A operação genocida terminou com um saldo oficial de oito assassinatos e um número ainda não contabilizado de várias vítimas de tortura e ameças. Movimentos democráticos e testemunhas afirmam que o número de homicídios é ainda maior.
Massas rechaçam acusação de 'narcotráfico'
Durante todo o período do massacre, a SSP-AM, apoiada pela imprensa marrom, buscou justificar os crimes dizendo se tratar de uma operação "contra o narcotráfico". em conjunto com quase todo o aparato midiático reacionário, fez questão de propagandear a todo o momento que se tratava de uma operação "contra o narcotráfico".
As massas, porém, rechaçam essas acusações sem fundamento. O camponês Antônio Monteiro, parente de uma das vítimas, diz que a mobilização das tropas não passou de uma justificativa para uma operação punitiva contra o povo.
"Mataram pessoas inocentes que não tinham nada a ver com a história do tráfico, como aconteceu com meu filho, nora e neto", denunciou ele. "O Anderson era um filho que me ajudava muito. Ele trabalhava na roça e também tirava óleo de copaíba para sobreviver. Ainda sinto trauma com o que aconteceu com ele."
O camponês também culpa o então secretário Saulo Rezende pelo massacre. "Ele achava que tinha todo direito de entrar no rio Abacaxis, sendo ele um secretário de governo, e passar por cima de nós como autoridade. Dias depois, quando foi proibido, o governo destacou uma tropa militar para invadir o rio Abacaxis para prender, humilhar e executar".
Outros ainda vão além e indicam ainda que atividades ilegais como tráfico de drogas e garimpo existem no rio, mas não há qualquer combate do velho Estado a esses grupos, o que pode indicar inclusive ligações da reação com esse comércio clandestino.
Os criminosos
Apesar de o inquérito oficial da Polícia Federal apontar que Louismar Bonates deve ser responsabilizado por "ter assumido o risco que isso poderia acontecer", ativistas populares e acadêmicos defendem que a punição deve ser mais dura.
"Ele deveria ser responsabilizado como mandante, mas o Estado brasileiro nacional e localmente tem um histórico de uma leniência inacreditável com criminosos de farda", diz o cientista social Cláudio Lima
O AND investigou a fundo a vida e a carreira de Bonates e fornece uma lista de crimes cometidos pelo PM, mas nunca punidos. Em 2015, o Coronel foi investigado por favorecer e negociar com o grupo paramilitar que dominava os presídios do Amazonas na ocasião. Em 2019, foi acusado de ter conexões com Grupos de Extermínio locais. As acusações começaram após uma série de interceptações telefônicas de 2005 reveladas pelo portal de notícias monopolista UOL, e se desenrolaram depois de o corpo de um policial civil assassinado ter sido encontrado enterrado nas imediações do sítio pessoal do coronel.
Ainda em 2019, a PM já chefiada pelo coronel Louismar Bonates e comandada pelo coronel Ayrton Norte protagonizaram o que ficou conhecido como a "Chacina do Crespo", na qual 17 jovens foram assassinados no bairro do Crespo, na capital amazonense.
O caso chamou atenção pois, mais uma vez sob a justificativa de "combate ao tráfico de drogas", foram apresentados armamentos pesados supostamente capturados na operação. A PM afirmou que foi recebida à tiros, por isso revidou, mas absolutamente nenhum policial ou viatura tinha quaisquer indícios de confronto e a balística aponta para uma possível execução coletiva.
Em 2020 e 2021, o coronel foi investigado por ter usado a SSP-AM em um grande esquema para grampear e rastrear autoridades do Judiciário e do Ministério Público. Essa ação resultou na prisão do ex-secretário-executivo adjunto de Inteligência da SSP, Samir Garzedim Freire, e mais três investigadores da Polícia Civil.
Ainda em 2021, um dos grupos paramilitares ligados ao tráfico de drogas na cidade, organizou uma série de incêndios a carros e edifícios. Em "salve" (comunicado) divulgado por membros da organização, a ação é justificada como forma de denúncia, onde acusam Bonates de usar a Secretaria de Segurança Pública para extorquir drogas e dinheiro dos narcotraficantes.
"O coronel também tem um histórico de repressão a movimentos populares, e esteve na operação de despejo contra o Monte Horeb [ocupação na capital amazonense]", diz ao AND o dirigente do Movimento de Luta dos Trabalhadores Independentes (MLTI) Júlio Ferraz. "Foi de uma violência terrível contra os moradores", afirmou.
O dirigente também conta que Bonates "serviu ao prefeito Arthur Virgílio na repressão aos camelôs no centro de Manaus. Quebrou bancas, a cavalaria passou por cima de bancas, destruindo, batendo e aterrorizando os camelôs no centro de Manaus para tirar os trabalhadores informais da rua."
Ameaças contra a Terra Indígena continuam
As terras do povo Maraguá não tem demarcação oficial junto a Funai. Existe um pedido pendente e sem resposta do órgão federal. A delimitação do território teve que ser feita pelos próprios indígenas em conjunto com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).0
Para Ozias de Oliveira, "enquanto a terra não for demarcada, as coisas vão continuar acontecendo". "Estamos nessa luta desde 2002. A gente sabe que, para ser demarcada, demora. Mas essa nossa terra já demorou muito."
Para além das ofensivas policiais, invasões de madeireiros, grileiros e garimpeiros, a TI Kwatá-Laranjal segue sob cerco em diversas outras frentes. Atualmente, segue envolta em um imbróglio jurídico, o Estado leiloou o território para exploração de petróleo e gás, na Bacia Sedimentar do Amazonas.
Os povos da região seguem sofrendo com as severas estiagens na região, que afetam o acesso a alimentos e o trânsito da população local. Os povos indígenas denunciam que, apesar de ser um fator natural, é a negligência do Estado a verdadeira culpada por manter e aprofundar a situação precária.
Cinco anos depois do Massacre do rio Abacaxis, o clamor das massas por autodefesa de seus territórios segue em voga. Nos últimos anos, a Liga dos Camponeses Pobres (LCP) tem capitaneado os chamados para que os camponeses exerçam o direito de se defender da ação de bandos paramilitares. Em comunicado emitido em 2023, o movimento conclamou "as lideranças camponesas que não dobraram os joelhos, as lideranças de posseiros, os povos indígenas, as organizações quilombolas, as populações atingidas por barragens, por mineração e por cultivos de eucalipto, as massas proletárias e demais trabalhadores da cidade, que cada vez mais lutam em defesa de seus direitos pisoteados, a cerrar fileiras com nosso bravo campesinato, com o caminho da Revolução Agrária", afirma a nota.
https://anovademocracia.com.br/massacre-rio-abacaxis-5-anos-impunidade/
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