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Crime contra mulher indígena Kokama no Amazonas não é isolado e confirma racismo estrutural e ineficiência no sistema prisional

13/08/2025

Autor: Por Ligia Apel, da Assessoria de Comunicação do Cimi Regional Norte I

Fonte: Cimi - https://cimi.org.br



"Não estamos sozinhas. Caminhamos com as encantadas.

Cada mulher violentada se torna semente de luta.

Cada lágrima caída na terra vira raiz de resistência.

Hoje nos erguemos com o coração em chamas e os pés fincados na terra dos nossos ancestrais.

Não nos calamos diante da violência.

Não esquecemos o sangue da mulher Kokama derramado dentro de uma delegacia - espaço que deveria proteger, mas que se tornou mais uma arma contra nosso povo".

Glades Rodrigues Kokama, autora do poema, é a presidenta da Federação Indígena do Povo Kukami-Kukamiria do Brasil, Peru e Colômbia (TWRK), região do Alto rio Solimões, um cargo que trouxe responsabilidades e desafios pessoais e sociais na luta em defesa de seu povo. Para Glades, a luta é grande porque as dores dos crimes contra as mulheres indígenas e do abandono estatal são gigantes.

Passaram-se algumas semanas desde a revelação, pelo veículo Sumaúma, de uma das mais estarrecedoras violências contra mulheres indígenas, o caso da Kokama e seu bebê recém-nascido violentados por policiais militares em Santo Antônio do Içá, interior do Amazonas. Mas as dores não passam, tanto pela impunidade quanto pelas isoladas punições conquistadas a duras penas pela defesa da Kokama, ou mesmo pelo silêncio que voltou ao público sobre essa terrível realidade.

No entanto, para Glades e todas as mulheres Kokama, a dor e o sofrimento se transformam em resistência, alimentada pelas forças da natureza da qual fazem parte.

"Nós somos filhas da floresta, do rio, do céu e da memória. Nosso corpo é território sagrado.

Quem viola um corpo indígena, fere toda uma nação.

Hoje, pedimos justiça.

Mas também entregamos essa dor ao espírito da terra, para que ela nos fortaleça, nos guie, nos proteja.

Porque nós não morremos.

Nós somos as que queimam, mas não se apagam".

Com essa força que não se apaga nem se apequena, representantes da Articulação de Mulheres Indígenas Kokama do Amazonas (Amikam) participaram da IV Marcha das Mulheres Indígenas, realizada em Brasília, nos dias 3 a 7 de agosto, promovida pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), com o tema "Nosso corpo, nosso território: somos as guardiãs do planeta pela cura da Terra".

Claudete Kokama, coordenadora da Amikam, reitera o tema definindo corpo e território da mulher indígena para que o Estado não esqueça mais.

"Lembramos [durante a Marcha] algo que os povos indígenas sabem há milênios e que o Estado brasileiro insiste em esquecer. Não existe segurança da vida sem segurança do território. Para nós, povos originários, o território não é somente o chão, ele é o corpo, ele é memória, espiritualidade, história e futuro. Quando um território é invadido, queimado, contaminado ou vendido, não estão atacando apenas o espaço físico, mas também matando lentamente a nossa existência coletiva", esclareceu, explicando as motivações da Marcha.

"Nós queríamos, na Marcha, dar um basta na falta de segurança. Queremos proteção de verdade, queremos políticas feitas com escuta e presença indígena. Queremos escolas e postos de saúde nas aldeias e demarcação de nosso território, sim, mas também a demarcação do respeito, da justiça e da dignidade. Nossa segurança não pode ser pensada com base em armas e prisões. Nossa segurança é coletiva, comunitária, espiritual", enfatizou.

"Seguimos com os pés na terra e os olhos no futuro, reafirmando que nosso corpo é território sagrado - e quando tocam em nós, tocam em toda a Mãe Terra", afirmam as participantes da Marcha na carta final do encontro, que reuniu 5 mil mulheres indígenas na capital federal. "Enquanto mulheres, lideranças e guerreiras, geradoras e protetoras da vida, iremos nos posicionar e lutar contra as violações que afrontam nossos corpos, nossos espíritos, nossos territórios. Difundindo nossas sementes, nossos rituais, nossa língua, nós iremos garantir a nossa existência", sustentam as indígenas, enviando suas forças às mulheres que sofrem violência.

"Não foi apenas violência sexual, mas ela [K] foi reduzida à condição de escrava sexual por período prolongado. As cicatrizes físicas e psicológicas desse período a acompanharão para sempre. Além disso, a violação de sua dignidade como mulher e mãe e a exposição do seu filho recém-nascido à violência agravam ainda mais o risco"

Para não esquecer K

Estarrecimento. Esse foi o sentimento que tomou conta da sociedade brasileira ao receber, atônita, as informações do veículo Sumaúma, em meados do mês de julho, sobre a história de uma mulher indígena Kokama, privada de liberdade e em período de resguardo pelo nascimento do filho, na delegacia do município de Santo Antônio do Içá, interior do Amazonas. A denominamos de K para preservar sua identidade.

A reportagem do jornalista Rubens Valente está fundamentada em uma criteriosa investigação e revela uma realidade de perversidade e abuso de poder que, ao se deparar com o desenrolar dos fatos, é impossível não ficar assombrado, impassível ou indiferente.

"Entre soluços e lágrimas, do outro lado do vídeo está sentada em uma cadeira da sala do parlatório virtual do Centro de Detenção Feminino de Manaus, Amazonas, uma indígena de 29 anos, do povo Kokama. Ela descreve a Sumaúma a história chocante de uma mulher condenada por homicídio, jogada numa cela com presos homens e submetida, ao lado do filho recém-nascido, à violência sexual durante mais de nove meses pelos agentes do Estado que deveriam mantê-la em segurança". Assim começa a matéria e, a partir daí, descreve os fatos com argumentações comprovadas e corroboradas por fontes seguras.

Buscando assegurar a sobrevivência de K, os primeiros pedidos de justiça do seu advogado, Dacimar Carvalho, foram de "indenização por danos morais contra o estado do Amazonas e tratamento médico e psicológico", pedidos esses justificados por se tratar de uma série de violências sofridas por K.

"Não foi apenas violência sexual, mas ela [K] foi reduzida à condição de escrava sexual por período prolongado. As cicatrizes físicas e psicológicas desse período a acompanharão para sempre. Além disso, a violação de sua dignidade como mulher e mãe e a exposição do seu filho recém-nascido à violência agravam ainda mais o risco", afirma, relatando a gravidade dos crimes, da conduta dos criminosos e da omissão das instituições que compõem o sistema de segurança do estado.

"O corpo da mulher encarcerada, especialmente se for indígena, pobre e periférica, é tratado como território de violação"

A sociedade se manifesta

Na sequência à reportagem de Sumaúma e da repercussão na imprensa nacional, entre assombros, perplexidade, indignação e revolta, diversas organizações da sociedade civil, indígenas e não indígenas, coletivos e movimentos de defesa das mulheres e de direitos humanos, e até mesmo parlamentares se mobilizaram e fizeram o que estava ao seu alcance: manifestar publicamente sua exigência por justiça e que o Estado cumpra com seu dever, se responsabilize pelas mazelas instituídas e pare, definitivamente, de violar direitos humanos e cidadãos.

As diferentes organizações produziram diversas análises, matérias, reportagens, notas de repúdio e de solidariedade, onde avaliam e fundamentam os argumentos de que o crime contra K não é isolado, que faz parte de um problema estruturante do sistema de segurança e que se encontra no bojo de uma condição social que o Brasil vive. E que precisa ser extirpada.

"Crimes bárbaros que revelam o racismo estrutural, o patriarcado institucionalizado e a lógica necropolítica que rege o sistema prisional brasileiro" é a caracterização da Comissão para Ação Sociotransformadora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (Cepast-CNBB) e da Pastoral Carcerária para os crimes hediondos que sofreram K e outra mulher em situação de prisão. Ela também denunciou estupro cometido por um policial militar durante sua transferência do município de Humaitá para Manaus, no dia 18 de julho. Essa denúncia está no site da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas (SSP-AM).

Em nota sobre os casos, a Cepast-CNBB e a Pastoral Carcerária expressam "profundo repúdio, indignação e luto diante das gravíssimas denúncias de estupro, tortura e violação de direitos humanos". "O corpo da mulher encarcerada, especialmente se for indígena, pobre e periférica, é tratado como território de violação", afirmam as instituições, que exigem investigação, responsabilização e proteção integral, além de revisão urgente das condições de custódia das mulheres no Amazonas, com atenção especial às indígenas, gestantes e mães.

Investigação, justiça e amparo também são exigidos pelo presidente do Cimi e arcebispo da Arquidiocese de Manaus, o cardeal Leonardo Steiner. Por ocasião do lançamento do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil -dados de 2024, no dia 28 de julho, disse que a violência sofrida por K foi brutal e que o crime revela a negligência do Estado e o racismo persistente contra os povos indígenas, especialmente contra a mulher indígena.

"É o próprio Estado se utilizando dela sexualmente. É o Estado que está abusando de uma mulher indígena, e de uma mulher indígena que tem um filho, e o filho presenciou tudo. Isso é de uma brutalidade enorme. Isso é o racismo que existe na sociedade brasileira em relação aos indígenas. Esse modo de encarar o indígena como uma pessoa qualquer, não como participante, como agente da sociedade. Como a mulher indígena é tratada. 'Não é gente! Essa é indígena e podemos fazer o que se quer'. Isso é gravíssimo na nossa sociedade", afirmou o cardeal, dizendo que espera atuação e justiça por parte do Estado.

O povo Kokama do Amazonas, ocupante de várias localidades amazônicas, sentindo-se ultrajado em sua essência indígena, considerou que os crimes contra K e seu filho foram cometidos contra todo o povo Kokama. Uniu suas organizações representativas, que publicaram uma nota pública de repúdio ao crime, de solidariedade ao povo Kokama e em defesa das mulheres indígenas Kokama.

Outras 80 organizações indígenas e não indígenas da sociedade civil aderiram à nota, entre elas o Cimi Regional Norte I. Uma justiça que destrua o sistema de impunidade, que reestruture os órgãos de segurança em todas as esferas públicas, que operacionalize procedimentos de atendimento, moralize e humanize os atendimentos e que desintegre o racismo estrutural na sociedade, principalmente contra os povos indígenas e as mulheres indígenas.

"Reforçamos nosso compromisso coletivo com a defesa da vida, da dignidade e dos direitos das mulheres indígenas, e reafirmamos que violência contra uma mulher indígena é violência contra todo o nosso povo, contra nossa ancestralidade e contra o futuro que queremos construir", conclui a nota.

Outras notas foram emitidas pela sociedade civil, com mais de 200 instituições, organizações, movimentos e coletivos se posicionando e exigindo providências céleres para a solução do caso e o fim da ineficiência dos órgãos de segurança.

"a urgência em cobrar a criação de mecanismos de proteção, a integral reestruturação das unidades prisionais e delegacias e a garantia de direitos humanos e condições de trabalho dignas para servidores e custodiados - com especial atenção às mulheres - permanece um desafio inadiável e crucial"

Resultados

Foi preciso uma denúncia na imprensa, em veículos com poder de pauta pela seriedade com que tratam assuntos de relevância social, para que o caso de K fosse conduzido. Segundo o Sumaúma, em matéria subsequente, "durou dois anos o silêncio vergonhoso das autoridades sobre a denúncia de estupros de Indígena por policiais no Amazonas".

Em outra matéria, na qual lista alguns resultados, o Sumaúma explica algumas das reivindicações conquistadas pela defesa de K: indenização de R$ 300 mil, ao invés de R$ 35 mil, como o governo do estado ofereceu no início do processo; uma casa para abrigar K e sua família em segurança, pois sua mãe e outros filhos receberam ameaças; um salário mínimo à família durante um ano, para se estabelecer em uma nova cidade; prisão de quatro policiais e um guarda municipal; conversão da pena de K, que havia sido condenada a 16 anos e sete meses de prisão por coautoria no homicídio de uma adolescente, em semiliberdade; e o compromisso do Estado em fornecer tratamento psicológico a K.

O Ministério Público do Amazonas, a Defensoria Pública do Estado do Amazonas e o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) entraram em ação para o alcance desses resultados, aponta a reportagem. A repercussão alcançou ainda a esfera nacional, com posicionamentos do Conselho Nacional de Justiça e os Ministérios de Direitos Humanos, da Mulher, de Justiça e Segurança Pública e dos Povos Indígenas e Funai.

Houve, portanto, a partir da visibilidade do caso, um despertar dos órgãos de Estado e forças de proteção e segurança, que confirmou a morosidade e, não raras vezes, a omissão do Estado na condução de processos criminais.

No Amazonas, segundo a matéria do Sumaúma, uma das causas é apresentada pelo advogado de K, Dacimar de Souza Carneiro: "o desfecho do processo deveria levar a uma reflexão sobre as condições das cadeias no interior do Amazonas". Para Carneiro, mesmo que o processo tenha sido encerrado por acordos, "a urgência em cobrar a criação de mecanismos de proteção, a integral reestruturação das unidades prisionais e delegacias e a garantia de direitos humanos e condições de trabalho dignas para servidores e custodiados - com especial atenção às mulheres - permanece um desafio inadiável e crucial".

A Corregedoria-Geral de Justiça do Amazonas publicou o Provimento Normativo no 507/2025 que, de acordo com o órgão, é uma "medida inovadora que estabelece controle rigoroso das inspeções judiciais, estabelecendo normas obrigatórias para inspeções, definindo procedimentos, prazos, responsabilidades e consequências pelo descumprimento".

O provimento "reforça a prevenção de violações de direitos humanos no sistema prisional com inspeções obrigatórias, registros audiovisuais e relatórios digitais para maior transparência e ação imediata diante de irregularidades", explica matéria da jornalista Rosiene Carvalho, no jornal da Rádio BandNews Amazônia Difusora, do dia 29 de julho.

"Questões de violações de direitos humanos de presos dentro do sistema penitenciário (...) já eram uma realidade, em Manaus e no interior. (...) Atos como o de agora, da Corregedoria, são importantíssimos, mas quando se olha no detalhe do que se pretende corrigir nessa portaria, é a declaração de culpa do sistema prisional e seus órgãos", analisa Rosiene, destacando a necessidade de avaliar as formas como as inspeções acontecerão, como é a realidade do trabalho dos órgãos e como os funcionários desses órgãos devem exercer suas funções.

A observação de Rosiene é pertinente para observar a realidade estrutural das delegacias no interior do Amazonas, revelada ao Sumaúma pelo coordenador do Núcleo de Atendimento Prisional da Defensoria Pública do Amazonas, Theo Costa.

"Mais de 40 dos 62 municípios do estado não têm presídio, e por isso os detentos são abrigados em celas das próprias delegacias, sobrecarregando o trabalho dos policiais civis e levando à mistura de presos homens e mulheres", aponta a matéria, acrescentando que a Defensoria Pública não tem presença física por deficiência de pessoal e logística.

"Enquanto mulheres, lideranças e guerreiras, geradoras e protetoras da vida, iremos nos posicionar e lutar contra as violações que afrontam nossos corpos, nossos espíritos, nossos territórios. Difundindo nossas sementes, nossos rituais, nossa língua, nós iremos garantir a nossa existência",

Justiça e vida para todos e todas

"Enquanto mulheres, lideranças e guerreiras, geradoras e protetoras da vida, iremos nos posicionar e lutar contra as violações que afrontam nossos corpos, nossos espíritos, nossos territórios. Difundindo nossas sementes, nossos rituais, nossa língua, nós iremos garantir a nossa existência", descreve trecho da carta da IV Marcha das Mulheres Indígenas.

"Entregamos nossa dor ao espírito da terra, para que ela nos fortaleça, nos guie, nos proteja. Porque nós não morremos. Nós voltamos em forma de trovão, de canto, do ar, do fogo, de maracá, do tambor", avisa Glades, traduzindo a vida Kokama em poesia.

K e tantas outras Kokama e indígenas não estão sós. Levam consigo as forças da ancestralidade e as energias das parentes que "queimam, mas não se apagam".

https://cimi.org.br/2025/08/crime-mulher-indigena-kokama-amazonas-racismo-ineficiencia/
 

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