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"O que queremos não são apenas desculpas": após reconhecimento de violações por Itaipu e Estado Brasileiro, Avá-Guarani intensificam luta por demarcação integral

04/11/2025

Fonte: Yvyrupa - https://www.yvyrupa.org.br



Pedido de desculpas chega 50 anos após Itaipu destruir aldeias e inundar territórios sagrados. Os Avá-Guarani seguem lutando pela demarcação integral e alertam que o acordo não repara a dimensão real dos danos e das violações históricas.

Assessoria de Comunicação da CGY

"Até hoje, em nenhum momento houve reparação. É difícil pra nós aqui. Eu ainda tô vivo, conheço bem o meu território, a minha história. Nasci, vivi e cresci ali. Cada pedaço de terra tem sua lembrança." A fala de Simão Vilalva, liderança Avá-Guarani de 59 anos, ecoa nas margens do rio Paraná, na Aldeia Ocoy, em São Miguel do Iguaçu (PR). Sua vida foi profundamente modificada pela construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, que inundou as terras onde nasceu e viveu com sua família. Suas palavras carregam o peso de uma existência marcada pelo deslocamento forçado, pela perda de territórios sagrados e por décadas de resistência e luta por reparação.

Na última terça-feira (29), sete meses após a homologação de um acordo no Supremo Tribunal Federal, a Itaipu Binacional e o Estado Brasileiro - representado pela União, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) - pediram desculpas formais ao povo Avá-Guarani pelas "graves violações de direitos humanos" cometidas durante a construção da hidrelétrica nas décadas de 1970 e 1980.

O documento reconhece publicamente que as comunidades indígenas foram submetidas a "deslocamentos, perda de territórios sagrados e impactos em suas formas de vida e expressões culturais". O pedido admite que "a formação do reservatório e a subsequente expropriação de territórios contribuíram para desestruturar suas formas de vida e subsistência, ocasionando significativos impactos sociais, econômicos e culturais".

O reconhecimento oficial, resultado de anos de luta e organização indígena, representa um marco na história dos direitos indígenas no Brasil. No entanto, para as mais de 5 mil pessoas Avá-Guarani que hoje vivem na região oeste do Paraná, o pedido de desculpas é apenas o começo de uma reparação que precisa se concretizar em território, justiça e dignidade.

O "progresso" chegou, a terra afundou: memórias Avá-Guarani
Simão Vilalva nasceu em 1966, na região de Santa Helena, no Oeste do Paraná. Na época, o território Avá-Guarani preservava suas matas e o rio Paraná corria livre. Naquele tempo, ele relata que os indígenas viviam em pequenos grupos familiares - cinco, dez famílias com genros, netos, todos juntos, liderados por alguém da própria família. Apesar de manterem viva sua organização tradicional e relação com o território, eles já enfrentavam fortes pressões dos colonos e das instituições estatais para deixarem suas terras e aceitarem o confinamento em áreas reduzidas.

Nas décadas seguintes, essas pressões se agravaram com a chegada de grandes projetos de desenvolvimento na região. A construção da usina de Itaipu começou a ser pensada ainda na década de 1960, com as primeiras discussões e acordos de cooperação entre Brasil e Paraguai. As obras iniciaram oficialmente em 1975, em plena ditadura militar. Celebrado como progresso pela nação, o empreendimento resultou em uma série de violências contra o povo Avá-Guarani, que foi expulso de seus territórios e viu suas terras inundadas.

"Eu me lembro de ouvir falarem que iam construir uma usina, mas, na época, eu era criança e não entendia direito. Não sabia se era motivo pra se assustar. Quem devia estar desesperado eram meus pais. Eu ainda não tinha essa consciência. Com o tempo, fui entendendo o que aquilo significava", relembra Simão. "Nós somos indígenas, e nossa forma de viver é diferente. O que me marcou até hoje foi o ano de 1978. Itaipu já estava quase fechando o rio Paraná para fazer a represa."

O ano de 1978 ficou marcado não apenas na memória de Simão, mas também como um marco na construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Naquele ano, a Itaipu Binacional concluiu uma obra que desviava o Rio Paraná para um canal de 2.000 metros de extensão, com 150 metros de largura e 90 metros de profundidade. A obra, que levou três anos para ser finalizada, representava "o desvio do maior volume d'água já realizado, até a presente data, em obras desse tipo, em todo o mundo", segundo o relatório anual da empresa.

Enquanto o feito era celebrado pelos governos brasileiro e paraguaio, os Avá-Guarani estavam sendo enganados para deixar suas terras. "Em 1978, fomos levados de lá, enganados. Disseram que a gente ia só participar de um evento e que voltaríamos depois. Ficaram para trás os bichos, as galinhas, a casinha, as panelas e tudo o que havia na cozinha da minha mãe", conta Simão. "A gente foi achando que voltaria, mas nos deixaram lá, largados. E isso ficou marcado pra sempre em mim. Quando voltei, não existia mais nada. A aldeia onde morávamos já estava coberta pela água. O Paraná já tinha enchido tudo. Aquilo me impactou profundamente. Até hoje penso nesse momento."

O alagamento submergiu não apenas aldeias, mas territórios sagrados. As Sete Quedas, a maior cachoeira em volume de águas do mundo, e Itaipyte, sítio sagrado onde os Avá-Guarani conheciam os caminhos para Yvy Marã'e'y (Terra Imperecível), foram destruídos pela construção da usina.

Um precedente histórico, mas insuficiente
O pedido de desculpas resulta de um acordo homologado em março de 2025 pelo Supremo Tribunal Federal, na Ação Cível Originária (ACO) no 3.555, ajuizada pelo Ministério Público Federal e pelas próprias comunidades Avá-Guarani. O acordo foi assinado durante a 12ª Assembleia Geral da Comissão Guarani Yvyrupa, na Aldeia Aty Mirim, no município de Itaipulândia (PR), contando com a presença de lideranças Guarani de diferentes regiões do país e representantes do governo federal.

Pelo acordo, a Itaipu Binacional se comprometeu a adquirir 3 mil hectares de terras para comunidades das TIs Tekoha Guasu Guavirá e Tekoha Guasu Okoy Jakutinga, além de, junto com a União, garantir infraestrutura, acesso a serviços sociais, projetos de sustentabilidade e formalizar um pedido público de desculpas ao povo Avá-Guarani pela própria Itaipu e pelo Estado brasileiro.

Do ponto de vista jurídico, o caso representa um marco na luta indígena. "Trata-se de um dos casos mais emblemáticos no Brasil sobre justiça de transição, conceito que aborda os crimes cometidos durante a ditadura militar com base em memória, verdade e justiça. O caso dos Avá-Guarani estabelece um precedente inédito de reconhecimento público do Estado brasileiro sobre as violações cometidas contra povos indígenas nesse período. É um passo pequeno diante da dívida histórica existente, mas representa um avanço significativo no reconhecimento das violações e no compromisso com a não repetição desses crimes", explica Ana Caroline Magnoni, assessora jurídica da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).

Contudo, a assessora também aponta omissões significativas no documento oficial. Entre elas:

A ausência de menção à ditadura militar, período em que ocorreram as principais violações;
A falta de referência aos militares que comandavam a Itaipu naquele contexto;
A omissão sobre a expulsão dos Guarani do Parque Nacional do Iguaçu, fato histórico documentado;
A não inclusão da responsabilidade do Estado do Paraná, que, junto à União, FUNAI, INCRA e Itaipu, concorreu para a expulsão e remoção das comunidades indígenas.
Menção mais clara à responsabilidade dos colonos da região, muitos dos quais receberam terras originalmente indígenas e participaram de violências e formas de escravização contra os Guarani.
Para os Avá-Guarani da região, o acordo está longe de representar justiça. Em Carta Pública divulgada após a assinatura, as comunidades expressam seu posicionamento com um misto de alívio e decepção com o Acordo. "Após ouvirmos da Itaipu Binacional que a empresa estava pronta para reconhecer a dívida histórica com nosso povo, esperávamos um acordo na justiça com a real dimensão dos danos causados ao território Avá-Guarani. Mas apenas uma migalha nos foi oferecida. Uma migalha que para quem tem, literalmente, uma arma apontada para a cabeça, fica impossível dizer não", relatam.

Simão Vilalva também questiona a natureza da reparação oferecida. "A reparação precisa ser feita do jeito que o povo quer, não do jeito que a empresa pensa. Não adianta oferecer essa quantidade de terras, isso não é suficiente. Existiam diversas aldeias que ficaram submersas. Estão debaixo d'água e nunca mais vão voltar. Como será feita a reparação por isso?", questiona.

Para ele, o pedido de desculpas, embora importante, não substitui ações concretas e as perdas espirituais. "Pelo menos, hoje, a Itaipu reconheceu o erro. Depois de muita pressão e muito documento, ela admitiu o que fez. Isso já é um começo, é bom pra eles e pra nós também. Porque antes era só negação, diziam que não havia erro nenhum. Mas o que queremos não é apenas desculpas, é o cumprimento do dever. É a indenização pelos danos morais e materiais. É o reconhecimento de que o cemitério do nosso povo ficou submerso. Esse não é um pedido, é uma obrigação."

Além das lacunas no pedido de desculpas, a execução do acordo enfrenta obstáculos. O acordo está em andamento, mas de forma muito lenta, incompatível com a urgência territorial das comunidades, avaliam as lideranças indígenas. Elas apontam morosidade especialmente por parte do Incra na avaliação das áreas adquiridas pela União com recursos da Itaipu, que servirão à territorialização das comunidades. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, responsável por conduzir as audiências de negociação sobre cada área, tem feito esforços, mas o agendamento das audiências também poderia ser mais célere, segundo as comunidades.

Outro ponto crítico é a implementação de infraestrutura básica. "A execução das cláusulas que preveem infraestrutura básica - como energia, água, saúde e educação - nas áreas já regularizadas também caminha lentamente e exige mais agilidade", afirmam as comunidades.

Luta pela demarcação integral
O acordo atual representa menos de 10% da dívida territorial histórica. "As comunidades demandam novos acordos para ampliar os hectares previstos, já que os 3.000 hectares atuais representam menos de 10% da dívida histórica que os réus têm com o povo Avá-Guarani", explica Ana Caroline.

A documentação existente comprova que o prejuízo territorial é muito maior. O acordo prevê prazo de 18 meses para que a Funai conclua o estudo de identificação e delimitação das Terras Indígenas Tekoha Guasu Ocoy-Jacutinga e do Tekoha Guasu Guavirá. "Essas duas terras juntas devem somar cerca de 50 mil hectares - aproximadamente 25 mil hectares cada -, enquanto o acordo atual trata de apenas 3 mil hectares, o que demonstra a dimensão da dívida territorial ainda pendente", explica.

Para a assessora jurídica, a verdadeira reparação só virá com a demarcação completa. "As comunidades nunca abriram mão da demarcação das terras indígenas, que é, de fato, a medida capaz de garantir uma reparação histórica integral. A verdadeira reparação histórica só será alcançada quando esses territórios forem plenamente demarcados e reconhecidos."

Na Carta Pública, o povo Avá-Guarani reafirma essa posição: "Sabemos que não voltaremos a ocupar livremente nosso território. As matas foram derrubadas, hoje predominam as monoculturas de soja. Mas queremos de volta pelo menos uma terra que nos garanta um futuro. Onde nossas crianças possam aprender a viver respeitando a mata e todos os seres que nela habitam."

Pela memória, território e justiça
As violações sofridas pelo povo Avá-Guarani ainda estão em processo de serem reveladas e compreendidas por toda a sociedade. Em outubro, durante a Cerimônia "Por uma Comissão Nacional Indígena da Verdade", lideranças indígenas de todo o Brasil entregaram oficialmente ao Governo Federal a minuta do ato normativo que propõe a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV). O documento retoma uma recomendação central da Comissão Nacional da Verdade (CNV) de 2014 e exige que o Estado brasileiro assuma sua responsabilidade pelas graves violações de direitos humanos cometidas contra os povos originários, garantindo que histórias como a de Simão Vilalva e do povo Avá-Guarani não sejam mais silenciadas.

Leia a reportagem completa: "Para que não se repita": Movimento indígena pressiona Estado por Comissão Nacional Indígena da Verdade após décadas de violações silenciadas"

Uma das principais inovações da proposta elaborada pelo Fórum está na forma como pretende acolher os relatos e evidências. Diferentemente da CNV, que se baseou principalmente em documentos escritos, a CNIV está estruturada para admitir diversas formas de testemunho, reconhecendo a tradição oral e outras expressões culturais dos povos indígenas como fontes legítimas de verdade histórica.

A aproximação de Simão com esse processo de justiça histórica começou ainda no final do governo Dilma Rousseff. Sua primeira experiência ocorreu em 2013, durante a 7ª audiência pública da CNV, realizada em Curitiba, na qual foram coletados depoimentos sobre crimes e abusos cometidos durante a ditadura militar no Paraná. "Consegui entrar na reunião e levantei a mão para pedir que os indígenas também pudessem participar, para contar a nossa história. Foi ali que comecei a entender melhor o que significava defender nossos direitos, porque muitos de nós", relembra

Hoje, Simão mantém um levantamento detalhado das famílias dispersas e dos territórios perdidos. "Essas terras, mesmo debaixo d'água, continuam fazendo parte do nosso presente. As pessoas que vieram dali ainda estão aqui. Estamos espalhados, mas estamos vivos. Desde que comecei a trabalhar na Comissão da Verdade, levanto informações sobre quantas aldeias ficaram debaixo d'água e quantas ainda precisam ser resgatadas", reflete ele, reafirmando a importância de dar visibilidade e voz a essas histórias que, por décadas, permaneceram submersas tanto nas águas quanto no silêncio.

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