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Da COP à floresta: como o dinheiro de fundos climáticos é aplicado em projetos na Amazônia
07/11/2025
Autor: Fred Santana
Fonte: InfoAmazonia - https://infoamazonia.org
Recursos internacionais buscam transformar compromissos em ações concretas na Amazônia, mas enfrentam entraves burocráticos, limitações de infraestrutura e falhas de transparência. O Vocativo investigou três projetos financiados pelo Fundo Amazônia para entender seus resultados e desafios.
Afinal, para que servem as COP's? O que motiva líderes de quase duzentos países a cruzar oceanos todos os anos em uma conferência global sobre o clima? O que acontece nas salas de negociação onde chefes de Estado, cientistas, empresários e ativistas tentam definir o futuro do planeta? E, mais importante: como saem compromissos bilionários de financiamento climático dessas reuniões que deveriam - pelo menos em teoria - reverter a crise ambiental que já consome regiões como a Amazônia?
As Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COPs) reúnem anualmente países em busca de novos acordos globais para enfrentar a crise climática./ Cada nação apresenta suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC's), compromissos que definem quanto cada governo pretende reduzir de emissões e como irá se adaptar aos impactos da crise climática. É nesse espaço que se tenta equilibrar responsabilidades históricas, justiça climática e urgência ambiental, em meio a negociações complexas sobre metas e cooperação internacional.
Cumprir essas metas exige planejamento e orçamento, e é nesse ponto que surge o financiamento climático: o fluxo de recursos que deveria transformar promessas em ações concretas. Países ricos se comprometem a financiar iniciativas em nações em desenvolvimento, especialmente aquelas com ecossistemas vitais, como o Brasil - cuja meta é zerar o desmatamento ilegal, restaurar florestas e ampliar o uso de energia limpa. Nesse contexto, os fundos internacionais funcionam como mecanismos financeiros que viabilizam esses projetos de interesse global.
Na Amazônia, o desafio é fazer com que as metas internacionais se traduzam em resultados visíveis para quem vive no bioma, segundo Gabriela Sampaio, gerente do Programa de Políticas Públicas em Clima e Conservação da Fundação Amazônia Sustentável (FAS). "As NDC's não podem ser abstrações diplomáticas. Elas precisam significar acesso a crédito, fortalecimento das cadeias produtivas locais e garantia de que a floresta em pé vale mais do que derrubada", alerta.
As NDC's não podem ser abstrações diplomáticas. Elas precisam significar acesso a crédito, fortalecimento das cadeias produtivas locais e garantia de que a floresta em pé vale mais do que derrubada.
Gabriela Sampaio, gerente do Programa de Políticas Públicas em Clima e Conservação da Fundação Amazônia Sustentável (FAS).
Para compreender o cotidiano dessas iniciativas, a reportagem analisou três projetos financiados pelo Fundo Amazônia, criado em 2008 para captar doações nacionais e internacionais e administrado pelo Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com o objetivo de apoiar ações de combate ao desmatamento e desenvolvimento sustentável na região. Foram ouvidos dois projetos no Amazonas e um no Pará. A falta de infraestrutura está entre os principais desafios enfrentados.
O caminho do dinheiro: entre promessas e gargalos
Entre a promessa feita nas conferências e o resultado concreto nas comunidades, existem entraves. No Brasil, o principal catalisador destes recursos é o Fundo Amazônia.
O volume total do apoio já ultrapassou R$ 2,08 bilhões desembolsados desde 2009 e R$ 4,823 bilhões em apoio comprometido até 2024, com 119 projetos apoiados registrados. Dentre os principais doadores estão a Noruega, com o equivalente a R$ 3,469 bilhões em doações internalizadas, seguida pela Alemanha (cerca de R$ 387,9 milhões) e Estados Unidos (aprox. R$ 291,4 milhões).
Em 2024, o BNDES registrou um recorde de aprovações, com R$ 882 milhões aprovados, e reportou desembolsos para a Amazônia Legal superiores a R$ 10 bilhões no acumulado até setembro, incluindo operações vinculadas a ações de prevenção e resposta a emergências. Os projetos do Fundo passam por realidades distintas e desafios comuns: logística precária, dificuldades de escoamento da produção, gargalos técnicos e falta de continuidade nos investimentos.
ProAmazon
Em Lábrea, no sul do Amazonas, o projeto ProAmazon, já recebeu R$ 21,5 milhões de um total de R$ 45 milhões para ser executado em parceria com o Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas (CBMAM). O programa afirma fortalecer a capacidade de combate a incêndios florestais e reduzir o impacto das queimadas. O comandante-geral, coronel Orleilson Ximenes Muniz, afirmou que o projeto permitiu avanços inéditos.
"O ProAmazon fortaleceu a presença do Estado em regiões críticas e capacitou brigadistas comunitários. Hoje temos bases operacionais onde antes havia apenas vulnerabilidade. A resposta aos incêndios é mais rápida e eficiente", comemora. Mesmo assim, ele reconhece que o projeto enfrenta barreiras físicas e logísticas. "O transporte de equipamentos e combustível continua caro. Em muitos locais, o acesso é apenas por via fluvial, o que dificulta a chegada dos materiais e o deslocamento das equipes. Sem infraestrutura, o trabalho dos bombeiros é heróico, mas limitado", disse.
No entanto, a solicitação do recurso não aconteceu de maneira preventiva. O anúncio só foi feito pelo governador Wilson Lima (União Brasil) em agosto de 2024, durante o segundo ano da estiagem recorde no Amazonas. Poucos dias antes, o Vocativo denunciou que a gestão estadual só havia destinado R$ 23 mil para o programa de controle do desmatamento, queimadas e monitoramento ambiental. O montante para a gestão de mudanças do clima era ainda menor.
Agroecologia em Rede
Em Iranduba, na Região Metropolitana de Manaus, o projeto Agroecologia em Rede, executado pelo Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) recebeu R$ 5,7 milhões de um total de R$ 20,1 milhões até 06/09/2024. O programa afirma incentivar agricultores a adotarem sistemas agroflorestais, diversificarem suas culturas e comercializarem produtos de forma sustentável.
Segundo Ramom Morato, coordenador técnico do projeto Agroecologia em Rede, o primeiro ano do projeto, iniciado em junho de 2024, foi dedicado ao fortalecimento das sete associações que integram a rede, com ações de regularização administrativa, aquisição de equipamentos e formação técnica. "A instalação de agroindústrias comunitárias está entre nossos objetivos, mas este momento tem sido voltado à formação e aos intercâmbios", explicou Ramom.
Ele destacou ainda cursos em Sistemas Agroflorestais (SAFs), oficinas de bioinsumos e visitas técnicas ao Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado (Reca), em Rondônia, uma cooperativa formada por mais de 300 famílias de agricultores que implantaram SAFs e se tornaram referência nacional em agricultura familiar e beneficiamento agroflorestal.
Uma das frentes mais relevantes do projeto é o fortalecimento do Sistema Participativo de Garantia (SPG Maniva), que certifica produtos orgânicos em nove municípios do Amazonas. Ao todo, 111 famílias já estão certificadas junto ao Ministério da Agricultura (MAPA), produzindo itens de alto valor agregado como o chocolate Na'kau e o café Apuí Agroflorestal. "Esses produtos simbolizam a valorização da sociobiodiversidade amazônica e consolidam a base da produção sustentável no estado", afirmou Morato.
Ele reconhece, porém, que os desafios logísticos continuam grandes. "As condições precárias dos ramais e o isolamento das comunidades impactam diretamente o escoamento da produção e a geração de renda", disse o coordenador. Para minimizar esses entraves, o projeto passou a investir em infraestrutura local, com aquisição de veículos, equipamentos agrícolas, implantação de sistemas de energia solar e poços artesianos.
As condições precárias dos ramais e o isolamento das comunidades impactam diretamente o escoamento da produção e a geração de renda.
Ramom Morato, coordenador técnico do projeto Agroecologia em Rede
O Comitê Gestor, formado por representantes do IPÊ e dos agricultores, também acompanha o uso dos recursos. "Todas as decisões são tomadas de forma participativa, e cada associação tem autonomia para gerir seu orçamento, com monitoramento técnico e financeiro do IPÊ e do BNDES", completou Ramom Morato.
Problemas com a transparência
Um dos grandes problemas destes projetos é a transparência. A governança e a prestação de contas do Fundo Amazônia vêm sendo questionadas por pesquisadores e instituições que analisam a efetividade do financiamento climático. Um estudo publicado em 2022 pela Blavatnik School of Government, da Universidade de Oxford, intitulado "The Public Institutional Integrity of the Amazon Fund", avaliou a integridade institucional do Fundo e apontou "riscos de governança e fragilidades nos mecanismos de prestação de contas e controle público".
O trabalho destacou que, embora o Fundo Amazônia tenha sido criado com uma estrutura inovadora de financiamento por resultados, a ausência de métricas padronizadas e auditorias regulares limita a transparência e dificulta a aferição dos impactos sociais e ambientais nas comunidades beneficiadas.
Em 2023, o artigo "Policy Innovation for Sustainable Development: The Case of the Amazon Fund", publicado no repositório PubMed Central (PMC), reconheceu avanços na mobilização de recursos, mas destacou que que a governança "ainda depende fortemente de decisões centralizadas no BNDES" e que "os mecanismos de transparência, embora formalmente robustos, não garantem monitoramento independente nem acesso equitativo às informações pelos beneficiários".
Em Altamira, no Pará, o projeto Fortalecimento da Gestão Ambiental na Amazônia, coordenado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), recebeu o total de R$ 12,1 milhões para treinar técnicos municipais e modernizar o monitoramento do uso da terra. A proposta seria reduzir a dependência de consultorias externas e dar autonomia aos municípios.
A reportagem procurou o Imazon ao longo de um mês, por e-mail e aplicativo de mensagem no celular, mas não obteve resposta sobre o andamento atual. Foram enviadas perguntas sobre o número de técnicos capacitados e o aproveitamento dos dados produzidos, mas apenas no dia 15 de outubro houve retorno: "não vamos conseguir atender a demanda, fica para próxima".
Mas este não foi o único projeto a deixar dúvidas. A reportagem não localizou, por exemplo, na página do Portal da Transparência do governo do Amazonas, informações sobre o ProAmazon. Nas páginas dos três projetos no site do Fundo Amazônia constam apenas os Contratos de Concessão de Colaboração Financeira Não Reembolsável. Nos balanços anuais, há apenas a descrição dos projetos e quando cada um embolsou.
Um estudo de 2022 intitulado "Desafios do cumprimento da NDC brasileira no bioma Amazônia", publicado pela Embrapa na Brazilian Journal of International Affairs, aponta que, além das metas ambiciosas - como restauração florestal e controle de desmatamento - o Brasil enfrenta obstáculos legais, institucionais e de infraestrutura que comprometem o avanço real das NDCs no bioma amazônico.
O Vocativo procurou o BNDES para saber quanto do montante aprovado para projetos no Amazonas e no Pará já foi efetivamente desembolsado, se existem indicadores claros de impacto nos municípios beneficiados e como o Fundo lida com gargalos de infraestrutura que dificultam a execução dos projetos, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Entre os desafios levantados estão o cumprimento desigual do Código Florestal, com déficits ou excedentes de reservas legais conforme o tamanho e uso da terra; a lentidão na regularização fundiária; e a falta de redes físicas e logísticas para monitoramento constante das áreas ameaçadas.
O relatório The State of Fiscal Policy for Climate Action: 2023 Baseline Survey for Latin America and the Caribbean, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2024), aponta que as políticas fiscais para ações climáticas na América Latina e Caribe são fragmentadas e instáveis. Falta planejamento de longo prazo, incentivos a tecnologias limpas e alinhamento dos orçamentos públicos às metas previstas nas NDCs.
"Boa parte dos recursos chega aos estados, mas o repasse e o acompanhamento nos municípios continuam frágeis. As comunidades que mais sofrem com as queimadas e o desmatamento ainda têm pouca voz no processo de decisão sobre como o dinheiro é aplicado", afirma Gabriela Sampaio.
O papel da transparência e do controle social
Saber quanto dinheiro foi prometido, quanto e onde foi gasto é uma das maiores lacunas do financiamento climático. Relatórios do Overseas Development Institute (ODI) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP) mostram que a ausência de clareza nos fluxos financeiros dificulta a avaliação de resultados (ODI, 2020/UNDP, 2023).
A pesquisadora do departamento de ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mariana Vale afirma que o Brasil ainda carece de um sistema integrado de informações climáticas. "Hoje temos dados dispersos em vários órgãos. Isso cria ruído e enfraquece o controle social. Transparência não é apenas publicar relatórios; é permitir que a sociedade entenda e fiscalize como o dinheiro está sendo usado", explica.
Para o coordenador do Observatório do Clima, Márcio Astrini, o país precisa ir além da retórica. "Transparência é poder político. É o que separa os países que cumprem metas dos que apenas as anunciam. O Brasil tem tudo para liderar, mas ainda precisa provar que o financiamento climático gera resultados concretos", alerta.
As críticas acabam ganhando eco no debate político, em especial na extrema direita, que usa essa opacidade como forma de atacar o fundo. Em maio de 2023, o senador Plínio Valério (PSDB) declarou no plenário do Senado que "o controle dos recursos do Fundo Amazônia deixa muito a desejar", defendendo uma revisão dos mecanismos de fiscalização.
No mesmo ano, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs presidida por Valério sugeriu em seu relatório final a criação de um painel público de auditoria dos recursos do Fundo, afirmando haver "falhas e ausência de transparência" em algumas prestações de contas.
No Amazonas, o deputado estadual Comandante Dan (Podemos) afirmou em discurso à ALEAM, em outubro de 2024, que "apenas 11% dos recursos captados haviam sido efetivamente repassados aos projetos naquele período", cobrando maior celeridade e transparência.
Impactos do Fundo Amazônia
De acordo com o relatório Activity Report 2022 - Amazon Fund, as ações financiadas pelo Fundo já alcançaram, até 2022, 196 unidades de conservação e 101 territórios indígenas em toda a Amazônia Legal. O documento destaca que os recursos foram aplicados em "atividades de proteção e vigilância territorial, consolidação da gestão e promoção de atividades produtivas sustentáveis".
O Fundo também apoiou 40 projetos de gestão florestal comunitária e 85 iniciativas voltadas à regularização ambiental e fundiária, medidas diretamente conectadas às metas climáticas brasileiras previstas nas NDC's - especialmente nos eixos de restauração de florestas e uso sustentável da terra.
Esse tipo de investimento, segundo o relatório, contribuiu para evitar milhões de toneladas de emissões de dióxido de carbono ao longo da última década, consolidando o Fundo como um instrumento essencial para a implementação da estratégia nacional de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+).
Um estudo da iniciativa Amazônia 2030 - Financial Opportunities for Brazil from Reducing Deforestation in the Amazon, publicado em 2022, reforça esse vínculo entre a atuação do Fundo Amazônia e o avanço das metas climáticas. A pesquisa estima que a redução do desmatamento no bioma amazônico, somada à expansão de projetos apoiados por fundos climáticos, pode representar entre US$ 10 bilhões e US$ 20 bilhões em oportunidades financeiras para o Brasil até 2030, com potencial de evitar 1,048,8 milhão de toneladas de CO₂ equivalente.
O estudo destaca que, ao transformar a conservação florestal em ativo econômico, mecanismos como o Fundo Amazônia são cruciais para realizar as promessas brasileiras no âmbito das NDC's - conectando o fluxo financeiro internacional às ações locais que efetivamente reduzem emissões e fortalecem comunidades amazônicas.
Projeto de governo versus política de Estado
Depois de oito anos da assinatura do Acordo de Paris, o desafio não é mais apenas definir metas, mas mostrar resultados. No Brasil do agronegócio predatório e combustíveis fósseis ainda no centro da matriz energética, as NDC's deixaram de ser um documento técnico para se tornarem um termômetro da coerência entre discurso e prática.
A professora Mariana Vale explica que as NDC's são o mapa do compromisso climático brasileiro. "Cumprir as NDC's é mostrar que o Brasil tem coerência entre o que promete e o que faz. Elas não são uma carta de intenções, são um plano de ação. E isso exige integração entre ministérios, governos locais e, principalmente, investimentos sustentáveis e de longo prazo", afirma.
O financiamento internacional é apenas parte da engrenagem e passa por um elemento central: a política. Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), o Fundo Amazônia enfrentou uma paralisação significativa.
Em agosto de 2019, o governo extinguiu os dois comitês responsáveis pela gestão do fundo (Comitê Orientador do Fundo Amazônia - COFA e Comitê Técnico do Fundo Amazônia - CTFA), o que levou à suspensão dos repasses feitos pela Noruega e Alemanha. Essa paralisação resultou em milhares de projetos congelados: relatórios apontam que pelo menos R$2,9 bilhões do fundo ficaram sem aplicação, mais de 40 projetos foram paralisados e o mecanismo deixou de aprovar novos apoios desde 2018.
Para André Ferretti, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), o país ainda trata as metas climáticas como projetos de governo, e não como política de Estado. "O financiamento internacional é essencial, mas não substitui o orçamento público. O Brasil precisa investir recursos próprios e criar instrumentos de continuidade. Caso contrário, cada troca de governo reinicia o jogo", avalia Ferretti.
https://infoamazonia.org/2025/11/07/da-cop-a-floresta-como-o-dinheiro-de-fundos-climaticos-e-aplicado-em-projetos-na-amazonia/
Afinal, para que servem as COP's? O que motiva líderes de quase duzentos países a cruzar oceanos todos os anos em uma conferência global sobre o clima? O que acontece nas salas de negociação onde chefes de Estado, cientistas, empresários e ativistas tentam definir o futuro do planeta? E, mais importante: como saem compromissos bilionários de financiamento climático dessas reuniões que deveriam - pelo menos em teoria - reverter a crise ambiental que já consome regiões como a Amazônia?
As Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COPs) reúnem anualmente países em busca de novos acordos globais para enfrentar a crise climática./ Cada nação apresenta suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC's), compromissos que definem quanto cada governo pretende reduzir de emissões e como irá se adaptar aos impactos da crise climática. É nesse espaço que se tenta equilibrar responsabilidades históricas, justiça climática e urgência ambiental, em meio a negociações complexas sobre metas e cooperação internacional.
Cumprir essas metas exige planejamento e orçamento, e é nesse ponto que surge o financiamento climático: o fluxo de recursos que deveria transformar promessas em ações concretas. Países ricos se comprometem a financiar iniciativas em nações em desenvolvimento, especialmente aquelas com ecossistemas vitais, como o Brasil - cuja meta é zerar o desmatamento ilegal, restaurar florestas e ampliar o uso de energia limpa. Nesse contexto, os fundos internacionais funcionam como mecanismos financeiros que viabilizam esses projetos de interesse global.
Na Amazônia, o desafio é fazer com que as metas internacionais se traduzam em resultados visíveis para quem vive no bioma, segundo Gabriela Sampaio, gerente do Programa de Políticas Públicas em Clima e Conservação da Fundação Amazônia Sustentável (FAS). "As NDC's não podem ser abstrações diplomáticas. Elas precisam significar acesso a crédito, fortalecimento das cadeias produtivas locais e garantia de que a floresta em pé vale mais do que derrubada", alerta.
As NDC's não podem ser abstrações diplomáticas. Elas precisam significar acesso a crédito, fortalecimento das cadeias produtivas locais e garantia de que a floresta em pé vale mais do que derrubada.
Gabriela Sampaio, gerente do Programa de Políticas Públicas em Clima e Conservação da Fundação Amazônia Sustentável (FAS).
Para compreender o cotidiano dessas iniciativas, a reportagem analisou três projetos financiados pelo Fundo Amazônia, criado em 2008 para captar doações nacionais e internacionais e administrado pelo Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com o objetivo de apoiar ações de combate ao desmatamento e desenvolvimento sustentável na região. Foram ouvidos dois projetos no Amazonas e um no Pará. A falta de infraestrutura está entre os principais desafios enfrentados.
O caminho do dinheiro: entre promessas e gargalos
Entre a promessa feita nas conferências e o resultado concreto nas comunidades, existem entraves. No Brasil, o principal catalisador destes recursos é o Fundo Amazônia.
O volume total do apoio já ultrapassou R$ 2,08 bilhões desembolsados desde 2009 e R$ 4,823 bilhões em apoio comprometido até 2024, com 119 projetos apoiados registrados. Dentre os principais doadores estão a Noruega, com o equivalente a R$ 3,469 bilhões em doações internalizadas, seguida pela Alemanha (cerca de R$ 387,9 milhões) e Estados Unidos (aprox. R$ 291,4 milhões).
Em 2024, o BNDES registrou um recorde de aprovações, com R$ 882 milhões aprovados, e reportou desembolsos para a Amazônia Legal superiores a R$ 10 bilhões no acumulado até setembro, incluindo operações vinculadas a ações de prevenção e resposta a emergências. Os projetos do Fundo passam por realidades distintas e desafios comuns: logística precária, dificuldades de escoamento da produção, gargalos técnicos e falta de continuidade nos investimentos.
ProAmazon
Em Lábrea, no sul do Amazonas, o projeto ProAmazon, já recebeu R$ 21,5 milhões de um total de R$ 45 milhões para ser executado em parceria com o Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas (CBMAM). O programa afirma fortalecer a capacidade de combate a incêndios florestais e reduzir o impacto das queimadas. O comandante-geral, coronel Orleilson Ximenes Muniz, afirmou que o projeto permitiu avanços inéditos.
"O ProAmazon fortaleceu a presença do Estado em regiões críticas e capacitou brigadistas comunitários. Hoje temos bases operacionais onde antes havia apenas vulnerabilidade. A resposta aos incêndios é mais rápida e eficiente", comemora. Mesmo assim, ele reconhece que o projeto enfrenta barreiras físicas e logísticas. "O transporte de equipamentos e combustível continua caro. Em muitos locais, o acesso é apenas por via fluvial, o que dificulta a chegada dos materiais e o deslocamento das equipes. Sem infraestrutura, o trabalho dos bombeiros é heróico, mas limitado", disse.
No entanto, a solicitação do recurso não aconteceu de maneira preventiva. O anúncio só foi feito pelo governador Wilson Lima (União Brasil) em agosto de 2024, durante o segundo ano da estiagem recorde no Amazonas. Poucos dias antes, o Vocativo denunciou que a gestão estadual só havia destinado R$ 23 mil para o programa de controle do desmatamento, queimadas e monitoramento ambiental. O montante para a gestão de mudanças do clima era ainda menor.
Agroecologia em Rede
Em Iranduba, na Região Metropolitana de Manaus, o projeto Agroecologia em Rede, executado pelo Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) recebeu R$ 5,7 milhões de um total de R$ 20,1 milhões até 06/09/2024. O programa afirma incentivar agricultores a adotarem sistemas agroflorestais, diversificarem suas culturas e comercializarem produtos de forma sustentável.
Segundo Ramom Morato, coordenador técnico do projeto Agroecologia em Rede, o primeiro ano do projeto, iniciado em junho de 2024, foi dedicado ao fortalecimento das sete associações que integram a rede, com ações de regularização administrativa, aquisição de equipamentos e formação técnica. "A instalação de agroindústrias comunitárias está entre nossos objetivos, mas este momento tem sido voltado à formação e aos intercâmbios", explicou Ramom.
Ele destacou ainda cursos em Sistemas Agroflorestais (SAFs), oficinas de bioinsumos e visitas técnicas ao Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado (Reca), em Rondônia, uma cooperativa formada por mais de 300 famílias de agricultores que implantaram SAFs e se tornaram referência nacional em agricultura familiar e beneficiamento agroflorestal.
Uma das frentes mais relevantes do projeto é o fortalecimento do Sistema Participativo de Garantia (SPG Maniva), que certifica produtos orgânicos em nove municípios do Amazonas. Ao todo, 111 famílias já estão certificadas junto ao Ministério da Agricultura (MAPA), produzindo itens de alto valor agregado como o chocolate Na'kau e o café Apuí Agroflorestal. "Esses produtos simbolizam a valorização da sociobiodiversidade amazônica e consolidam a base da produção sustentável no estado", afirmou Morato.
Ele reconhece, porém, que os desafios logísticos continuam grandes. "As condições precárias dos ramais e o isolamento das comunidades impactam diretamente o escoamento da produção e a geração de renda", disse o coordenador. Para minimizar esses entraves, o projeto passou a investir em infraestrutura local, com aquisição de veículos, equipamentos agrícolas, implantação de sistemas de energia solar e poços artesianos.
As condições precárias dos ramais e o isolamento das comunidades impactam diretamente o escoamento da produção e a geração de renda.
Ramom Morato, coordenador técnico do projeto Agroecologia em Rede
O Comitê Gestor, formado por representantes do IPÊ e dos agricultores, também acompanha o uso dos recursos. "Todas as decisões são tomadas de forma participativa, e cada associação tem autonomia para gerir seu orçamento, com monitoramento técnico e financeiro do IPÊ e do BNDES", completou Ramom Morato.
Problemas com a transparência
Um dos grandes problemas destes projetos é a transparência. A governança e a prestação de contas do Fundo Amazônia vêm sendo questionadas por pesquisadores e instituições que analisam a efetividade do financiamento climático. Um estudo publicado em 2022 pela Blavatnik School of Government, da Universidade de Oxford, intitulado "The Public Institutional Integrity of the Amazon Fund", avaliou a integridade institucional do Fundo e apontou "riscos de governança e fragilidades nos mecanismos de prestação de contas e controle público".
O trabalho destacou que, embora o Fundo Amazônia tenha sido criado com uma estrutura inovadora de financiamento por resultados, a ausência de métricas padronizadas e auditorias regulares limita a transparência e dificulta a aferição dos impactos sociais e ambientais nas comunidades beneficiadas.
Em 2023, o artigo "Policy Innovation for Sustainable Development: The Case of the Amazon Fund", publicado no repositório PubMed Central (PMC), reconheceu avanços na mobilização de recursos, mas destacou que que a governança "ainda depende fortemente de decisões centralizadas no BNDES" e que "os mecanismos de transparência, embora formalmente robustos, não garantem monitoramento independente nem acesso equitativo às informações pelos beneficiários".
Em Altamira, no Pará, o projeto Fortalecimento da Gestão Ambiental na Amazônia, coordenado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), recebeu o total de R$ 12,1 milhões para treinar técnicos municipais e modernizar o monitoramento do uso da terra. A proposta seria reduzir a dependência de consultorias externas e dar autonomia aos municípios.
A reportagem procurou o Imazon ao longo de um mês, por e-mail e aplicativo de mensagem no celular, mas não obteve resposta sobre o andamento atual. Foram enviadas perguntas sobre o número de técnicos capacitados e o aproveitamento dos dados produzidos, mas apenas no dia 15 de outubro houve retorno: "não vamos conseguir atender a demanda, fica para próxima".
Mas este não foi o único projeto a deixar dúvidas. A reportagem não localizou, por exemplo, na página do Portal da Transparência do governo do Amazonas, informações sobre o ProAmazon. Nas páginas dos três projetos no site do Fundo Amazônia constam apenas os Contratos de Concessão de Colaboração Financeira Não Reembolsável. Nos balanços anuais, há apenas a descrição dos projetos e quando cada um embolsou.
Um estudo de 2022 intitulado "Desafios do cumprimento da NDC brasileira no bioma Amazônia", publicado pela Embrapa na Brazilian Journal of International Affairs, aponta que, além das metas ambiciosas - como restauração florestal e controle de desmatamento - o Brasil enfrenta obstáculos legais, institucionais e de infraestrutura que comprometem o avanço real das NDCs no bioma amazônico.
O Vocativo procurou o BNDES para saber quanto do montante aprovado para projetos no Amazonas e no Pará já foi efetivamente desembolsado, se existem indicadores claros de impacto nos municípios beneficiados e como o Fundo lida com gargalos de infraestrutura que dificultam a execução dos projetos, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Entre os desafios levantados estão o cumprimento desigual do Código Florestal, com déficits ou excedentes de reservas legais conforme o tamanho e uso da terra; a lentidão na regularização fundiária; e a falta de redes físicas e logísticas para monitoramento constante das áreas ameaçadas.
O relatório The State of Fiscal Policy for Climate Action: 2023 Baseline Survey for Latin America and the Caribbean, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2024), aponta que as políticas fiscais para ações climáticas na América Latina e Caribe são fragmentadas e instáveis. Falta planejamento de longo prazo, incentivos a tecnologias limpas e alinhamento dos orçamentos públicos às metas previstas nas NDCs.
"Boa parte dos recursos chega aos estados, mas o repasse e o acompanhamento nos municípios continuam frágeis. As comunidades que mais sofrem com as queimadas e o desmatamento ainda têm pouca voz no processo de decisão sobre como o dinheiro é aplicado", afirma Gabriela Sampaio.
O papel da transparência e do controle social
Saber quanto dinheiro foi prometido, quanto e onde foi gasto é uma das maiores lacunas do financiamento climático. Relatórios do Overseas Development Institute (ODI) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP) mostram que a ausência de clareza nos fluxos financeiros dificulta a avaliação de resultados (ODI, 2020/UNDP, 2023).
A pesquisadora do departamento de ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mariana Vale afirma que o Brasil ainda carece de um sistema integrado de informações climáticas. "Hoje temos dados dispersos em vários órgãos. Isso cria ruído e enfraquece o controle social. Transparência não é apenas publicar relatórios; é permitir que a sociedade entenda e fiscalize como o dinheiro está sendo usado", explica.
Para o coordenador do Observatório do Clima, Márcio Astrini, o país precisa ir além da retórica. "Transparência é poder político. É o que separa os países que cumprem metas dos que apenas as anunciam. O Brasil tem tudo para liderar, mas ainda precisa provar que o financiamento climático gera resultados concretos", alerta.
As críticas acabam ganhando eco no debate político, em especial na extrema direita, que usa essa opacidade como forma de atacar o fundo. Em maio de 2023, o senador Plínio Valério (PSDB) declarou no plenário do Senado que "o controle dos recursos do Fundo Amazônia deixa muito a desejar", defendendo uma revisão dos mecanismos de fiscalização.
No mesmo ano, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs presidida por Valério sugeriu em seu relatório final a criação de um painel público de auditoria dos recursos do Fundo, afirmando haver "falhas e ausência de transparência" em algumas prestações de contas.
No Amazonas, o deputado estadual Comandante Dan (Podemos) afirmou em discurso à ALEAM, em outubro de 2024, que "apenas 11% dos recursos captados haviam sido efetivamente repassados aos projetos naquele período", cobrando maior celeridade e transparência.
Impactos do Fundo Amazônia
De acordo com o relatório Activity Report 2022 - Amazon Fund, as ações financiadas pelo Fundo já alcançaram, até 2022, 196 unidades de conservação e 101 territórios indígenas em toda a Amazônia Legal. O documento destaca que os recursos foram aplicados em "atividades de proteção e vigilância territorial, consolidação da gestão e promoção de atividades produtivas sustentáveis".
O Fundo também apoiou 40 projetos de gestão florestal comunitária e 85 iniciativas voltadas à regularização ambiental e fundiária, medidas diretamente conectadas às metas climáticas brasileiras previstas nas NDC's - especialmente nos eixos de restauração de florestas e uso sustentável da terra.
Esse tipo de investimento, segundo o relatório, contribuiu para evitar milhões de toneladas de emissões de dióxido de carbono ao longo da última década, consolidando o Fundo como um instrumento essencial para a implementação da estratégia nacional de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+).
Um estudo da iniciativa Amazônia 2030 - Financial Opportunities for Brazil from Reducing Deforestation in the Amazon, publicado em 2022, reforça esse vínculo entre a atuação do Fundo Amazônia e o avanço das metas climáticas. A pesquisa estima que a redução do desmatamento no bioma amazônico, somada à expansão de projetos apoiados por fundos climáticos, pode representar entre US$ 10 bilhões e US$ 20 bilhões em oportunidades financeiras para o Brasil até 2030, com potencial de evitar 1,048,8 milhão de toneladas de CO₂ equivalente.
O estudo destaca que, ao transformar a conservação florestal em ativo econômico, mecanismos como o Fundo Amazônia são cruciais para realizar as promessas brasileiras no âmbito das NDC's - conectando o fluxo financeiro internacional às ações locais que efetivamente reduzem emissões e fortalecem comunidades amazônicas.
Projeto de governo versus política de Estado
Depois de oito anos da assinatura do Acordo de Paris, o desafio não é mais apenas definir metas, mas mostrar resultados. No Brasil do agronegócio predatório e combustíveis fósseis ainda no centro da matriz energética, as NDC's deixaram de ser um documento técnico para se tornarem um termômetro da coerência entre discurso e prática.
A professora Mariana Vale explica que as NDC's são o mapa do compromisso climático brasileiro. "Cumprir as NDC's é mostrar que o Brasil tem coerência entre o que promete e o que faz. Elas não são uma carta de intenções, são um plano de ação. E isso exige integração entre ministérios, governos locais e, principalmente, investimentos sustentáveis e de longo prazo", afirma.
O financiamento internacional é apenas parte da engrenagem e passa por um elemento central: a política. Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), o Fundo Amazônia enfrentou uma paralisação significativa.
Em agosto de 2019, o governo extinguiu os dois comitês responsáveis pela gestão do fundo (Comitê Orientador do Fundo Amazônia - COFA e Comitê Técnico do Fundo Amazônia - CTFA), o que levou à suspensão dos repasses feitos pela Noruega e Alemanha. Essa paralisação resultou em milhares de projetos congelados: relatórios apontam que pelo menos R$2,9 bilhões do fundo ficaram sem aplicação, mais de 40 projetos foram paralisados e o mecanismo deixou de aprovar novos apoios desde 2018.
Para André Ferretti, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN), o país ainda trata as metas climáticas como projetos de governo, e não como política de Estado. "O financiamento internacional é essencial, mas não substitui o orçamento público. O Brasil precisa investir recursos próprios e criar instrumentos de continuidade. Caso contrário, cada troca de governo reinicia o jogo", avalia Ferretti.
https://infoamazonia.org/2025/11/07/da-cop-a-floresta-como-o-dinheiro-de-fundos-climaticos-e-aplicado-em-projetos-na-amazonia/
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