De Povos Indígenas no Brasil
Notícias
As nódoas de sangue
24/02/2005
Autor: SANTAYANA, Mauro
Fonte: CB, Opinião, p. 33
As nódoas de sangue
A morte das crianças caiovás, no Mato Grosso do Sul, faz lembrar as mãos de Pilatos. Ao lavar as nossas mãos, não conseguimos desfazer as nódoas de sangue, nelas deixadas pelos crimes passados.
Tentamos desfazê-las, mas elas se encardem na reincidência.
Continuamos a exterminar os índios, não com os bacamartes dos audazes paulistas, tão decantados em prosa e verso, mas com a indiferença. As crianças caiovás, que morrem de fome em Dourados, não pertencem à nossa própria espécie. Tampouco pertencem à nossa própria espécie os adolescentes da Febem, os meninos traficantes de cocaína, os trombadinhas e os meninos que mendigam.
O tráfico de entorpecentes, as armas e os assaltos à mão armada são conquistas da civilização. Levamos séculos e milênios para descobrir os mistérios da física e da química, fundir os metais, misturar os sais da terra, produzir pistolas e canhões, inventar a pólvora, chegar aos mísseis e à fissão dos átomos. Tudo isso para acabar com os que nos incomodavam e continuam a incomodar: os outros. Os diferentes. Os répteis urbanos e os carnívoros selvagens: os trombadinhas e o que resta de alma indígena nos outrora orgulhosos caiovás-guaranis. A mais ousada aventura dos homens - a ocupação da América - foi o maior delito da História.
Podemos vê-la como inevitável e necessária. O homem se tornara maior do que o grande continente que une a Europa, a África e a Ásia - e maior do que a sua história anterior. O salto sobre o Atlântico, se não viesse na passagem do século XV para o XVI, viria logo depois. A velas maiores, mares menores. Assim pensavam e pensamos os "civilizadores": mas o que pensavam e provavelmente continuam pensando os "civilizáveis"?
O primeiro europeu a meditar o assunto foi Montaigne, na segunda metade do século XVI, em ensaio sobre o Brasil. A esse texto se atribui o nascimento do mito do bom selvagem, que seria depois retomado por Rousseau e outros iluministas. Montaigne baseia-se no testemunho de um francês que, tendo acompanhado Villegagnon ao Rio, vivera mais de dez anos entre os nossos índios.
"É uma nação, eu poderia dizer a Platão, na qual não há qualquer comércio, nenhum conhecimento das letras, nenhuma ciência dos números, nenhum nome de governante, nenhuma superioridade política; nenhuma criadagem, nada de riqueza ou pobreza; nada de contratos, nada de heranças, nada de roupas, nada de metais, de vinho ou de trigo. As palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, maledicência e perdão são desconhecidas".
Os antropólogos poderão corrigir os testemunhos de que se valia Montaigne, mas não no essencial. Durante todo o processo ocorreu (e continua ocorrendo) o saqueio do novo hemisfério pelos recém-chegados. Não só se apoderaram da prata e do ouro, do cacau e do pau-brasil, como se apropriaram, com o fim de exterminá-la, da alma dos índios. É conhecida a resposta que o cacique Hatuey, dos caraíbas de Cuba, condenado à morte pelos espanhóis, deu ao padre Las Casas que o confessava, prometendo-lhe o Céu. "No Céu há brancos?", indagou o chefe indígena. "Sim", disse o sacerdote. "Nesse caso - ponderou, ao recusar o sacramento -, prefiro o Inferno".
Não podemos retornar à Europa e devolver Pindorama aos seus aborígenes. Não somos mais os europeus que aqui chegaram. Em nosso sangue se encontram os genes de Bartira e Paraguaçu, como se encontram os genes dos negros trazidos para a dócil escravidão, uma vez que os nativos preferiam morrer a portar peias e grilhões. Mas as nossas mãos estão sujas de sangue velho e novo. Continuamos a exterminar os caiovás e não protegemos bem outras tribos, que confrontam com os novos invasores de suas terras.
Quanto lucraram os bancos brasileiros este ano? Qual foi o tributo que pagaram? É importante saber, também, quanto recolhem as empresas privatizadas e quanto têm recebido, na majoração das tarifas? Ínfima parcela de tais lucros daria para salvar da fome e da morte as crianças de Dourados, e salvar do crime os meninos do Rio e de São Paulo.
Quando o marechal Rondon passou por aquelas terras ocidentais, levando as linhas do telégrafo e a sua retórica pacifista (morrer, se for preciso, matar, nunca), os filhos dos caiovás não morriam de desnutrição. Mas precisávamos daquelas terras para os brancos, e ali se criou a colônia de Dourados.
Voltemos a Montaigne, em suas reflexões sobre os nossos selvagens: Podemos, portanto, considerá-los bárbaros se usamos as regras da razão, mas não se os compararmos a nós mesmos, que os superamos em toda forma de barbaridade.
GM, 24/02/2005, Opinião, p.33
A morte das crianças caiovás, no Mato Grosso do Sul, faz lembrar as mãos de Pilatos. Ao lavar as nossas mãos, não conseguimos desfazer as nódoas de sangue, nelas deixadas pelos crimes passados.
Tentamos desfazê-las, mas elas se encardem na reincidência.
Continuamos a exterminar os índios, não com os bacamartes dos audazes paulistas, tão decantados em prosa e verso, mas com a indiferença. As crianças caiovás, que morrem de fome em Dourados, não pertencem à nossa própria espécie. Tampouco pertencem à nossa própria espécie os adolescentes da Febem, os meninos traficantes de cocaína, os trombadinhas e os meninos que mendigam.
O tráfico de entorpecentes, as armas e os assaltos à mão armada são conquistas da civilização. Levamos séculos e milênios para descobrir os mistérios da física e da química, fundir os metais, misturar os sais da terra, produzir pistolas e canhões, inventar a pólvora, chegar aos mísseis e à fissão dos átomos. Tudo isso para acabar com os que nos incomodavam e continuam a incomodar: os outros. Os diferentes. Os répteis urbanos e os carnívoros selvagens: os trombadinhas e o que resta de alma indígena nos outrora orgulhosos caiovás-guaranis. A mais ousada aventura dos homens - a ocupação da América - foi o maior delito da História.
Podemos vê-la como inevitável e necessária. O homem se tornara maior do que o grande continente que une a Europa, a África e a Ásia - e maior do que a sua história anterior. O salto sobre o Atlântico, se não viesse na passagem do século XV para o XVI, viria logo depois. A velas maiores, mares menores. Assim pensavam e pensamos os "civilizadores": mas o que pensavam e provavelmente continuam pensando os "civilizáveis"?
O primeiro europeu a meditar o assunto foi Montaigne, na segunda metade do século XVI, em ensaio sobre o Brasil. A esse texto se atribui o nascimento do mito do bom selvagem, que seria depois retomado por Rousseau e outros iluministas. Montaigne baseia-se no testemunho de um francês que, tendo acompanhado Villegagnon ao Rio, vivera mais de dez anos entre os nossos índios.
"É uma nação, eu poderia dizer a Platão, na qual não há qualquer comércio, nenhum conhecimento das letras, nenhuma ciência dos números, nenhum nome de governante, nenhuma superioridade política; nenhuma criadagem, nada de riqueza ou pobreza; nada de contratos, nada de heranças, nada de roupas, nada de metais, de vinho ou de trigo. As palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, maledicência e perdão são desconhecidas".
Os antropólogos poderão corrigir os testemunhos de que se valia Montaigne, mas não no essencial. Durante todo o processo ocorreu (e continua ocorrendo) o saqueio do novo hemisfério pelos recém-chegados. Não só se apoderaram da prata e do ouro, do cacau e do pau-brasil, como se apropriaram, com o fim de exterminá-la, da alma dos índios. É conhecida a resposta que o cacique Hatuey, dos caraíbas de Cuba, condenado à morte pelos espanhóis, deu ao padre Las Casas que o confessava, prometendo-lhe o Céu. "No Céu há brancos?", indagou o chefe indígena. "Sim", disse o sacerdote. "Nesse caso - ponderou, ao recusar o sacramento -, prefiro o Inferno".
Não podemos retornar à Europa e devolver Pindorama aos seus aborígenes. Não somos mais os europeus que aqui chegaram. Em nosso sangue se encontram os genes de Bartira e Paraguaçu, como se encontram os genes dos negros trazidos para a dócil escravidão, uma vez que os nativos preferiam morrer a portar peias e grilhões. Mas as nossas mãos estão sujas de sangue velho e novo. Continuamos a exterminar os caiovás e não protegemos bem outras tribos, que confrontam com os novos invasores de suas terras.
Quanto lucraram os bancos brasileiros este ano? Qual foi o tributo que pagaram? É importante saber, também, quanto recolhem as empresas privatizadas e quanto têm recebido, na majoração das tarifas? Ínfima parcela de tais lucros daria para salvar da fome e da morte as crianças de Dourados, e salvar do crime os meninos do Rio e de São Paulo.
Quando o marechal Rondon passou por aquelas terras ocidentais, levando as linhas do telégrafo e a sua retórica pacifista (morrer, se for preciso, matar, nunca), os filhos dos caiovás não morriam de desnutrição. Mas precisávamos daquelas terras para os brancos, e ali se criou a colônia de Dourados.
Voltemos a Montaigne, em suas reflexões sobre os nossos selvagens: Podemos, portanto, considerá-los bárbaros se usamos as regras da razão, mas não se os compararmos a nós mesmos, que os superamos em toda forma de barbaridade.
GM, 24/02/2005, Opinião, p.33
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