De Povos Indígenas no Brasil
The printable version is no longer supported and may have rendering errors. Please update your browser bookmarks and please use the default browser print function instead.
Notícias
Americano aceita devolver sangue de índio ianomâmi
09/05/2010
Fonte: FSP, Ciência, p. A22
Americano aceita devolver sangue de índio ianomâmi
Proposta do Brasil a cinco centros de pesquisa pode encerrar disputa iniciada em 1967
Livro acusou antropólogos de trocar material biológico por bugigangas; devolução divide opiniões de institutos que ainda detêm ampolas
Dario Lopez-Mills - 22.mar.98/Associated Press
Criança ianomâmi pinta o rosto em maloca numa aldeia do Amazonas; cerca de 3.000 índios tiveram sangue, urina, fezes e saliva coletados na década de 1960 para estudos biomédicos nos EUA
Andrea Murta
De Washington
Uma proposta de acordo enviada pelo governo brasileiro em março a cinco centros de pesquisa americanos está prestes a resolver uma polêmica mundial que começou há mais de quarenta anos entre geneticistas e antropólogos estrangeiros e índios ianomâmis.
A disputa tem origem em 1967, quando equipes lideradas pelo geneticista James Neel e pelo antropólogo Napoleon Chagnon recolheram milhares de amostras de sangue ianomâmi no Brasil e na Venezuela.
No ano 2000, o jornalista norte-americano Patrick Tierney os acusou em seu livro "Trevas no Eldorado" de, entre outras coisas, "comprar" o sangue com armas e presentes e conduzir pesquisas sem obter consentimento dos índios. Neel morreu naquele ano sem ter sido investigado. Chagnon foi inocentado pela Associação Americana Antropologia.
Além de levantar uma das maiores controvérsias éticas e científicas da antropologia ao redor do mundo, o livro horrorizou os ianomâmis ao apontar para a manutenção até hoje de sangue congelado de seus pais e avós em centros de pesquisa.
Lideranças ianomâmis tentam há anos reaver as amostras para finalizar rituais mortuários, mas os centros inicialmente resistiram a devolvê-las, não só por sua utilidade em pesquisas, como por temores de problemas na Justiça.
Sob pressão dos índios, o Ministério Público Federal de Roraima deu início em 2005 a um procedimento administrativo para recuperar as amostras.
Foram enviadas cartas a diversas instituições nos EUA, das quais cinco confirmaram ter material biológico ianomâmi em seu poder: Universidade do Estado da Pensilvânia (a Penn State), Instituto Nacional do Câncer, Universidade Binghamton, Universidade do Estado de Ohio e Universidade da Califórnia em Irvine.
Após anos de consultas, foi feita em março uma proposta de "Acordo de Transferência de Material" para a devolução das amostras ao Brasil. As universidades, cansadas da polêmica, indicaram disposição em ceder.
Desativação
A proposta prevê que os institutos seriam responsáveis por enviar o material a Washington, onde a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recolheria as amostras e as levaria ao Brasil. Todo o processo seria acompanhado por representante do Ministério Público, que depois atestaria o destino final do material conforme indicação dos índios.
O acordo indica que seria feita desativação microbiológica do material antes da devolução. Há preocupações com a destinação das amostras pelos índios e com uma possível contaminação -os ianomâmis têm o costume de queimar os restos de parentes e comer as cinzas.
Ainda estão sendo negociadas questões jurídicas e de manuseio. Algumas universidades procuraram a Embaixada do Brasil em Washington para pedir pequenos ajustes: o Instituto Nacional do Câncer, por exemplo, tem dúvidas sobre o processo de esterilização.
Ainda assim, segundo Alexandre Vidal Porto, ministro-conselheiro da embaixada brasileira, "a expectativa é que a questão seja resolvida no menor espaço de tempo possível e que as amostras de sangue sejam devolvidas aos índios ianomâmis o quanto antes".
Contatadas pela Folha, três das cinco universidades se disseram ansiosas pela resolução da controvérsia e confirmaram a intenção de devolver as amostras rapidamente.
A Universidade do Estado de Ohio e a Universidade da Califórnia em Irvine, aparentemente a mais reticente quanto ao acordo, não haviam respondido aos pedidos de informação da reportagem até o fechamento desta edição.
O professor Kenneth Weiss, do departamento de antropologia da Universidade Penn State, disse que não há mais controvérsia sobre a devolução e que a questão é apenas legal.
"O acordo está sendo avaliado por advogados da universidade; depois disso, quero garantir que não haverá riscos biológicos de contaminação."
Ele diz que não tem indicação de que as amostras seriam perigosas, mas que é possível que parasitas e bactérias tenham sobrevivido congelados através dos anos.
Perda científica
Weiss afirma que o uso das amostras em pesquisas da Penn State foi interrompido cerca de um ano após a publicação do livro de Tierney. Do ponto de vista científico, ele crê que a devolução é uma perda.
"Não há valor financeiro [nas amostras], mas muito valor para a compreensão de como populações viviam no passado. Se os ianomâmis concordassem, eu adoraria manter e usar as amostras", explica.
O Instituto Nacional do Câncer disse que "está ansioso para completar o acordo e devolver as amostras" para o Brasil.
Karen Pitt, assistente especial para recursos biológicos do instituto, confirmou que o sangue ianomâmi foi usado em alguns estudos, que resultaram na publicação de dois artigos. Mas disse que "o uso foi bloqueado assim que ficou claro que o governo brasileiro estava interessado em reaver as amostras, em 2005 ou 2006".
Gerald Sonnenfeld, vice-presidente de pesquisa da Universidade Binghamton, disse que seus cientistas aceitaram devolver as amostras há muitos anos. "Estivemos esperando que o governo brasileiro nos dissesse como proceder, e estamos satisfeitos por ver a questão sendo resolvida agora."
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0905201001.htm
saiba mais
Tribo quer fazer funeral para amostras
Da Redação
Os ianomâmis sabem direitinho o que fazer com as mais de 2.000 amostras de sangue coletadas por James Neel e colegas quando elas voltarem a Roraima. Chamarão os velhos, chorarão pelos parentes mortos e despejarão tudo no rio.
Os índios acham inconcebível que partes de pessoas que não existem mais ainda possam estar zanzando por aí, trancafiadas em geladeiras a milhares de quilômetros de distância.
Não há lugar para a permanência dos mortos na Terra na visão de mundo ianomâmi. As cinzas dos parentes são misturadas a comida ou bebida para que não sobre nada do finado. Seu nome nunca mais é mencionado.
"É a maneira como você constrói a separação entre o mundo dos mortos e o dos vivos", diz o antropólogo Bruce Albert, da Comissão Permanente Pró-Yanomami, em depoimento no filme "Napëpë" (2004), da antropóloga Nadja Marin. "Se você não faz isso, os mortos voltam e ficam perseguindo os vivos."
Albert e o líder Davi Kopenawa Yanomami foram os principais responsáveis pela ação do Ministério Público junto aos EUA para a devolução das amostras.
Ambos estavam na Alemanha na semana passada e não responderam a pedidos de entrevista da reportagem.
Para Davi Yanomami, os cientistas não disseram o que seria feito com o sangue -só que as pesquisas trariam benefício. "Em parte vacinaram para sarampo, mas sangue eles não falaram, não."
Albert chama a coleta de "biopirataria". "Um dia [o DNA] pode ser explorado comercialmente, sem que os ianomâmis possam controlar qualquer coisa." (CA)
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0905201002.htm
FSP, 09/05/2010, Ciência, p. A22
Proposta do Brasil a cinco centros de pesquisa pode encerrar disputa iniciada em 1967
Livro acusou antropólogos de trocar material biológico por bugigangas; devolução divide opiniões de institutos que ainda detêm ampolas
Dario Lopez-Mills - 22.mar.98/Associated Press
Criança ianomâmi pinta o rosto em maloca numa aldeia do Amazonas; cerca de 3.000 índios tiveram sangue, urina, fezes e saliva coletados na década de 1960 para estudos biomédicos nos EUA
Andrea Murta
De Washington
Uma proposta de acordo enviada pelo governo brasileiro em março a cinco centros de pesquisa americanos está prestes a resolver uma polêmica mundial que começou há mais de quarenta anos entre geneticistas e antropólogos estrangeiros e índios ianomâmis.
A disputa tem origem em 1967, quando equipes lideradas pelo geneticista James Neel e pelo antropólogo Napoleon Chagnon recolheram milhares de amostras de sangue ianomâmi no Brasil e na Venezuela.
No ano 2000, o jornalista norte-americano Patrick Tierney os acusou em seu livro "Trevas no Eldorado" de, entre outras coisas, "comprar" o sangue com armas e presentes e conduzir pesquisas sem obter consentimento dos índios. Neel morreu naquele ano sem ter sido investigado. Chagnon foi inocentado pela Associação Americana Antropologia.
Além de levantar uma das maiores controvérsias éticas e científicas da antropologia ao redor do mundo, o livro horrorizou os ianomâmis ao apontar para a manutenção até hoje de sangue congelado de seus pais e avós em centros de pesquisa.
Lideranças ianomâmis tentam há anos reaver as amostras para finalizar rituais mortuários, mas os centros inicialmente resistiram a devolvê-las, não só por sua utilidade em pesquisas, como por temores de problemas na Justiça.
Sob pressão dos índios, o Ministério Público Federal de Roraima deu início em 2005 a um procedimento administrativo para recuperar as amostras.
Foram enviadas cartas a diversas instituições nos EUA, das quais cinco confirmaram ter material biológico ianomâmi em seu poder: Universidade do Estado da Pensilvânia (a Penn State), Instituto Nacional do Câncer, Universidade Binghamton, Universidade do Estado de Ohio e Universidade da Califórnia em Irvine.
Após anos de consultas, foi feita em março uma proposta de "Acordo de Transferência de Material" para a devolução das amostras ao Brasil. As universidades, cansadas da polêmica, indicaram disposição em ceder.
Desativação
A proposta prevê que os institutos seriam responsáveis por enviar o material a Washington, onde a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recolheria as amostras e as levaria ao Brasil. Todo o processo seria acompanhado por representante do Ministério Público, que depois atestaria o destino final do material conforme indicação dos índios.
O acordo indica que seria feita desativação microbiológica do material antes da devolução. Há preocupações com a destinação das amostras pelos índios e com uma possível contaminação -os ianomâmis têm o costume de queimar os restos de parentes e comer as cinzas.
Ainda estão sendo negociadas questões jurídicas e de manuseio. Algumas universidades procuraram a Embaixada do Brasil em Washington para pedir pequenos ajustes: o Instituto Nacional do Câncer, por exemplo, tem dúvidas sobre o processo de esterilização.
Ainda assim, segundo Alexandre Vidal Porto, ministro-conselheiro da embaixada brasileira, "a expectativa é que a questão seja resolvida no menor espaço de tempo possível e que as amostras de sangue sejam devolvidas aos índios ianomâmis o quanto antes".
Contatadas pela Folha, três das cinco universidades se disseram ansiosas pela resolução da controvérsia e confirmaram a intenção de devolver as amostras rapidamente.
A Universidade do Estado de Ohio e a Universidade da Califórnia em Irvine, aparentemente a mais reticente quanto ao acordo, não haviam respondido aos pedidos de informação da reportagem até o fechamento desta edição.
O professor Kenneth Weiss, do departamento de antropologia da Universidade Penn State, disse que não há mais controvérsia sobre a devolução e que a questão é apenas legal.
"O acordo está sendo avaliado por advogados da universidade; depois disso, quero garantir que não haverá riscos biológicos de contaminação."
Ele diz que não tem indicação de que as amostras seriam perigosas, mas que é possível que parasitas e bactérias tenham sobrevivido congelados através dos anos.
Perda científica
Weiss afirma que o uso das amostras em pesquisas da Penn State foi interrompido cerca de um ano após a publicação do livro de Tierney. Do ponto de vista científico, ele crê que a devolução é uma perda.
"Não há valor financeiro [nas amostras], mas muito valor para a compreensão de como populações viviam no passado. Se os ianomâmis concordassem, eu adoraria manter e usar as amostras", explica.
O Instituto Nacional do Câncer disse que "está ansioso para completar o acordo e devolver as amostras" para o Brasil.
Karen Pitt, assistente especial para recursos biológicos do instituto, confirmou que o sangue ianomâmi foi usado em alguns estudos, que resultaram na publicação de dois artigos. Mas disse que "o uso foi bloqueado assim que ficou claro que o governo brasileiro estava interessado em reaver as amostras, em 2005 ou 2006".
Gerald Sonnenfeld, vice-presidente de pesquisa da Universidade Binghamton, disse que seus cientistas aceitaram devolver as amostras há muitos anos. "Estivemos esperando que o governo brasileiro nos dissesse como proceder, e estamos satisfeitos por ver a questão sendo resolvida agora."
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0905201001.htm
saiba mais
Tribo quer fazer funeral para amostras
Da Redação
Os ianomâmis sabem direitinho o que fazer com as mais de 2.000 amostras de sangue coletadas por James Neel e colegas quando elas voltarem a Roraima. Chamarão os velhos, chorarão pelos parentes mortos e despejarão tudo no rio.
Os índios acham inconcebível que partes de pessoas que não existem mais ainda possam estar zanzando por aí, trancafiadas em geladeiras a milhares de quilômetros de distância.
Não há lugar para a permanência dos mortos na Terra na visão de mundo ianomâmi. As cinzas dos parentes são misturadas a comida ou bebida para que não sobre nada do finado. Seu nome nunca mais é mencionado.
"É a maneira como você constrói a separação entre o mundo dos mortos e o dos vivos", diz o antropólogo Bruce Albert, da Comissão Permanente Pró-Yanomami, em depoimento no filme "Napëpë" (2004), da antropóloga Nadja Marin. "Se você não faz isso, os mortos voltam e ficam perseguindo os vivos."
Albert e o líder Davi Kopenawa Yanomami foram os principais responsáveis pela ação do Ministério Público junto aos EUA para a devolução das amostras.
Ambos estavam na Alemanha na semana passada e não responderam a pedidos de entrevista da reportagem.
Para Davi Yanomami, os cientistas não disseram o que seria feito com o sangue -só que as pesquisas trariam benefício. "Em parte vacinaram para sarampo, mas sangue eles não falaram, não."
Albert chama a coleta de "biopirataria". "Um dia [o DNA] pode ser explorado comercialmente, sem que os ianomâmis possam controlar qualquer coisa." (CA)
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0905201002.htm
FSP, 09/05/2010, Ciência, p. A22
As notícias publicadas no site Povos Indígenas no Brasil são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos .Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.