De Povos Indígenas no Brasil

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A outra coleção da Cartier

04/04/2014

Fonte: Valor Econômico, EU & Fim de Semana, p. 28-30



A outra coleção da Cartier

Por Diego Viana
Para o Valor, de São Paulo

A América Latina e o Brasil em particular têm um espaço privilegiado na celebração dos 30 anos da Fundação Cartier para a Arte Contemporânea, instituição sediada em Paris que fomenta e exibe artistas de todo o mundo. O Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio abriga até o início de junho uma exposição de obras do escultor australiano Ron Mueck, realizada no ano passado na Fundação Cartier de Paris. Já na capital francesa a fundação expõe a mostra "América Latina, 1960-2013", que ressalta o lado político da produção de artistas do continente, com obras de resistência às ditaduras e de crítica social. Criadores como Hélio Oiticica, Claudia Andujar e Artur Barrio estão representados na exposição.
Desde o início, a Fundação Cartier tem proximidade com o Brasil, fruto da relação estreita que o criador da instituição mantém com o país. O executivo, empresário e colecionador de arte Alain Dominique Perrin, que em 20 de outubro de 1984 deu início às atividades da fundação, esteve no Rio pela primeira vez em 1973, quando dirigia uma coleção de joias da Cartier. A empresa era representada no Brasil, à época, pela joalheria Natan, que no ano passado encerrou definitivamente as atividades.
Entre elogios à produção artística e queixas quanto à corrupção e às tarifas aduaneiras do Brasil, Perrin se tornou visitante constante do país e entrou em relação direta com artistas locais. "Há muito tempo é um país que tem um número impressionante de grandes artistas. Na América Latina, outros países assim são Argentina, México e Cuba", diz. Entre as comemorações previstas para o aniversário da Fundação Cartier, que começam oficialmente em 10 de maio, está a encomenda de uma obra de arte a Beatriz Milhazes. "Ela está trabalhando nisso agora, então não sei o que virá", conta Perrin. Os cartazes que celebram a data também terão desenhos da artista. Um trabalho da fotógrafa Claudia Andujar está em vista, com os ianomâmis como tema.
Os ianomâmis são um assunto que mobiliza o executivo, que afirma ter planos para se engajar pessoalmente na luta para a preservação das terras e tradições do povo autóctone. "É preciso, principalmente, deixar claro que os ianomâmis não são um patrimônio do Brasil, mas do mundo, e o mundo inteiro está atento ao risco de extermínio das populações da Amazônia", afirma Perrin, acrescentando que o Brasil abriga muitas das últimas etnias que conseguiram sobreviver ao avanço da civilização e da economia industrial. "Espero que o governo brasileiro se pronuncie claramente, de uma vez por todas, pela proteção aos ianomâmis e outros povos indígenas ameaçados. O país é grande o suficiente para abrigar todos."
A coleção da Fundação Cartier, após 30 anos de exposições e obras encomendadas, chegou a aproximadamente 1.300 peças, das quais entre 30 e 40, nas estimativas de Perrin, foram doadas por Gilberto Chateaubriand, um dos maiores colecionadores brasileiros. "Gilberto nos ajudou muito no começo. Esse é um dos motivos pelos quais nos interessamos tanto pelo Brasil", afirma Perrin, que se encontrou com o colecionador Bernardo Paz em Inhotim (MG), para planejar exposições em parceria. "Começo a vender algumas obras, mesmo importantes, que tenham sido encomendadas sem relação com exposições que fizemos", revela. "A ideia é que a coleção reflita o mais perfeitamente possível a história da relação da fundação com os artistas." Mais de 800 obras já foram encomendadas para a coleção.
A atual sede da Fundação Cartier, no boulevard Raspail, ao sul de Paris, é um ponto reconhecido das artes na capital francesa, tanto por seus 2.400 m2 de área de exposição quanto pela fachada translúcida que leva a assinatura do arquiteto Jean Nouvel. A construção já recebeu mais de cem exposições, mas é possível que a fundação mude de endereço em breve. Há um projeto de expansão que inclui uma área nos fundos do prédio, mas uma pequena rua passa no meio dessa área. As negociações com a prefeitura para ocupá-la dependem ainda do processo eleitoral local, em maio. "A prefeitura está disposta a nos ceder todos os edifícios da rua, mas isso não adianta nada se a rua continuar passando no meio." Outros terrenos já estão sendo pesquisados, incluindo uma área no centro. "Mas, se formos embora, Jean Nouvel irá conosco e vai projetar o novo prédio. Ele é parceiro da fundação."
Segundo Perrin, são necessários no mínimo 5 mil m2 de exposição para que a fundação dirigida por Hervé Chandès funcione a contento. A primeira sede da instituição ficava na propriedade rural Domaine du Montcel, em Jouy-en-Josas, a oeste de Paris. Uma vantagem da primeira sede em relação à atual é que dispunha de área suficiente para contar, entre suas atividades, com residências para artistas internacionais, muitos dos quais acabaram representados na coleção. Por outro lado, exposições com grande visitação, como as que abriga o edifício projetado por Nouvel, eram impensáveis. A atual sede foi ocupada em 1994, no lugar do American Center, e recebeu desde então 3 milhões de visitantes.
Para o executivo, há tempos Paris deixou de ser um grande centro da arte, após ter sido a capital mundial das artes na virada para o século XX. As principais galerias já não existem e as que sobraram são incapazes de competir no mercado mundial da arte contemporânea. "As grandes galerias parisienses desapareceram. Ainda há duas ou três, mas são peixe pequeno no mercado mundial", nota. Na opinião de Perrin, o mercado de arte contemporânea francês foi sufocado pela presença excessivamente ativa do Ministério da Cultura, que ele julga muito poderoso. "A presença do ministério na vida dos artistas faz que a arte feita na França seja quase oficial. Os artistas estão praticamente na mão do Estado."
As duas vertentes principais da Fundação Cartier são as exposições em sua sede parisiense, que costumam ser acompanhadas de encomendas de obras para o artista expositor, e o empréstimo, para museus de todo o mundo, de obras da coleção. A filosofia da instituição, segundo Perrin, contou com uma forte influência do escultor francês César, de quem Perrin foi amigo e executor testamentário. O escultor afirmava ressentir-se da falta de um espaço onde os artistas pudessem se sentir livres para criar, e a Fundação Cartier se propôs a ser esse espaço.
O estabelecimento da entidade, cuja primeira diretora foi a curadora Marie-Claude Beaud, foi precedido de uma pesquisa com jovens europeus, no início dos anos 1980. O objetivo era conhecer seus gostos e suas aspirações. Os resultados, que mostravam um interesse inesperado em arte, particularmente na produção atual, tiveram influência no perfil da Fundação Cartier. "Não é à toa que hoje em dia o mercado de arte contemporânea esteja tão movimentado. Os jovens daquela época, hoje, são adultos com dinheiro para colecionar obras de arte", diz Perrin.
Desde o início, ele afirma ter instituído que a relação visível entre a empresa Cartier e sua fundação de mecenato das artes ficasse restrita ao nome. A não ser pelo financiamento, não há relação entre as duas entidades. À época, o executivo era presidente da Cartier e, do ponto de vista da empresa, o único benefício do mecenato era o renome trazido à marca. "Mas o principal é que jamais um artista exposto e promovido pela Fundação Cartier participe da criação de joias ou outros negócios da empresa", comenta. "Para o artista, a fundação tem de ser um espaço de liberdade, então o lado dos negócios precisa ficar completamente excluído, fora de questão."
Graças à iniciativa de estabelecer a Fundação Cartier, Perrin foi chamado pelo então presidente francês, François Mitterrand, para transformar o mecenato da fundação em modelo de lei para a França. Com efeito, a lei do mecenato foi aprovada em 1987. Antes disso, o apoio de empresas privadas à criação artística era praticamente inexistente no país, por falta de regulamentação legal. Desde então, várias corporações francesas passaram a investir em arte. A lei do mecenato foi inspirada nos modelos de cinco países: Espanha, Dinamarca, Estados Unidos, Reino Unido e Brasil. "Em 1986, estudei profundamente as leis de apoio às artes do Brasil. Já naquela época, era um país muito avançado na legislação do mecenato", afirma.
Os preços estratosféricos em que são negociadas as obras de arte contemporânea desde 2007 não passam, para Perrin, de valores bolha. O mesmo vale para vinhos e automóveis de coleção, que foram refúgio durante a "grande recessão" iniciada com a crise dos "subprimes" em 2007 nos EUA e se espalhou para a Europa. "Esses preços podem se evaporar em pouco tempo, oito dias ou menos", diz. No período, investidores e especuladores abandonaram ativos tradicionais, que não estão rendendo tanto quanto deveriam. Refugiaram-se primeiro em metais preciosos, depois em outras commodities e, por fim, passaram a especular nesses três "itens incomuns". "O preço do vinho Bordeaux subiu 12 vezes e o de certas peças contemporâneas não necessariamente boas, 5 vezes. Mas esses preços são completamente insensatos e vão cair quando a crise acabar. Isso, porém, ainda vai levar mais alguns anos", aposta.
A própria produção artística é impactada por esse fenômeno especulativo, diz Perrin, já que os artistas se sentem incentivados a produzir cada vez mais intensamente. Alguns artistas da moda invadem o mercado e vendem muito, mas "porque fazem coisas fáceis, cujo valor é meramente especulativo". Dois exemplos citados por ele são o americano Jeff Koons e o japonês Takashi Murakami. "As exceções são artistas verdadeiramente talentosos, que não se deixam seduzir e continuam produzindo em seu ritmo normal. Um bom exemplo é Beatriz Milhazes, que produz pouco e o que ela faz tem cada vez mais valor. Ela não faz obras fáceis."
Embora contestada e muitas vezes mal-entendida, a arte contemporânea, afirma Perrin, representa a conquista de um novo espaço para o artista, que deixa de ser um mero cronista e passa a exercer a liberdade de criar seus conceitos. "Até meados do século XIX, cabia ao artista fazer retratos de gente importante ou pintar cenas de batalhas. Era como um repórter fotográfico. Desde [Marcel] Duchamp, com seus princípios conceituais, o artista está livre."
Nas últimas décadas, o universo da arte contemporânea passou a incorporar artistas de regiões do mundo que até então estavam à margem. Nos anos 1960 e 70, a América Latina foi descoberta pelos marchands. Nos anos 1980 e 90, foi a vez da Ásia, particularmente a China, que se abria para o mercado mundial. Segundo Perrin, esse fenômeno reflete mudanças políticas profundas nos países. Hoje, as regiões das quais se pode esperar uma onda de artistas descobertos são, na sua avaliação, Myanmar, que começou a se democratizar em 2011, e a África. "É o continente que evolui mais rapidamente hoje em dia e isso vai se refletir certamente em arte."
Tendo iniciado a carreira como antiquário, Perrin entrou para a então chamada Briquet Cartier em 1969 e, em 1973, foi um dos criadores da linha Must Cartier, em parceria com Robert Hocq. "O luxo era algo de discreto, confidencial, silencioso. As lojas eram fechadas atrás de cortinas. Havia uma simbologia de que aquilo estava reservado aos muito ricos e, principalmente, muito poderosos", lembra. "A ideia do Must foi sair desse confinamento. Hoje, isso é normal, mas na época foi uma brutalidade", afirma.
Abrir o luxo para além do confinamento e do poder foi associado à criação de um conceito, o "luxo moderno". De acordo com Perrin, não se trata de tornar o luxo algo barato: "Eram relógios, isqueiros, canetas e outros produtos de ouro, caríssimos. Mas eram coisas mais fáceis de encontrar, estavam disponíveis em lugares diferentes".
Entre 1981 e 1996, Perrin foi presidente da Cartier. Após deixar o posto, passou a se dedicar a diversas atividades, como o ensino superior, presidindo a Fundação Europeia para o Desenvolvimento da Administração (EFMD). Ele é proprietário da Escola de Dirigentes e Criadores de Empresas (EDC) e fundador do Instituto Superior de Marketing do Luxo. Perrin foi vice-presidente do grupo suíço Richemond, holding proprietária da Cartier. Aposentado oficialmente em 2003, tornou-se produtor de vinho da região de Bordeaux, com o Château Lagrézette, e desde 2008 investe também em camping de luxo na França.

Valor Econômico, 04-06/04/2014, EU & Fim de Semana, p. 28-30

http://www.valor.com.br/cultura/3505406/outra-colecao-da-cartier
 

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