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'Hoje, xamanismo é alta tecnologia de acesso'

07/08/2015

Autor: SANTOS, Laymert Garcia dos

Fonte: O Globo, Página 2, p. 2



'Hoje, xamanismo é alta tecnologia de acesso'
Doutor pela Sorbonne e estudioso dos ianomâmis, paulista que montou ópera com cosmologia indígena em Munique veio ao Rio para aula na EAV Parque Lage

Laymert Garcia dos Santos: cientista da informação

Arnaldo Bloch

"Nasci numa cidade que mal conheço, Itápolis, mistura de pedra, ('ita'), do guarani, e cidade ('polis'), do grego: um pouco a essência brasileira. Estudei no Rio e passei décadas na França. Lecionei muitos anos no Brasil, trabalhando relações entre tecnologia, cultura, ambiente e arte. Sou casado, tenho um filho patologista"
Conte algo que não sei.
Hoje, o que a gente considerava o sobrenatural indígena, o xamanismo, é uma alta tecnologia de acesso a mundos virtuais, com lógicas que não são ocidentais, mas no final acabam chegando, cada vez mais, a uma espécie de cruzamento com a perspectiva tecnocientífica racional.
Em que ponto se dá esse cruzamento?
A ciência já sabe que existe, na Amazônia, um apocalipse anunciado, se a devastação persistir. Há um milênio os ianomâmis falam de um apocalipse mítico: quando não houver mais xamãs, o céu vai cair... pois são eles que seguram o céu, junto com os espíritos auxiliares humanimais.
As profecias convergem para a ecologia de ponta...
Sim. E na ópera que fizemos essas duas perspectivas acabam convergindo para um final catastrófico. Na perspectiva ianomâmi, o homem branco é inumano, um vetor de destruição, e produz a xawara, espécie de fumaça canibal, que vai devorando florestas, espalhando as doenças e epidemias, contaminando rios.
Deve ser complexo transpor uma cosmologia dessas para os palcos de Munique...
Ficamos um tempo na aldeia Demini, semi-isolada, e trabalhamos com os xamãs, em parceria com o Instituto Goethe, o Sesc São Paulo, o ZKM (maior centro de arte e tecnologia da Europa), a Bienal de Teatro Música de Munique e gente da comunidade científica.
Como levar o espírito da aldeia a uma cena de ópera?
Depois de todo o trabalho conceitual na aldeia, chegamos a uma encenação do conflito entre a xawara e o xamã. O público assistia circulando no próprio palco, um labirinto. O xamã era representado pelo cantor suíço Christian Zehnder, que já trabalhou na África e na Ásia e é um dos raros no mundo a usar a técnica do voice over, que permite emitir duas vozes ao mesmo tempo, recurso gutural. Quem fazia a xawara era um grande cantor de idade já, o inglês Phil Minton, cantor de jazz.
E tal da tecnologia,era só coadjuvante da tragédia?
Num espaço comprid se dispunha uma sequência de telas, e eram projetadas imagens e luzes que traduziam os fenômenos da selvada através de algoritmos. O público ficava perdido na "floresta," o xamã numa ponta, xawara na outra, além de um político, um missionário e um cientista.
Os ianomâmis assistiram?
A maioria, não. A ópera não foi feita para eles. Mesmo assim, foram a Munique o chefe Davi Kopenawa e dois xamãs.
E como reagiram?
Primeiro, ficaram satisfeitos com o fato de um público tomar conhecimento, de maneira séria, do que são a cosmologia e o pensamento deles. O caráter estratégico. Mas da a apresentação em si eles riram: acham que arte é coisa de criança, não é o sentido profundo do fenômeno. Que aquela ópera era uma brincadeira perto do xamanismo. Um professor de filosofia percebeu aí uma simetria: os brancos acham os índios infantis por suas crenças, e eles nos acham infantis por nossas representações de sua realidade.
O que a experiência trouxe a você como pessoa?
Fui muitas vezes. Nos começo dos anos 2000 presidi uma ONG que lutou pela defesa e preservação do território ianomami. Estar com eles ajuda a gente a entender não só o que é o outro, mas o que somos. É um tipo de privilégio. Pena que pouca gente teve ou tem um contato de pura positividade com esse mundo que, para nós, é quase sempre vivido na esfera do negativo. Pela educação que a gente tem, pela tradição histórica do modo como os brasileiros tratam os índios. No Japão, seriam seres preciosos, sagrados.

O Globo, 07/08/2015, Página 2, p. 2


http://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/laymert-garcia-dos-santos-hoje-xamanismo-alta-tecnologia-de-acesso-17110386
 

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