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Caravana de Direitos Humanos testemunha violação de direitos, ameaças, omissão e resistência no território Sateré Mawé

22/08/2025

Autor: Por Lígia Apel, da Assessoria de Comunicação do Cimi Regional Norte 1

Fonte: Cimi - https://cimi.org.br



"A defesa do território não é apenas sobre a terra, mas sobre a vida do nosso povo e o futuro das próximas gerações. Sem políticas públicas e apoio do Estado, continuamos isolados e vulneráveis". A afirmação é do tuxaua geral do povo Sateré Mawé, da Terra Indígena (TI) Andirá-Marau, durante a Caravana de Direitos Humanos, realizada nos dias 6 e 7 de agosto, no Centro de Formação Paraíso II, localizado no rio Urupadi, região próxima à divisa do Amazonas com o Pará, nos municípios de Maués (AM) e Barreirinha (AM).

A Caravana de Direitos Humanos é uma iniciativa coletiva de organizações da sociedade civil que vem se realizando nos últimos anos em diferentes localidades com os objetivos de desencadear processos de escuta nas comunidades, registrar e documentar denúncias de violações de direitos e planejar estratégias de enfrentamento a essas violências.

Na edição junto aos Sateré Mawé estiveram reunidas representações de 25 aldeias da TI Andirá-Marau, o tuxaua geral do território e oito organizações sociais defensoras dos direitos humanos e dos povos indígenas, entre elas o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte I.

Para Jussara Góes, integrante da coordenação colegiada do Cimi Norte I, ouvir o que os Sateré Mawé têm a dizer sobre sua realidade permite saber qual o tratamento que o Estado lhes oferece. "Foi um momento importante para o povo relatar sua realidade e [sabermos] onde se encontram desamparados pelo Estado no que diz respeito à garantia de seus direitos constitucionais".

O articulador do projeto Defendendo Vidas e Garantindo Direitos Expropriados, Paulo César Moreira Santos, acompanhou a Caravana e confirma que a ideia é justamente essa que Jussara aponta: "dar visibilidade às violações de direitos humanos nos territórios, nos lugares onde elas acontecem", explicou, indicando que para um diagnóstico local é fundamental uma escuta por instituições locais.

"Por isso, ela [a Caravana] é realizada em total harmonia e articulação com as entidades locais. Várias entidades fizeram parte e todas são ou têm ações inseridas na questão dos direitos humanos, especialmente dos direitos indígenas, no Amazonas", observou.

"Há necessidade de fortalecer o povo, de fortalecer as políticas públicas direcionadas a esse povo, fortalecendo internamente com formação, com o apoio das entidades, com denúncias. Ouvir e agir são extremamente necessários"

Leis para Humanos Direitos

No mundo, a todos os seres humanos estão garantidos direitos à dignidade e igualdade, sem distinção de raça, sexo, nacionalidade, etnia, língua, religião ou qualquer outra condição, incluindo os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, como o direito à vida, liberdade, igualdade, segurança, propriedade, educação, saúde e trabalho, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

No Brasil, a todos os povos indígenas está garantido seu direito "originário às terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os seus bens", de acordo com a Constituição Federal, e o direito às políticas públicas específicas, de acordo com legislação específica.

No entanto, a Caravana de Direitos Humanos viu e ouviu que essas legislações, por mais abrangentes que sejam em suas dimensões políticas e geográficas, não estão sendo aplicadas ao povo Sateré Mawé da TI Andirá-Marau.

"Há problemas de diversos níveis. Desde os problemas internos como de interferência externa. Bebida alcoólica, religiões que promovem divisões internas e invasões no território em busca de recursos naturais. Problemas de isolamento político, que se agrava pelo isolamento geográfico. Pouca assistência e poucos projetos políticos, o que vulnerabiliza muito mais o território e sua população. Houve diversas denúncias, questões sérias na área da saúde, da educação, a água e, principalmente, da segurança", pontuou Paulo. Ele também destacou o caso do desaparecimento do jovem Reinaldo, ocorrido em 2023 e que "até hoje está sem uma investigação à altura, situação grave de violação de direitos", evidenciou.

Os relatos, para ele, revelam a urgência de incidências políticas que busquem e garantam a efetivação dos direitos assegurados em todo o alicerce de leis nacionais e internacionais. Para isso, aponta um caminho: "há necessidade de fortalecer o povo, de fortalecer as políticas públicas direcionadas a esse povo, fortalecendo internamente com formação, com o apoio das entidades, com denúncias. Ouvir e agir são extremamente necessários", afirmou, enaltecendo as iniciativas de proteção ao seu território que os Sateré Mawé têm usado para se proteger e enfrentar as violações e violências decorrentes da ausência do Estado, com destaque para a Barreira de Vigilância instalada desde a pandemia em local de acesso estratégico para o território mantida pelas organizações comunitárias.

"É uma das experiências mais bem-sucedidas de monitoramento de território, dentre as várias que temos no Brasil. É uma experiência forte de organização, de articulação, de racionalização dos problemas e de uma capacidade interna muito grande, de lidar com a problemática", identifica Paulo.

"Apenas algumas comunidades têm poços artesianos, a maioria não tem. Em outras, a instalação dos poços não está concluída. E as que têm precisam de manutenção. Nessas condições, é comum recorrermos às águas do rio"

Denúncias e enfrentamentos

A Educação Escolar Indígena, regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394/1996 e garantida pela Constituição Federal, deve ser diferenciada, específica e bilíngue. Mas, no território Andirá-Marau, está fragilizada, esquecida pelo Estado e, portanto, com problemas acumulados.

"Não há valorização da educação, o projeto Pirayawara de formação dos professores parou há anos e não foi colocado outro no lugar; os encontros de professores são à noite e na cidade, inviabiliza a participação; as turmas são lotadas; há escassez de materiais básicos, como cadernos e livros, muitos são comprados pela comunidade; creches e outras melhorias foram prometidas mas a Secretaria de Educação não cumpriu; merendas são insuficientes e às vezes a comunidade precisa comprar; escolas precisam de reformas e muitas do ensino modular (6o ao 9o ano) não recebem mais diesel para transportar os alunos", descrevem as lideranças no relatório do evento.

Em relação à saúde também há descasos. "Nos quatro polos de saúde da região faltam condições para os profissionais trabalharem. Tem enfermeiro, técnico, médico, mas não tem material e medicamentos para atendimento adequado, tanto nos polos quanto na Casai (Casa de Saúde Indígena), se o paciente precisa de tratamento na cidade, os custos da viagem ficam por sua conta; antigamente tinha Agentes Indígenas de Saúde (AIS) nos territórios, agora não tem mais. Apenas um dos polos recebe soro antiofídico. Não há dentistas", relatam.

Em relação à água, bem comum que deveria estar disponibilizado com facilidade, a realidade também é desanimadora. "Apenas algumas comunidades têm poços artesianos, a maioria não tem. Em outras, a instalação dos poços não está concluída. E as que têm precisam de manutenção. Nessas condições, é comum recorrermos às águas do rio", explicam as lideranças, esclarecendo que esse consumo é a origem de determinadas doenças como a diarreia, e acrescentam que "na estiagem sofremos mais".

Para a juventude, as lideranças também apontam necessidades. A região da TI Andirá-Marau é afetada por invasões de madeireiros que atuam em localidades próximas. Há denúncias de garimpo ilegal no alto rio Urupadi, inclusive sendo atribuído a ele o surto de malária ocorrido em 2023. Tais atividades, assim como o tráfico de drogas e o alcoolismo, foram apontados como atração aos jovens, o que coloca em risco suas vidas e das comunidades.

"Nossa terra está esquecida há 35 anos, desde a demarcação. A Funai nunca deu atenção, nunca colocou os pontos de vigilância, mesmo a gente apontando que eram necessários"

A segurança foi um dos pontos mais debatidos. O território encontra-se suscetível a invasões de toda ordem. Uma das lideranças relatoras lembrou de cenários aterradores que viveram.

"Nossa terra está esquecida há 35 anos, desde a demarcação. A Funai nunca deu atenção, nunca colocou os pontos de vigilância, mesmo a gente apontando que eram necessários. Os regatões moravam lá dentro, vendiam droga, cachaça e ninguém dizia nada, a vida nas comunidades estava descontrolada. Não podíamos mais fazer nossos rituais, danças, assembleias, eventos. Cada vez que tentávamos realizar futebol, Ritual da Tucandeira ou até eventos religiosos, aparecia violência, até mesmo assassinato. Nossos irmãos se matando e ninguém dava atenção", relatou a liderança.

Com a pandemia de Covid 19, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) instalou uma Barreira de Vigilância Sanitária no território para conter o avanço da doença. Lideranças ajudaram no monitoramento e, então, foi possível conhecer a gravidade do problema.

"Durante a pandemia vimos várias irregularidades, pessoas levando cachaça e drogas em grande quantidade para o território", relatou a liderança, contando que o impacto foi grande, mas a eficiência do controle também. "Não houve mais conflitos nas comunidades e todos passaram a viver com mais tranquilidade e até voltaram a promover seus eventos e rituais", recordou.

Com o fim da pandemia e a saída do órgão, as comunidades decidiram continuar com o monitoramento e controle de entrada de pessoas na TI. Na ausência do Estado, resolveram proteger o território com as possibilidades e a estrutura que tinham. Desde então, uma equipe de mais de 30 indigenas monitoram a entrada de pessoas e embarcações no território e enfrentam muitas adversidades.

"Começamos a trabalhar, monitorar, fiscalizar e enfrentar uma série de ameaças, porque quem queria entrar não queria ser barrado, queria continuar com seus negócios. Organizamos equipes de segurança e muitas pessoas se disponibilizaram para trabalhar, todos pintados de jenipapo, com flecha, ficavam nas beiradas. Não deixamos mais os regatões entrarem em nosso território, resistimos noite e dia, tomávamos sapó (bebida à base de guaraná) para ficar acordados. Dividíamos os grupos para revezamento", lembrou a liderança, contando que com união, apoio das comunidades e esforços dos tuxauas, os resultados chegam.

"Muitos Tuxauas falam que tem diminuído a incidência de violência com a atuação da Base de Vigilância, até mesmo as comunidades mais distantes estão informando que estão se sentindo mais seguras, mais tranquilas e conseguem fazer suas atividades. Lutamos contra tráfico, garimpo, madeireiros... O monitoramento precisa continuar permanente", rogou, explicando que, atualmente, há fragilidades.

"Várias pessoas vieram ajudar na vigilância e fiscalização. Mas, depois, quando já estava mais tranquilo, seguranças e lideranças começaram a relaxar. E, agora, [o problema] está retornando de novo. Porque quem tenta injetar droga e bebida lá para dentro, eles estudam, criam estratégias de como enganar a vigilância"

A Barreira precisa continuar

Em Carta Pública, produzida ao final dos dois dias de relatos e debates, o povo Sateré Mawé da TI Andirá-Marau, apoiado pelas organizações integrantes da Caravana de Direitos Humanos, sistematizou os relatos e reivindicações.

"Cobramos os devidos direitos para que sejam aplicados em nosso território em caráter de urgência, não é justo as violências e o isolamento que nos é imposto quando se trata de políticas públicas", afirmam, e apelam ao Estado para que cumpra com seu dever de proteção do território e assistência ao povo. As soluções estão elencadas no documento e são possíveis de serem realizadas.

Em relação à Barreira, que funciona há cinco anos, reivindicam o reconhecimento legal por parte dos órgãos de segurança e Funai, e treinamentos para os vigilantes voluntários. Outra liderança que está à frente da Base contou que, no início, "várias pessoas vieram ajudar na vigilância e fiscalização. Mas, depois, quando já estava mais tranquilo, seguranças e lideranças começaram a relaxar. E, agora, [o problema] está retornando de novo. Porque quem tenta injetar droga e bebida lá para dentro, eles estudam, criam estratégias de como enganar a vigilância. Eles vão de rabeta (pequena canoa com motor), de voadeira (lancha), enfrentam a noite, enfrentam chuva e tempestade para não serem abordados", explica.

"Trabalhávamos com abordagem durante a noite. Mas, nesse trabalho, quase perderam a vida. Porque essas pessoas estavam armadas de espingarda, flecha e terçado (facão), até pedaço de pau e zagaia eles traziam. Então, deixamos de fazer abordagem a noite, na escuridão", contou desanimada.

"Agora, à noite, param o motor da rabeta e seguem remando para ninguém perceber. E os comerciantes não indígenas trazem frango e peixe, e trazem também bebidas alcoólicas e drogas para nossos jovens", lamentou.

Diante do avanço das ameaças e da fragilização das equipes que sustentam a Barreira, a reivindicação é de "reconhecimento e institucionalização da Base de Monitoramento, garantindo a segurança legal de nossa atividade, formação para os seguranças, aquisição de equipamentos adequados para a vigilância e a presença do estado na fiscalização, através da Funai e demais órgãos competentes", finaliza a carta.

Rede de apoio

As organziações integrantes da Caravana de Direitos Humanos no território Andirá-Marau viram, ouviram e sentiram as angústias e clamores das lideranças. Entendem, agora com propriedade, os desafios e percalços a enfrentar no apoio em defesa dos povos indígenas e seus territórios. O caminho possível é o fortalecimento e articulação das lideranças, comunidades e da rede de organizações e, assim, promover incidências reais.

Estiveram presentes na Caravana o Cimi Regional Norte1, a Diocese de Parintins, o Fórum das Águas do Amazonas, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB AM), a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), o Serviço Amazônico de Ação, a Reflexão e Educação Socioambiental (SARES), a Sociedade Maranhense dos Direitos Humanos (SMDH) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT AM).

Para o padre Oziel Cristo, da Diocese de Parintins, foi fundamental a Caravana chegar no território Sateré Mawé e prestigiar a participação e o documento produzido. "A Carta das lideranças tem o nosso apoio. Vamos difundi-la para que chegue aos governantes, chegue aos ouvidos das autoridades os problemas que os Sateré enfrentam, e possam, de fato, fazer alguma coisa a seu favor", investiu.

A Controladoria-Geral da União no estado do Amazonas (CGU-AM) também acompanhou a Caravana e pode ouvir as denúncias. Em seu papel de órgão do governo federal responsável por avaliar políticas públicas no âmbito da União e também por apurar irregularidades relacionadas à execução de políticas públicas federais, sua presença deu esperanças às lideranças.

A auditora da CGU, Isabelle Rodrigues, congratulou a oportunidade e disse que são muitas demandas e reivindicações, mas que vai considerar todas elas e buscar caminhos junto aos ministérios.

"Foram transmitidas inúmeras preocupações, relatados inúmeros problemas que as comunidades vêm vivendo e o papel da CGU é de tentar ser esse canal entre os indígenas e os ministérios. Ainda há muito distanciamento entre quem pode fazer alguma coisa e quem está sofrendo com a ausência da política pública. Então, a gente espera conseguir articular melhor com quem pode, de fato, resolver os problemas. Já iniciamos algumas rodadas de reunião com a coordenação de Brasília, para verificar quais as providências que podem ser tomadas e o que de fato a gente consegue resolver", afirmou.

Já para Jussara Góes, é hora do Estado brasileiro mudar sua postura e fazer seu trabalho de proteger os povos e suas culturas.

"Enquanto os povos tentam de todas as formas proteger sua terra contra as diversas invasões, no Congresso Nacional vimos o aumento das ameaças à vida dos indígenas através da elaboração de projetos de lei, como o PL 2159/2021, o PL da devastação, e dos projetos que levaram à promulgação da Lei 14.701, que ataca os povos indígenas por todos os lados. É importante que se pare o avanço de leis como essas e que o Estado brasileiro comece a tomar medidas para proteger as TIs e os povos indígenas", finalizou.

https://cimi.org.br/2025/08/caravana-direitos-humanos-satere-mawe/
 

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