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Projeto de minério atiça disputa entre fazendeiros e indígenas e avança por assentamento que não funciona

24/08/2025

Fonte: FSP - https://arte.folha.uol.com.br/ambiente/2025/grandes-obras-na-amazonia/o-potassio/projeto-de-mi



Projeto de minério atiça disputa entre fazendeiros e indígenas e avança por assentamento que não funciona
Em meio a discussão geopolítica em torno de fertilizantes, empresa tenta explorar potássio em área dos muras; famílias ficaram sem roças, e vila se expande à espera de porto

24.ago.2025 às 23h00
Vinicius Sassine
Lalo de Almeida

AUTAZES (AM) A exploração de potássio na amazônia, com a instalação de minas em um território indígena e de um porto na margem do imponente e caudaloso rio Madeira, ainda é um projeto, que depende de captação de recursos e investidores para a concretização do que já é permitido por licenças ambientais do Governo do Amazonas.

Mas, após 16 anos de pressão, ofensivas e tentativas de cooptação do povo mura, o empreendimento produziu transformações radicais numa região complexa, formada por rios, lagos, floresta, terras indígenas, vilas, assentamento rural e fazendas de búfalos e gado leiteiro.

A presença e atuação da Potássio do Brasil -pertencente à empresa canadense Forbes & Manhattan e a outros investidores internacionais e brasileiros- na região de Autazes, no leste do Amazonas, provocou mudanças profundas no lugar, mesmo sem ter extraído, até agora, um grama do minério que é a base de fertilizantes usados na agricultura em larga escala.

O potássio dividiu os muras, uma etnia numerosa nessa parte da amazônia brasileira, com populações vivendo em territórios demarcados, em terras indígenas à espera de regularização, em vilas e nas cidades.

O projeto ativou ainda o espírito conflitivo de fazendeiros na região, que tentam encurralar territórios muras e impedir novas demarcações.

Existe um alinhamento velado de criadores de búfalo ao empreendimento de exploração mineral: ambos conseguem avanços se terras indígenas da região permanecerem no limbo, sem a proteção oficial conferida pela delimitação dos territórios.
O projeto é tão divisivo, e provoca tanto impacto mesmo sem existir na prática, que faz com que indígenas que vivem na vila onde funcionaria o porto sejam contrários à inclusão da área no processo de demarcação em curso na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

Ruas, casas e sobrados se expandiram na vila, onde as pessoas nutrem expectativa pelo empreendimento de potássio.

O empreendimento alterou o modo de vida tradicional, com o fim das roças, entre muras que venderam seus terrenos à Potássio do Brasil. E acirrou tensões entre indígenas e não indígenas, ao ponto de ser mencionada a existência de uma associação de mestiços -mais um artifício para barrar demarcações.

A Folha esteve no Lago Soares, o território dos muras onde a Potássio do Brasil prospecta minas -a planta industrial estaria a uma distância de 1,5 km a 5,5 km em linha reta, segundo os documentos do licenciamento ambiental.

A reportagem também esteve na Vila de Uricurituba, na margem do rio Madeira. É o lugar onde o empreendimento planeja construir o porto para a movimentação dos comboios de balsas a serem carregados com potássio.

O processo na Funai analisa a possibilidade de demarcação dos dois espaços, que são próximos.

Se a demarcação sair, o projeto de potássio corre o risco de naufragar. É por isso que integrantes da Potássio do Brasil agem para angariar apoios de grupos muras que estão distantes do Lago Soares. E isso ocorreu, com divisões de associações representativas dos indígenas, a favor e contra. Quem é contra é quem é diretamente impactado pelo empreendimento.

A empresa também buscou assegurar a posse de nacos de terra, inclusive de um assentamento que não funciona, e se mobilizou para garantir posições contrárias à demarcação.

Os movimentos para garantir a exploração de potássio na amazônia, o que diminuiria a dependência quase completa do agronegócio brasileiro à importação de fertilizantes, ganharam um componente geopolítico inesperado.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ameaçou punir países que compram produtos da Rússia, país em guerra com a Ucrânia. É mais um uso político da ofensiva tarifária do norte-americano, que taxou produtos brasileiros em 50% no começo de agosto. O Brasil importa fertilizantes da Rússia, na ordem de 30% do que consome, e o agronegócio teme novas sanções.

Cenários incertos como os provocados por Trump podem ampliar a pressão por produção de potássio na amazônia.

Lideranças muras contam que, logo no começo das ofensivas do projeto, em 2009, já houve tentativa de transferência de famílias do Lago Soares para um terreno comprado na vizinhança. Os indígenas se negaram a aceitar -os muras ocupam esse espaço há mais de cem anos, conforme atestado em documentos analisados no licenciamento e no processo na Funai.

Esse tipo de oferta prosseguiu. Em setembro de 2023, o então presidente da Potássio do Brasil, Adriano Espeschit, prometeu a muras presentes numa assembleia a compra e entrega de 5.000 hectares de terras em caso de posição favorável ao empreendimento.

A tentativa de cooptação foi gravada e enviada ao MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas, que pediu na Justiça, em maio de 2024, a suspensão das licenças. Esse pedido foi reforçado em nova petição, no fim de julho deste ano.

Espeschit era o rosto da empresa na região de Autazes, nas tratativas com o Governo do Amazonas em Manaus -a gestão do governador Wilson Lima (União Brasil) apoia o projeto de forma incondicional- e na interface com o governo federal -os governos de Jair Bolsonaro (PL) e de Lula (PT) se posicionaram em defesa do empreendimento.

Em um comunicado divulgado em 5 de junho, a Potássio do Brasil afirmou que Espeschit renunciou ao cargo de presidente da empresa.

Dias depois, ele foi anunciado como presidente da Belo Sun, empresa que quer explorar ouro em uma região amazônica sensível no Pará, mais especificamente a Volta Grande do Rio Xingu. A Belo Sun foi criada pela mesma investidora da Potássio do Brasil, a canadense Forbes & Manhattan.

A Potássio do Brasil disse, em nota, que não se pronuncia sobre "denúncias, relatos, conflitos e acusações" fora dos autos de processos em tramitação na Justiça. "As obras seguem seu cronograma, cumprindo os passos estabelecidos na licença de instalação e suas condicionantes."

Já houve monitoramento arqueológico, resgate de fauna e supressão de vegetação, para prosseguimento às obras e construção de sistema de energia, afirmou a empresa. "Todo esse conjunto de obras, bem como o porto, estão no entorno da região da Vila de Uricurituba, e não na região de Lago Soares."

A comunidade de Lago Soares, que é onde o projeto se desenvolve de fato, é considerada contrária ao empreendimento.

No Soares, os muras detalham como a empresa conseguiu comprar terras. Uma parte das famílias se diz arrependida das negociações. E outra parte resiste a entregar qualquer hectare para a companhia.

O homem mais velho da comunidade, Jair dos Santos Ezague, 85, diz que não queria ter vendido o terreno à Potássio do Brasil. "Insistiram, insistiram, e eu vendi", diz ele, que vive no Lago Soares com a mulher, Maria Nascimento Ezague, 82.

Jair foi uma das primeiras lideranças dos muras de Soares. Dez anos atrás, plantava banana, mandioca, cará, batata e feijão. Hoje, a farinha de mandioca que consome em casa é comprada fora. "Eles foram entrando, os índios foram saindo."

Durante as negociações, Jair diz que houve o seguinte diálogo com um representante da empresa de potássio:

"Se o senhor não vender, vai perder essa área."

"Mas por quê?"

"Porque não vai prestar para mandioca, banana, capim. Vamos tirar o sal e isso polui a terra."


Era uma referência aos rejeitos -formados basicamente por sal, salmoura (uma solução de água e sal) e argila- que devem ser gerados na exploração do potássio. Estão previstos 78 milhões de m3 de rejeitos e a formação de duas pilhas de resíduos, com 25 metros cada uma.

O casal diz ter aguardado o cumprimento de decisões judiciais favoráveis para devolução do terreno onde plantava, mas isso ainda não ocorreu, segundo eles. "O terreno que eu vendi é de terra firme. Tem muita castanha e cupuaçu, fica perto daqui", diz Jair.

Paulo César de Oliveira, 53, também parou de plantar, desde a venda do terreno à Potássio do Brasil. Segundo ele, o interlocutor da empresa afirmou que a Justiça poderia desapropriar a área a favor do empreendimento.

Paulo César de Oliveira e a família no interior de sua casa flutuante no Lago Soares
Paulo César de Oliveira no interior de sua casa flutuante no Lago Soares, com a família, a curta distância do ponto central da comunidade - Lalo de Almeida/Folhapress

A companhia já fez perfurações para prospecção de minério no terreno, segundo Paulo César. "Eles falaram que, num raio de 5 km, não fica ninguém."

Nos espaços cercados por água, parte das famílias resiste à ofensiva do empreendimento de potássio. Milton de Menezes, 50, cria gado, bode e porco. Planta cupuaçu, abacaxi, goiaba, café e laranja. A área dele fica a 3 km do miolo de Lago Soares. E não será vendida à Potássio do Brasil, afirma, apesar da pressão feita pela empresa.

"É uma insistência. Querem se desfazer de nós na marra", diz Milton, que vive na comunidade com a mulher e dois filhos. "Aqui a água não para de escorrer, é uma nascente. Eu não vou sair. Até têm outros terrenos, mas não tem água. O que eles querem furar fica a 1,5 km daqui."

O agricultor diz que a empresa chegou a fazer perfurações sem sua autorização, em 2018, num momento em que a família estava fora do Soares por causa do período seco.

Vista aérea da casa flutuante de Milton de Menezes, em Lago Soares
Casa flutuante de Milton de Menezes, que diz que terreno foi perfurado pela Potássio do Brasil - Lalo de Almeida/Folhapress

A pequena placa instalada no solo, indicando a ação da companhia e a tentativa de prospecção de um poço, fica a 300 m da casa de Milton. "Como esse, tem um ali, outro ali. Têm mais de cinco aqui perto."

A empresa de potássio queria que Milton autorizasse a visitação ao poço em troca de sacos de semente, segundo ele.

De lado a lado da estrada que conecta Soares à Vila de Uricurituba, lugar previsto para o porto, deveria existir um assentamento rural, com atuação do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Mas o assentamento nunca funcionou direito, segundo os moradores de Soares. E já não há uma ocupação nem casas no lugar. A placa que existia foi arrancada há mais de 20 anos.
Beneficiários de lotes de assentamentos venderam as áreas para a Potássio do Brasil. Segundo documentos do licenciamento ambiental, parte dos terrenos adquiridos ainda depende de regularização junto ao Incra. O órgão federal diz que há sobreposição de áreas de uma estrada com o perímetro de um título expedido pelo Governo do Amazonas há mais de cem anos.

Em Uricurituba, até abril, quase não existia movimentação da Potássio do Brasil, que montou uma estrutura num terreno bem próximo de onde deve ser construído o porto. A vila cresceu, com mercados, hotel e construção de casas. A maior parte das pessoas não é indígena.

O convívio entre indígenas e não indígenas passou a ser marcado por desconfiança.

"Dão mais prioridade para os indígenas do que para os brancos", diz Gideone Coelho, 35, um morador da vila. Essa animosidade é explorada por fazendeiros da região, que organizam encontros a favor do potássio e contra a demarcação de Soares e Uricurituba. Moradores da vila aderem a esses encontros.

Todos querem empregos, que ofereçam rendas contínuas, num lugar onde as mulheres buscam a "beirada" do rio Madeira para vender queijo e pé-de-moleque (esse pé-de-moleque amazônico é feito de mandioca) aos passageiros das embarcações rústicas de transporte -com até três pavimentos de madeira- que fazem paradas regulares no portinho da vila.

"Dá para tirar o pão de amanhã", diz Sílvia Ribeiro, 34, que mora em Uricurituba há 12 anos. Ela passa de barco em barco vendendo queijo. E afirma que vai pagar para fazer um curso de almoxarifado, para tentar um emprego no empreendimento de potássio.

Em Uricurituba, nas terras indígenas vizinhas a Lago Soares e em Autazes há um apoio expressivo ao projeto. Ao ponto de lideranças indígenas contrárias, a favor da demarcação, relatarem ameaças na cidade.

O cacique de Lago Soares, Filipe Gabriel da Silva e Silva, 27, diz ter interrompido a graduação de Pedagogia em Autazes em razão de ameaças sofridas. "A gente espera que o relatório de identificação [etapa necessária para a demarcação] saia, até o fim do ano, para frear o empreendimento."

Soares decidiu ficar fora do CIM (Conselho Indígena Mura), que passou a ser majoritariamente a favor da exploração do potássio. São cinco aldeias contrárias -entre elas Soares, que é diretamente impactada- e 35 a favor, segundo o CIM. Por isso foi criada, em janeiro de 2025, a Oirma (Organização Indígena da Resistência Mura de Autazes), para se contrapor ao CIM.

No CIM, as lideranças negam cooptação. "Fui tachado como alguém que se vendeu por R$ 5.000. Dizem essas coisas para desmoralizar. A divisão chegou num nível de ameaças físicas", afirma Everton Monteiro, 44, coordenador de articulação do CIM.

"Em nenhum momento fomos chamados a receber vantagem desse empreendimento de potássio", diz Everton. "Se for para demarcar a terra, e depois ficar na mão de um fazendeiro, é melhor que não demarque."

A Potássio do Brasil afirma que o empreendimento vai fornecer fertilizantes sustentáveis a um dos maiores exportadores agrícolas do mundo, o Brasil. "O país importou mais de 95% de seu fertilizante potássico em 2021, apesar de ter o que se prevê ser uma das maiores bacias de potássio não desenvolvidas do mundo em seu próprio território."

Ainda segundo a empresa, o potássio será transportado em barcaças fluviais de baixo custo, em parceria com a Amaggi, gigante brasileira do agronegócio. O empreendimento diz ser possível suprir 20% da demanda atual de potássio no país.

Tubulação em perfuração feita pela Potássio do Brasil em terreno na comunidade Lago Soares
Perfuração feita pela Potássio do Brasil em terreno na comunidade mura Lago Soares - Lalo de Almeida/Folhapress

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