De Povos Indígenas no Brasil
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Jerá Guarani: "Você não tem que ter uma casa enorme. Sua casa também é o mato, o quintal"
21/09/2025
Autor: Jerá Guarani; Leonardo Neiva
Fonte: Gama Revista - https://gamarevista.uol.com.br/semana/ta-precisando-pisar-na-grama/jera-guarani-voce/
Jerá Guarani: "Você não tem que ter uma casa enorme. Sua casa também é o mato, o quintal"
Leonardo Neiva 21 de Setembro de 2025
Curadora da Bienal de Arquitetura de SP, líder e educadora indígena propõe a perspectiva dos povos tradicionais como forma de aproximar cidade e floresta
Hoje, é praticamente impossível falar de preservação ambiental no Brasil sem citar na mesma frase os esforços contínuos dos povos indígenas. Uma análise do Instituto Socioambiental (ISA) mostra que as comunidades tradicionais são diretamente responsáveis pela proteção de nada menos que um terço das florestas do país. Essa forte conexão entre cultura indígena e natureza a educadora Jerá Guarani, liderança da aldeia Tekoa Kalipety, no extremo sul de São Paulo, sabe por experiência própria praticamente desde que veio ao mundo.
MAIS SOBRE O ASSUNTO
Jerá Guarani: "Tem Guarani muito seguro de que tem que viver todos os dias como se fosse o último, com um agradecimento"
Memórias do Cacique
Pela memória da cultura indígena
Ela viveu até os dez anos de idade em sua aldeia na Terra Indígena Tenondé Porã, onde não havia energia elétrica e o contato com os juruás - pessoas não indígenas, em Guarani - era raro. Tanto que só aprendeu a falar português quando foi mandada pela mãe para estudar numa escola fora da aldeia.
Depois de se formar pedagoga pela USP e lecionar por 17 anos numa escola da comunidade onde nasceu, ela se tornou uma importante liderança na região, promovendo um projeto de recuperação das áreas degradadas e resgate dos alimentos Guaranis que se perderam no contato com os homens brancos. À frente da Tekoa Kalipety, influenciou também a formação de lideranças femininas. Hoje, são 12 novas aldeias, das quais cinco são encabeçadas por mulheres.
Integrante da curadoria da 14ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, que vai até 19 de outubro no Parque do Ibirapuera, Jerá vem incentivando a sociedade a adotar de forma mais ampla as perspectivas indígenas sobre o contato e a relação com a natureza. "Os arquitetos têm nas mãos a responsabilidade de pensar uma arquitetura mais ambiental, preservando os recursos naturais e evitando o uso excessivo, já que nada neste planeta é infinito", afirma em entrevista a Gama.
O pensamento vai de encontro a um dos maiores desafios do urbanismo contemporâneo, que precisa repensar as cidades de acordo com as mudanças climáticas, mas de uma forma que não torne a sociedade ainda mais alheia ao meio ambiente. Esse impasse está no centro da atual Bienal, cujo tema são os extremos: do clima, sim, mas também as extremidades sociais e geográficas que, da mesma maneira que a separação entre cidade e floresta, se refletem na arquitetura e em como as regiões urbanas se organizam.
"As culturas indígenas e a Guarani entram para mostrar que sua casinha pode ser sim um espaço vivo e aconchegante na humildade, na simplicidade", diz Jerá, que também busca combater a lógica capitalista do acúmulo. Na comunidade onde vive, ela incentiva a retomada da cultura, da alimentação Guarani e da reconexão com a ancestralidade entre os moradores, reduzindo ao mínimo necessário o contato com o que vem dos juruás. "Nessa cultura tem escola, tem internet, um monte de coisa que vem do mundo de fora, mas também pessoas que não falam português. Ninguém aqui quer ir para a cidade."
No papo com Gama, Jerá aborda ainda a importância central do contato com o meio ambiente já na infância, fala daquilo que aproxima e separa a cidade da floresta e traça propostas para repensar nossa lógica de vida a partir dos saberes indígenas.
G |Como viver a infância numa comunidade indígena moldou sua conexão com a natureza?
Jerá Guarani |
Acho que o lugar onde você nasce, cresce e tem suas primeiras experiências de formação é o que te faz valorizar, gostar ou respeitar o que você tem. No meu caso, enquanto indígena que nasceu numa aldeia onde até os meus dez anos não tinha energia elétrica. Ainda era a cultura da aldeia, todo mundo falando a língua e em conexão total com a vida, coexistindo de forma concreta com a natureza. Isso traz o amor pela natureza, além do respeito, de pensar e lidar com ela de forma ética. A natureza te dá remédio, comida, moradia. E, na minha infância, dava muita alegria, porque a gente tinha um grande espaço para brincar, subir em árvore, ver quem ia mais longe no galho. Era uma total euforia no meio de outras crianças. Então toda a minha vida hoje, a minha formação, meu sentimento, meu respeito, e principalmente o desejo de lutar e falar sobre a preservação da natureza, trabalhar pelo reflorestamento e a revitalização de áreas degradadas... todo esse amor, essa intenção, essa vontade vem de ter nascido na aldeia, com mato, bicho e as pessoas ali todas vivendo dessa forma.
G |Cada vez mais gente nasce e cresce na cidade, com pouquíssimo contato com o meio ambiente. Essa desconexão ajuda a explicar o avanço da degradação da natureza?
JG |
Totalmente. Aqui na aldeia Kalipety, a gente tem bastante visita de escolas, famílias, amigos que vêm com os filhos, e já nos deparamos muitas vezes com crianças que têm medo de botar o pé no matinho. Algumas pessoas, infelizmente, sentem que a terra é suja e vai fazer mal. Então, a desconexão mais aguda que eu sinto é quando me deparo com isso. E tem escalas diferentes. Às vezes vêm visitas do Centrão [de São Paulo], em sua grande maioria com uma condição melhor, e muitos desse grupo nem topam tirar o sapato. E a gente recebe escola pública em que é comum crianças que não podem ficar com a roupa cheia de terra e não querem brincar na lama.
G |Você vive e trabalha no extremo sul de São Paulo, no limite com o ambiente urbano. Mesmo tão próximas, as duas regiões vivem realidades muito diferentes?
JG |
Estamos nesse espaço de dois extremos. O coração da capital de São Paulo tão perto, essa máquina que não para de girar, uma cidade que se perde de vista quando se sobrevoa de avião. De repente, no meio de tudo isso, você tem terras indígenas que estão no mato, no verde. Nessa cultura tem escola, tem internet, um monte de coisa que vem do mundo de fora, mas também pessoas que não falam português. Ninguém aqui quer ir para a cidade. O fluxo não está nessa corrente de estudar, se formar, arrumar emprego, entrar no mercado de trabalho, nada disso.
G |Na sua experiência, quais diferenças encontrou entre a educação indígena e não indígena?
JG |
Sim, dei aula por 17 anos na aldeia em que nasci, a Tenondé Porã. Estou há 12 na Kalipety, que é uma das 17 aldeias no território. Durante o meu trabalho de docente, principalmente na formação na USP, a gente teve muito contato com professores não indígenas que tiveram atuações anteriores com povos e culturas indígenas. Isso mostrou o quanto era importante os professores se tornarem pesquisadores contínuos sobre a cultura, já que a cultura indígena não tem uma determinação de tempo para você aprender tal coisa. Você vai aprendendo bastante, mas a gente não calcula: vamos fazer um curso por quatro anos de cestaria e está ok. É um aprendizado contínuo, diário, de experiência e participação. Acredito que o curso trouxe como potencial essa busca.
G |Falta valorizar o contato com a natureza na educação? Como educadora, chegou a promover iniciativas nesse sentido?
JG |
Já que a gente está em 26 hectares, grande parte do nosso conhecimento é alimentada na oralidade, que vai ficando registrada na memória, mas não na prática. Então, na escola, a gente desenvolveu muitos projetos de ir para outras aldeias que tinham cachoeira, mato, plantio, animais. E eu sempre trabalhei bastante esse valor, mesmo na oralidade. Infelizmente, também em muitos momentos falei da tristeza, da lamentação. Quando você não tem mais mato, o que te falta? Lembro que as crianças ficavam muito comovidas quando pensavam nisso e a gente fazia caminhadas para além da sala. Todo mundo ficava acarinhando muito os bichinhos que a gente via na aldeia: as lagartas, os besouros. Era nesse sentido: a gente tem muito pouquinho, tem que cuidar bem desses.
G |Você lidera na aldeia o trabalho de recuperação dos alimentos Guarani. O que a perda do contato com a própria alimentação e agora esse resgate significam para vocês?
JG |
A perda da comida Guarani tradicional significa ter doenças físicas de vários tipos, como pressão alta, hipertensão e diabetes. Essa comida que vem de fora, ultraprocessada, traz ansiedade, depressão e desânimo, porque não é um alimento suficiente como o nosso. A nossa comida fortalece o corpo físico e todos os outros aparatos humanos que você precisa ter para estar feliz, animado, acordar e estar pronto. Porque a comida Guarani é cantada, é rezada antes de ir para a terra. Se você está triste, não tem ânimo, seu corpo fica vulnerável a várias outras coisas. Eu consegui sair da roça com muito custo para fazer esta entrevista. Mas juro, eu não queria, estava muito gostoso. Um monte de mandioca, de semente... queria ficar lá. E essa comida, além de fortalecer a cultura Guarani na sua concepção de conhecimento, é tradicional no sentido de te fazer forte espiritualmente, com uma saúde mental para valorizar sua própria cultura. E agora a gente está num momento cheio de criancinhas que nasceram. Os espíritos das crianças ficam muito felizes e mais fortes na aldeia, principalmente com o milho. Quando vou para a roça, mentalizo tudo isso.
G |Como acontece esse processo de resgate?
JG |
A gente começa a buscar a comida Guarani de novo em outros estados e até em outro país, que hoje é o Paraguai. Compartilhamos com as outras 16 aldeias, com outras que nos deram lá no passado e também com amigos não indígenas. Mas não para vender, é para plantar, comer e ficar mais forte. A gente precisa comer milho, mandioca, feijão, batata doce para ficar mais firme nessa pegada da valorização da cultura. Isso está absolutamente relacionado com a natureza, com coexistir, com conexão, com respeitar, não querer queimar, derrubar nem fazer monocultura. Se a gente ficar comendo só comida ultraprocessada, que vem com energias muito ruins, ou tomando Coca-Cola, pode ficar vulnerável a ponto de querer virar microempreendedor e plantar mudinhas ornamentais.
G |E de que forma a região mudou nesses 12 anos de trabalho?
JG |
As pessoas conversam, plantam, se alegram bastante. Fazem reflexões mais profundas sobre a importância de repensar algumas coisas que a gente aprendeu, como o que comer. No Kalipety tem uma lei marcial: ninguém pode fazer aniversário nesse ritmo dos juruás [termo Guarani para pessoas não indígenas]. Bolo, refrigerante, essa papagaiada de super-heróis e princesas. A gente tem que agradecer pela vida todos os dias, ensinar seus filhos a agradecer. Se acordei de novo, vou ter oportunidade de ter mais um dia de vida. Então, a gente tem essas regras. Para quem vem de visita e traz comida para compartilhar, a gente sempre fala: não traz doce, salgadinho nem refrigerante. E a galera está muito mais saudável. Bastante gente veio para cá obesa, mas agora está tudo bem.
G |Os extremos são o tema da Bienal de Arquitetura, da qual você é curadora. É possível, além do clima, pensar um urbanismo que ajude a juntar culturas e não mantenha a cidade tão distante da natureza?
JG |
Os arquitetos têm nas mãos a responsabilidade de pensar uma arquitetura mais ambiental, preservando os recursos naturais e evitando o uso excessivo, já que nada neste planeta é infinito. Ter ar-condicionado nas empresas, em shoppings não resolve. Isso fere o funcionamento normal da natureza. A cultura não indígena tem essa dificuldade de pensar e fazer diferente. Fica só na coisa de trabalhar para não sentir mais o que está ruim. E isso só quem pode, claro. Então, as culturas indígenas e a Guarani entram para mostrar que sua casinha pode ser sim um espaço vivo e aconchegante na humildade, na simplicidade. Mas é muito complicado, porque até a gente Guarani está afetada com isso. Vários outros povos com mais tempo de contato direto [com os juruás] acabam seguindo esse fluxo. Precisam de uma casa para caber geladeira, fogão, mesa, cadeira, armário, o diabo a quatro. Vai se tornando acúmulo.
G |Como seria então esse modelo de arquitetura e moradia?
JG |
Resolvendo o detalhe muito significativo do acúmulo. Roupa, coisas de cozinha, tudo tem que ter um montão. Cada jogo para um tipo diferente de jantar. Pelo amor de Nhanderu [o deus criador para os Guaranis]. Um projeto de arquitetura pensando a crise climática mundial tinha que resolver primeiro esse problema. Na cultura juruá, já se tem fome, miséria, guerra, coisas muito absurdas. Daí, quando fazem a arquitetura, muitos já pensam o que vai ter dentro. Depois, vem a outra parte: a decoração. O planeta produz tanto plástico que consegue poluir até o mar, o que é absurdo. A galera ainda quer cama de madeira. E não é qualquer madeira, são madeiras muito demoradas para crescer, madeiras sagradas. As pessoas podiam ter camas só de plástico ou pensar uma arquitetura que fizesse mais uso de tudo que a gente já produziu no planeta, evitando colapsos maiores do que os que a gente já teve e vai ter. Na casinha Guarani, tem que ter só um espaço adequado para fazer sua comidinha e dormir. Você recebe visita no quintal, numa sombra, no pé da árvore. Então você não tem que ter uma casa enorme. Sua casa também é o mato, o quintal, todos os espaços. Essa é uma das coisas que eu gostaria que o juruá observasse.
G |Acha possível então que as duas culturas conversem sem intensificar o processo de apagamento das culturas indígenas?
JG |
Sim, acho que tudo é possível, porque os povos têm seus saberes, sua formação, sua experiência. E neste momento seria primordial todo mundo sentar e se unir, pensar formas de evitar um mundo em que não vai ter mais nada para ninguém. Claro que eu não coloco nunca meu povo como superior, mas a gente tem dados muito concretos. Quem consegue viver no mato? Quem consegue viver de forma feliz na humildade e simplicidade? A maioria são os povos indígenas, as comunidades quilombolas e o pessoal que está no campo. Mas é muito comum traduzir essa existência como miserável, atrasada, feia. Muitos jovens querem sair da aldeia para estudar, para não ficar igual aos pais. Então, a gente teria que superar e entender todas essas situações para se unir. Isso já acontece aqui na Kalipety. Para recuperar áreas degradadas e fazer agrofloresta, a gente contou com apoio de fora. A gente não conhece o eucalipto, então como recuperar a terra que secou por causa dele? Precisa do conhecimento, do maquinário e do esforço para fazer o planejamento juntos. E aí, a gente tem essa experiência de se escutar, se respeitar, sem ninguém se colocar na posição de salvar o outro. Assim as coisas podem funcionar super bem.
G |Por que, mesmo com o planeta em risco, ainda parece distante para os juruás assumirem a perspectiva indígena?
JG |
Um dos pontos de reflexão podia ser esse: se a gente perder tudo o que tem hoje - tecnologia, comunicação, energia, esse mundo tecnológico que a gente acha que não consegue mais viver sem -, os povos que vivem na natureza e no mato vão continuar. Uma pessoa que veio visitar a aldeia semana passada começou a cortar pedacinhos de um pé de mandioca, disse que queria levar para plantar. Eu falei: não, vai apodrecer, mandioca a gente planta da maniva [a folha da mandioca]. Muitos juruás não conseguiriam viver, porque foi tirado deles esse conhecimento de plantar e se virar no território. A maioria tem medo de cobra, de aranha. Mas na aldeia não se morre todo dia. Na cidade, tem assalto, assassinato, estupro, espancamento... é tanta coisa ruim. Mil vezes eu no meio do mato com as cobras e as aranhas. Mas dá sim para coexistir. Existe aqui uma sabedoria, um conceito de vida que tem continuação, que é possível. E vale a pena estudar, ouvir e escutar como e por que vivemos assim.
https://gamarevista.uol.com.br/semana/ta-precisando-pisar-na-grama/jera-guarani-voce/
Leonardo Neiva 21 de Setembro de 2025
Curadora da Bienal de Arquitetura de SP, líder e educadora indígena propõe a perspectiva dos povos tradicionais como forma de aproximar cidade e floresta
Hoje, é praticamente impossível falar de preservação ambiental no Brasil sem citar na mesma frase os esforços contínuos dos povos indígenas. Uma análise do Instituto Socioambiental (ISA) mostra que as comunidades tradicionais são diretamente responsáveis pela proteção de nada menos que um terço das florestas do país. Essa forte conexão entre cultura indígena e natureza a educadora Jerá Guarani, liderança da aldeia Tekoa Kalipety, no extremo sul de São Paulo, sabe por experiência própria praticamente desde que veio ao mundo.
MAIS SOBRE O ASSUNTO
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Pela memória da cultura indígena
Ela viveu até os dez anos de idade em sua aldeia na Terra Indígena Tenondé Porã, onde não havia energia elétrica e o contato com os juruás - pessoas não indígenas, em Guarani - era raro. Tanto que só aprendeu a falar português quando foi mandada pela mãe para estudar numa escola fora da aldeia.
Depois de se formar pedagoga pela USP e lecionar por 17 anos numa escola da comunidade onde nasceu, ela se tornou uma importante liderança na região, promovendo um projeto de recuperação das áreas degradadas e resgate dos alimentos Guaranis que se perderam no contato com os homens brancos. À frente da Tekoa Kalipety, influenciou também a formação de lideranças femininas. Hoje, são 12 novas aldeias, das quais cinco são encabeçadas por mulheres.
Integrante da curadoria da 14ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, que vai até 19 de outubro no Parque do Ibirapuera, Jerá vem incentivando a sociedade a adotar de forma mais ampla as perspectivas indígenas sobre o contato e a relação com a natureza. "Os arquitetos têm nas mãos a responsabilidade de pensar uma arquitetura mais ambiental, preservando os recursos naturais e evitando o uso excessivo, já que nada neste planeta é infinito", afirma em entrevista a Gama.
O pensamento vai de encontro a um dos maiores desafios do urbanismo contemporâneo, que precisa repensar as cidades de acordo com as mudanças climáticas, mas de uma forma que não torne a sociedade ainda mais alheia ao meio ambiente. Esse impasse está no centro da atual Bienal, cujo tema são os extremos: do clima, sim, mas também as extremidades sociais e geográficas que, da mesma maneira que a separação entre cidade e floresta, se refletem na arquitetura e em como as regiões urbanas se organizam.
"As culturas indígenas e a Guarani entram para mostrar que sua casinha pode ser sim um espaço vivo e aconchegante na humildade, na simplicidade", diz Jerá, que também busca combater a lógica capitalista do acúmulo. Na comunidade onde vive, ela incentiva a retomada da cultura, da alimentação Guarani e da reconexão com a ancestralidade entre os moradores, reduzindo ao mínimo necessário o contato com o que vem dos juruás. "Nessa cultura tem escola, tem internet, um monte de coisa que vem do mundo de fora, mas também pessoas que não falam português. Ninguém aqui quer ir para a cidade."
No papo com Gama, Jerá aborda ainda a importância central do contato com o meio ambiente já na infância, fala daquilo que aproxima e separa a cidade da floresta e traça propostas para repensar nossa lógica de vida a partir dos saberes indígenas.
G |Como viver a infância numa comunidade indígena moldou sua conexão com a natureza?
Jerá Guarani |
Acho que o lugar onde você nasce, cresce e tem suas primeiras experiências de formação é o que te faz valorizar, gostar ou respeitar o que você tem. No meu caso, enquanto indígena que nasceu numa aldeia onde até os meus dez anos não tinha energia elétrica. Ainda era a cultura da aldeia, todo mundo falando a língua e em conexão total com a vida, coexistindo de forma concreta com a natureza. Isso traz o amor pela natureza, além do respeito, de pensar e lidar com ela de forma ética. A natureza te dá remédio, comida, moradia. E, na minha infância, dava muita alegria, porque a gente tinha um grande espaço para brincar, subir em árvore, ver quem ia mais longe no galho. Era uma total euforia no meio de outras crianças. Então toda a minha vida hoje, a minha formação, meu sentimento, meu respeito, e principalmente o desejo de lutar e falar sobre a preservação da natureza, trabalhar pelo reflorestamento e a revitalização de áreas degradadas... todo esse amor, essa intenção, essa vontade vem de ter nascido na aldeia, com mato, bicho e as pessoas ali todas vivendo dessa forma.
G |Cada vez mais gente nasce e cresce na cidade, com pouquíssimo contato com o meio ambiente. Essa desconexão ajuda a explicar o avanço da degradação da natureza?
JG |
Totalmente. Aqui na aldeia Kalipety, a gente tem bastante visita de escolas, famílias, amigos que vêm com os filhos, e já nos deparamos muitas vezes com crianças que têm medo de botar o pé no matinho. Algumas pessoas, infelizmente, sentem que a terra é suja e vai fazer mal. Então, a desconexão mais aguda que eu sinto é quando me deparo com isso. E tem escalas diferentes. Às vezes vêm visitas do Centrão [de São Paulo], em sua grande maioria com uma condição melhor, e muitos desse grupo nem topam tirar o sapato. E a gente recebe escola pública em que é comum crianças que não podem ficar com a roupa cheia de terra e não querem brincar na lama.
G |Você vive e trabalha no extremo sul de São Paulo, no limite com o ambiente urbano. Mesmo tão próximas, as duas regiões vivem realidades muito diferentes?
JG |
Estamos nesse espaço de dois extremos. O coração da capital de São Paulo tão perto, essa máquina que não para de girar, uma cidade que se perde de vista quando se sobrevoa de avião. De repente, no meio de tudo isso, você tem terras indígenas que estão no mato, no verde. Nessa cultura tem escola, tem internet, um monte de coisa que vem do mundo de fora, mas também pessoas que não falam português. Ninguém aqui quer ir para a cidade. O fluxo não está nessa corrente de estudar, se formar, arrumar emprego, entrar no mercado de trabalho, nada disso.
G |Na sua experiência, quais diferenças encontrou entre a educação indígena e não indígena?
JG |
Sim, dei aula por 17 anos na aldeia em que nasci, a Tenondé Porã. Estou há 12 na Kalipety, que é uma das 17 aldeias no território. Durante o meu trabalho de docente, principalmente na formação na USP, a gente teve muito contato com professores não indígenas que tiveram atuações anteriores com povos e culturas indígenas. Isso mostrou o quanto era importante os professores se tornarem pesquisadores contínuos sobre a cultura, já que a cultura indígena não tem uma determinação de tempo para você aprender tal coisa. Você vai aprendendo bastante, mas a gente não calcula: vamos fazer um curso por quatro anos de cestaria e está ok. É um aprendizado contínuo, diário, de experiência e participação. Acredito que o curso trouxe como potencial essa busca.
G |Falta valorizar o contato com a natureza na educação? Como educadora, chegou a promover iniciativas nesse sentido?
JG |
Já que a gente está em 26 hectares, grande parte do nosso conhecimento é alimentada na oralidade, que vai ficando registrada na memória, mas não na prática. Então, na escola, a gente desenvolveu muitos projetos de ir para outras aldeias que tinham cachoeira, mato, plantio, animais. E eu sempre trabalhei bastante esse valor, mesmo na oralidade. Infelizmente, também em muitos momentos falei da tristeza, da lamentação. Quando você não tem mais mato, o que te falta? Lembro que as crianças ficavam muito comovidas quando pensavam nisso e a gente fazia caminhadas para além da sala. Todo mundo ficava acarinhando muito os bichinhos que a gente via na aldeia: as lagartas, os besouros. Era nesse sentido: a gente tem muito pouquinho, tem que cuidar bem desses.
G |Você lidera na aldeia o trabalho de recuperação dos alimentos Guarani. O que a perda do contato com a própria alimentação e agora esse resgate significam para vocês?
JG |
A perda da comida Guarani tradicional significa ter doenças físicas de vários tipos, como pressão alta, hipertensão e diabetes. Essa comida que vem de fora, ultraprocessada, traz ansiedade, depressão e desânimo, porque não é um alimento suficiente como o nosso. A nossa comida fortalece o corpo físico e todos os outros aparatos humanos que você precisa ter para estar feliz, animado, acordar e estar pronto. Porque a comida Guarani é cantada, é rezada antes de ir para a terra. Se você está triste, não tem ânimo, seu corpo fica vulnerável a várias outras coisas. Eu consegui sair da roça com muito custo para fazer esta entrevista. Mas juro, eu não queria, estava muito gostoso. Um monte de mandioca, de semente... queria ficar lá. E essa comida, além de fortalecer a cultura Guarani na sua concepção de conhecimento, é tradicional no sentido de te fazer forte espiritualmente, com uma saúde mental para valorizar sua própria cultura. E agora a gente está num momento cheio de criancinhas que nasceram. Os espíritos das crianças ficam muito felizes e mais fortes na aldeia, principalmente com o milho. Quando vou para a roça, mentalizo tudo isso.
G |Como acontece esse processo de resgate?
JG |
A gente começa a buscar a comida Guarani de novo em outros estados e até em outro país, que hoje é o Paraguai. Compartilhamos com as outras 16 aldeias, com outras que nos deram lá no passado e também com amigos não indígenas. Mas não para vender, é para plantar, comer e ficar mais forte. A gente precisa comer milho, mandioca, feijão, batata doce para ficar mais firme nessa pegada da valorização da cultura. Isso está absolutamente relacionado com a natureza, com coexistir, com conexão, com respeitar, não querer queimar, derrubar nem fazer monocultura. Se a gente ficar comendo só comida ultraprocessada, que vem com energias muito ruins, ou tomando Coca-Cola, pode ficar vulnerável a ponto de querer virar microempreendedor e plantar mudinhas ornamentais.
G |E de que forma a região mudou nesses 12 anos de trabalho?
JG |
As pessoas conversam, plantam, se alegram bastante. Fazem reflexões mais profundas sobre a importância de repensar algumas coisas que a gente aprendeu, como o que comer. No Kalipety tem uma lei marcial: ninguém pode fazer aniversário nesse ritmo dos juruás [termo Guarani para pessoas não indígenas]. Bolo, refrigerante, essa papagaiada de super-heróis e princesas. A gente tem que agradecer pela vida todos os dias, ensinar seus filhos a agradecer. Se acordei de novo, vou ter oportunidade de ter mais um dia de vida. Então, a gente tem essas regras. Para quem vem de visita e traz comida para compartilhar, a gente sempre fala: não traz doce, salgadinho nem refrigerante. E a galera está muito mais saudável. Bastante gente veio para cá obesa, mas agora está tudo bem.
G |Os extremos são o tema da Bienal de Arquitetura, da qual você é curadora. É possível, além do clima, pensar um urbanismo que ajude a juntar culturas e não mantenha a cidade tão distante da natureza?
JG |
Os arquitetos têm nas mãos a responsabilidade de pensar uma arquitetura mais ambiental, preservando os recursos naturais e evitando o uso excessivo, já que nada neste planeta é infinito. Ter ar-condicionado nas empresas, em shoppings não resolve. Isso fere o funcionamento normal da natureza. A cultura não indígena tem essa dificuldade de pensar e fazer diferente. Fica só na coisa de trabalhar para não sentir mais o que está ruim. E isso só quem pode, claro. Então, as culturas indígenas e a Guarani entram para mostrar que sua casinha pode ser sim um espaço vivo e aconchegante na humildade, na simplicidade. Mas é muito complicado, porque até a gente Guarani está afetada com isso. Vários outros povos com mais tempo de contato direto [com os juruás] acabam seguindo esse fluxo. Precisam de uma casa para caber geladeira, fogão, mesa, cadeira, armário, o diabo a quatro. Vai se tornando acúmulo.
G |Como seria então esse modelo de arquitetura e moradia?
JG |
Resolvendo o detalhe muito significativo do acúmulo. Roupa, coisas de cozinha, tudo tem que ter um montão. Cada jogo para um tipo diferente de jantar. Pelo amor de Nhanderu [o deus criador para os Guaranis]. Um projeto de arquitetura pensando a crise climática mundial tinha que resolver primeiro esse problema. Na cultura juruá, já se tem fome, miséria, guerra, coisas muito absurdas. Daí, quando fazem a arquitetura, muitos já pensam o que vai ter dentro. Depois, vem a outra parte: a decoração. O planeta produz tanto plástico que consegue poluir até o mar, o que é absurdo. A galera ainda quer cama de madeira. E não é qualquer madeira, são madeiras muito demoradas para crescer, madeiras sagradas. As pessoas podiam ter camas só de plástico ou pensar uma arquitetura que fizesse mais uso de tudo que a gente já produziu no planeta, evitando colapsos maiores do que os que a gente já teve e vai ter. Na casinha Guarani, tem que ter só um espaço adequado para fazer sua comidinha e dormir. Você recebe visita no quintal, numa sombra, no pé da árvore. Então você não tem que ter uma casa enorme. Sua casa também é o mato, o quintal, todos os espaços. Essa é uma das coisas que eu gostaria que o juruá observasse.
G |Acha possível então que as duas culturas conversem sem intensificar o processo de apagamento das culturas indígenas?
JG |
Sim, acho que tudo é possível, porque os povos têm seus saberes, sua formação, sua experiência. E neste momento seria primordial todo mundo sentar e se unir, pensar formas de evitar um mundo em que não vai ter mais nada para ninguém. Claro que eu não coloco nunca meu povo como superior, mas a gente tem dados muito concretos. Quem consegue viver no mato? Quem consegue viver de forma feliz na humildade e simplicidade? A maioria são os povos indígenas, as comunidades quilombolas e o pessoal que está no campo. Mas é muito comum traduzir essa existência como miserável, atrasada, feia. Muitos jovens querem sair da aldeia para estudar, para não ficar igual aos pais. Então, a gente teria que superar e entender todas essas situações para se unir. Isso já acontece aqui na Kalipety. Para recuperar áreas degradadas e fazer agrofloresta, a gente contou com apoio de fora. A gente não conhece o eucalipto, então como recuperar a terra que secou por causa dele? Precisa do conhecimento, do maquinário e do esforço para fazer o planejamento juntos. E aí, a gente tem essa experiência de se escutar, se respeitar, sem ninguém se colocar na posição de salvar o outro. Assim as coisas podem funcionar super bem.
G |Por que, mesmo com o planeta em risco, ainda parece distante para os juruás assumirem a perspectiva indígena?
JG |
Um dos pontos de reflexão podia ser esse: se a gente perder tudo o que tem hoje - tecnologia, comunicação, energia, esse mundo tecnológico que a gente acha que não consegue mais viver sem -, os povos que vivem na natureza e no mato vão continuar. Uma pessoa que veio visitar a aldeia semana passada começou a cortar pedacinhos de um pé de mandioca, disse que queria levar para plantar. Eu falei: não, vai apodrecer, mandioca a gente planta da maniva [a folha da mandioca]. Muitos juruás não conseguiriam viver, porque foi tirado deles esse conhecimento de plantar e se virar no território. A maioria tem medo de cobra, de aranha. Mas na aldeia não se morre todo dia. Na cidade, tem assalto, assassinato, estupro, espancamento... é tanta coisa ruim. Mil vezes eu no meio do mato com as cobras e as aranhas. Mas dá sim para coexistir. Existe aqui uma sabedoria, um conceito de vida que tem continuação, que é possível. E vale a pena estudar, ouvir e escutar como e por que vivemos assim.
https://gamarevista.uol.com.br/semana/ta-precisando-pisar-na-grama/jera-guarani-voce/
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