De Povos Indígenas no Brasil

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De volta ao passado

31/05/2004

Fonte: Época, Brasil, p. 46



De volta ao passado
Funasa diz que saúde indígena é questão de soberania e acaba com projeto que salvou os Ianomâmis

Eliane Brum

Em quatro anos, a incidência de malária foi reduzida em quase 100%, a mortalidade infantil diminuiu 65% e a população, ameaçada de extinção, passou a crescer 4 % ao ano. Esse modelo de eficiência foi conquistado pela Urihi, uma organização não-governamental de saúde Indígena que desde 2000 atua no território ianomâmi. Em junho, porém, a entidade Inicia a retirada de seus funcionários da área. Será o fim de uma experiência histórica de assistência numa região complicadíssima-só alcançada por expedições que Incluem helicópteros, barcos e caminhadas de até dois dias pela selva. Isso vai acontecer porque a Fundação Nacional de Saúde decidiu que a saúde indígena é uma questão de soberania nacional, que deve ser centralizada pelo Estado. "Não tenho nenhuma ressalva a fazer sobre a atuação técnica e administrativa da Urihi. Eles trabalham muito bem e ficamos tristes que não houve acerto", disse a ÉPOCA o diretor do Departamento de Saúde Indígena da Funasa, Lenildo Morais. "Mas a política de saúde indígena é uma questão de soberania nacional. Deixar que seja gerida por ONGs é como terceirizar as Forças Armadas."
Para quem acompanha a política indígena, este é um velho filme, repleto de falas repetitivas. Até 1999 o Estado era o responsável direto pela saúde dos índios. Descobriu que não conseguia ter uma gestão eficiente, principalmente em áreas de difícil acesso. Entre outros problemas, como a má administração dos recursos, a maioria dos servidores encontrava brechas na lei para não permanecer em campo. Nesse período, um em cada dois índios estava contaminado por malária. O governo procurou as ONGs e pediu-lhes ajuda. De lá para cá, começou a repassar e os recursos e fiscalizar os resultados. A Urihi Ê foi criada para atender EFICIÊNCIA Agentes dão assistência nomeio do rio ã necessidade do Estado. Conseguiu tirar os ianomâmis das manchetes negativas da imprensa intemacfonal, que acusava o Brasil de genocídio desde que a invasão de garimpeiros nos anos 80 causou o extermínio de 15% da população. Desde 2001, não houve óbitos por malária.
O orçamento da Urihi - R$ 650 mil mensais - sempre foi alvo do olho gordo de setores da elite de Roraima: onde o discurso de soberania sempre é sacado da manga para encobrir a vontade de botar a mão na terra rica em ouro dos índios. Pela Portaria 70, da Funasa, ela retoma a gestão direta da saúde e as ONGs passam a realizar ações complementares, como contratação de pessoal. "Nos convidaram a assumir diante do fracasso da Funasa, numa situação de caos sanitário e escândalo internacional. Agora querem voltar ao que não deu certo antes", protesta o coordenador da Urihi, Cláudio Esteves. "Esse modelo reduz a parceria a uma mera transferência de tarefas administrativas. Não queremos ser um departamento-laranja da fundação." O diretor da Funasa acusa a ONG de "intransigente". As "ações complementares" que a Urthl se recusou a desempenhar serão executadas pela Universidade de Brasília. O convênio será assinado nesta terça-feira. "Não sei se a UnB tem experiência com ianomâmis, mas queremos que seja uma universidade para atuar também na área de pesquisa", diz Morais.
Os ianomâmis encantaram o mundo por ser uma das últimas etnias com pouco contato com brancos. A maioria dos 14 mil índios não fala português e mantém a cultura quase intacta. "Estamos preocupados com o risco de retrocesso", diz o indigenista Márcio Santilli, do Instituto Sócio-Ambiental. "Não dá para ser burocrático na hora de entrar no mato." Para dar assistência aos ianomâmis, é preciso disposição e criatividade. Eles mudam de lugar, travam brigas de bordunas entre aldeias - geralmente por causa de mulher - e habitam malocas comunitárias, o que facilita a propagação de doenças. A Urihi só teve sucesso porque compreendeu que era preciso adaptar as ações de saúde ao modo de vida da etnia. Seus funcionários passam períodos de 45 dias contínuos no mato, com licenças de 15 dias. Para impedir a aculturação no demorado tratamento da tuberculose na cidade, instalaram um agente ao lado de cada doente para tratá-lo na aldeia. Conquistaram assim o respeito dos índios. "Estou com medo do que vai acontecer com meu povo. Confiamos na Urihi porque ela teve coragem de enfrentar a malária, mas o governo não nos ouviu", disse a ÉPOCA Davi Kopenawa, o maior líder Ianomâmi, vencedor do Prêmio Global 500, da ONU. Davi, que assumiu a luta desde que sua aldeia foi dizimada por doenças, conhece bem os pontos capazes de sensibilizar o governo para sua causa: "Se os ianomâmis voltarem a morrer, vou denunciar lá fora", avisa.

Época, 31/05/2004, Brasil, p. 46
 

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