De Povos Indígenas no Brasil

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Assassinato de índios bate recorde em 2007

15/01/2008

Fonte: CONGRESSO EM FOCO



A chamada "Constituição Cidadã", de 1988, um dos marcos da democracia no país, é clara em relação aos objetivos fundamentais da República. Em seu artigo 3º, inciso IV, diz que um deles é "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".
Passadas algumas linhas de seu celebrado texto, o artigo 20º, que define quais são os "bens da União", diz no inciso XI que "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios" estão entre tais posses. Ainda a respeito das populações indígenas, chegamos ao artigo 129º, que determina as funções institucionais do Ministério Público - entre elas, "defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas" (inciso V).
A introdução acima, que não é meramente ilustrativa, é para efeito de reflexão: as populações indígenas, nos dias de hoje, teriam seu "bem-estar" assegurado e respeitado (na prática, para além de "constitucionalmente")? Suas terras - que não são propriamente suas, como mostra o supracitado artigo 20 - teriam a proteção necessária para a manutenção da cultura e do estilo de vida dos índios nativos? E, quanto à segurança jurídica, como reza o artigo 129, os índios estariam bem assistidos?
Não é o que parece, de acordo com levantamento preliminar realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) sobre registros de violência contra índios no ano passado, e pelo estudo sobre suicídio entre índios realizado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
Segundo o estudo do Cimi - organismo missionário vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), criado em 1972 - foram 81 assassinatos Brasil afora, um dos mais altos números registrados em quase 20 anos de levantamento (o primeiro foi em 1988). E um dado intrigante: desse total, 48 assassinatos - mais de 50% - foram praticados em apenas um estado, Mato Grosso do Sul. Entre as principais causas da matança estão os conflitos decorrentes da escassez de terras destinadas às populações indígenas. Ou seja, há algo errado com as políticas de proteção e promoção do bem-estar dos índios.
"Nunca, desde que o Cimi iniciou esses levantamentos, ocorreram tantas agressões contra a vida dos indígenas. Até agora registramos 81 assassinatos ocorridos em diversas regiões do Brasil", afirmou ao Congresso em Foco o vice-presidente nacional do Cimi, Roberto Liebgott. Para ele, o órgão responsável pelas políticas de assistência aos povos indígenas, a Fundação Nacional do Índio (Funai), ainda está longe de alcançar um padrão ideal de eficiência.
"Na nossa avaliação, a Funai é falha não somente no que se refere à segurança para os índios. Por ser órgão federal vinculado ao Ministério da Justiça e responsável pela execução da política indigenista no país, deveria estar mais bem estruturada fisicamente, com pessoal capacitado e orçamento compatível com as necessidades das populações indígenas em todo o Brasil", declarou Roberto.
Segundo Roberto, a política fundiária no país é deficitária em relação aos índios, em que pesem o aumento populacional dos próprios indígenas - o que levaria à insuficiência das terras historicamente demarcadas para tais povos - e a intensificação de atividades agropecuárias por parte dos produtores rurais.
A combinação desses e outros fatores traria, invariavelmente, malefícios de toda sorte aos povos indígenas. "Quem tem a responsabilidade de demarcar as terras indígenas é o governo federal, através de seu órgão indigenista, mas o que temos presenciado é a omissão e a negligência oficiais diante dessa dramática realidade", denuncia Roberto (leia a íntegra da
entrevista).
O número de assassinatos de indígenas contrasta com o valor total dos repasses federais para organizações não-governamentais (ONGs) ligadas à causa. Conforme mostrou com exclusividade o Congresso em Foco, entre janeiro de 1999 e 26 de outubro de 2007, essas ONGs receberam R$ 744 milhões, cifra superior à execução direta da Funasa, no mesmo período, em saúde indígena, que foi de R$ 618 milhões. O alto volume de recursos repassados a essas entidades despertou a atenção da CPI das ONGs no Senado (leia mais).

Suicídio
Algumas informações levantadas pelo Cimi são particularmente curiosas, como a que revela ser a maior parte dos assassinatos o resultado de conflitos entre os próprios índios. Entretanto, nenhuma intriga mais, inclusive ao meio acadêmico, do que um dado revelado por outro estudo, este realizado pela Funasa: o número de suicídios. Só em 2007, foram 14 casos, todos eles - novamente - em Mato Grosso do Sul, estado que parece ter uma triste sina em relação ao assunto. A tribo Kaiowá é a responsável pela provável totalidade dos suicídios. Os estudos da Funasa não identificaram casos de suicídio em outras etnias. "Temos várias etnias em Mato Grosso do Sul onde não ocorreu nenhum registro de
suicídio", declarou à reportagem o diretor do Departamento de Saúde Indígena da Funasa, Wanderley Guenka.
O motivo do número relativamente alto de suicídios de índios ainda é um mistério, apesar dos avanços nas pesquisas por parte de instituições como Funasa e Cimi. "Em torno dos suicídios existem vários estudos, mas ainda não chegaram ao que determina essa causa", revelou Wanderley. Para ele, a situação continua praticamente a mesma desde que a fundação começou a observar com mais profundidade o "fenômeno" dos suicídios.
O dirigente do Cimi reforça a informação de Wanderley. "O suicídio entre os Kaiowá é motivo de inúmeras discussões, debates e estudos acadêmicos. Reflete uma realidade complexa e parece estar vinculada, entre outros fatores, à falta de perspectiva de futuro", acredita Roberto Liebgott, para quem a recorrente causa da falta de terras é fator determinante para as ocorrências.
"A maioria da população Guarani Kaiowá vive uma situação de confinamento em pequenas reservas, ou em acampamentos de beira de estrada, onde enfrenta todos os tipos de adversidade na luta pela demarcação de seus territórios tradicionais.
"Não é muito diferente do que tem ocorrido desde 1999, quando a Funasa assumiu esse tipo de trabalho e iniciou um acompanhamento sistemático", revelou Wanderley, referindo-se à responsabilidade da fundação por estruturar o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, que é articulado com o Sistema Único de Saúde (SUS). "Mesmo com as políticas de assistência isso não tem diminuído."
O pesquisador do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB) Eduardo Barnes concorda que a escassez de terras é um fator importante na questão da mortandade de índios. Entretanto, acredita que não é o único.
"O suicídio tem muitos componentes da cultura [dos Kaiowá], como acontece na nossa: grandes ícones do rock também se suicidaram, com overdoses de droga. A cultura oferece a possibilidade do suicídio", explica Eduardo. "Mas é incrível que os guarani Kaiowá sejam o segundo maior povo indígena do Brasil e tenham um território tão reduzido para viver, em
comparação às outras possibilidades de terra, como a Amazônia", critica o pesquisador, afirmando ao Congresso em Foco que a religião da etnia também possibilita o suicídio.
"Essa falta de distribuição territorial tem refletido numa falta de perspectiva para os índios. Imagine a possibilidade de você não poder viver como quer...", sugeriu Eduardo, lembrando que, além da cultura, da religião e da escassez de terras, os "fracassos sentimentais" têm levado muitos índios jovens a tirar a própria vida.
Segundo o antropólogo, os métodos de suicídio dos índios guarani Kaiowá diferem do modus operandi dos "homens brancos". "Uma característica é que se enforcam até morrer, mas não se penduram numa árvore, por exemplo. Eles amarram a corda ao pescoço e a prendem a algum tronco, puxando-a com as mãos até o fim. Isso chama muito a atenção de quem pesquisou o assunto, é uma coisa muito trágica", revelou Eduardo, concordando com a falta de
razões palpáveis para explicar os suicídios. "É de se frisar que a questão é muito complexa. Até hoje não se descobriu um fator determinante para isso."

Ecocídio
Responsável pela sede regional do Cimi em Mato Grosso do Sul, onde vivem cerca de 38 mil guaranis, o conselheiro Egon Heck falou ao Congresso em Foco sobre a situação dos índios em seu estado e, de uma forma mais ampla, no resto do país. Para Egon, a ação "predatória" da sociedade dita civilizada é o principal fator responsável não só pelos assassinatos e suicídios entre os índios, mas configura em si mesma o que ele aponta como "ecocídio".
"Existe uma aceleração muito forte dos impactos - cada vez mais destrutivos - da sociedade capitalista no modo de vida dos indígenas. Isso leva não só à morte física, mas também ao ecocídio, que é a negação a um povo de continuar vivendo conforme seus valores e hábitos", disse Egon, para quem são incongruentes os modos de vida dos índios (baseado em valores comunitários) e do chamado "homem branco" (que priorizaria valores como competitividade e
riqueza).
Entretanto, Egon acredita que, dadas as diferenças, a interação e o respeito à diversidade pode mudar o quadro atual. "Eles [os índios] têm de caminhar para uma maior interação de suas aldeias com a aldeia global. Mas essa sociedade, que é baseada nos princípios da competitividade e da lógica capitalista do acúmulo e da exclusão, também deve mudar",
analisa.
"É de cortar o coração ver um povo ao qual resta o aniquilamento da vida por falta de perspectiva", desabafou o conselheiro, tentando compreender os motivos que levam os índios - pessoas com vida em tese mais saudável que a dos "urbanóides" - a ceifar a própria vida.
"[Para os índios], as portas se fecharam de tal forma que, o que seriam possibilidades culturais, acaba se projetando como uma saída diante da vida. Chegam ao extremo de buscar chegar a uma outra terra, a um outro plano, onde não haja tantos males."
Segundo o conselheiro regional do Cimi, cerca de 80% dos suicídios registrados na etnia guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, são praticados por índios entre 15 e 22 anos, o que demonstraria a falta de perspectiva entre os mais jovens.
A exemplo de Roberto Liebgott, Egon critica a conduta da Funai em relação às políticas de assistência fundiária às populações indígenas. A atual população de guaranis em seu estado - 38 mil - requer uma extensão de terra muito maior do que a disponível atualmente, antiga reivindicação da etnia. "É quase incompreensível que a Funai diga que a questão [da falta de terra para as etnias do Mato Grosso do Sul] é prioridade. Em dois anos, nenhum grupo foi designado para identificar as 100 terras tradicionais dos guaranis, que é o primeiro passo", reclamou Egon.
"Chegou a um ponto tal que os próprios índios tiveram que partir para um termo de ajustamento de conduta (TAC), no qual a Funai se comprometeu a fazer a identificação das terras. Se não fizer, terá que responder judicialmente, no Supremo Tribunal Federal", sentenciou Egon. "Nós esperamos que, em 2008, a Funai saia do discurso e parta para o
trabalho de identificação e regularização. Já o pesquisador Eduardo Barnes analisa com mais parcimônia a função da Funai em relação aos impasses fundiários. "O papel da Funai tem sido importante para resolver os conflitos no
médio e no longo prazo. Uma análise mais histórica mostra que, principalmente em 1995, a instituição conseguiu fazer a identificação e a delimitação de várias áreas", defendeu o antropólogo, apontando as questões burocráticas como entraves para a implementação de projetos. "E muito difícil você reverter uma decisão do Estado. A grande meta da Funai é entrar na arena fundiária e decidir algumas coisas."
A reportagem entrou tentou falar com representantes da Funai, mas não obteve retorno. O presidente da entidade, Márcio Meira, tem afirmado recorrentemente que o problema da escassez de terras para tribos de Mato Grosso do Sul será uma das prioridades de sua gestão, que completa um ano em março. Promessa, aliás, que já era feita por seu antecessor, Mércio Gomes (setembro de 2003 a março de 2007), sem que o problema tenha sido resolvido.
"Uma coisa é a gestão do Márcio. A outra, a do Mércio. Dou crédito ao Márcio em seu trabalho na Funai. Ele está implementando uma política fundiária para dar resposta a esta questão. Há que se entender que existem vários fatores que influenciam na questão fundiária de Mato Grosso do Sul, mas eles estão na perspectiva de buscar soluções no longo prazo", concluiu Eduardo.
Em sua página na internet, a Funai informa que, em 2007, "investiu cerca de R$ 3 milhões em projetos de promoção da qualidade de vida dos índios do Mato Grosso do Sul e atividades educativas, incluindo palestras para jovens e adolescentes indígenas para alertar sobre os males do alcoolismo, doença que afeta parte da comunidade indígena do estado".
As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios guarani Kaiowá têm um nome próprio: Tekoha. Significa, em suma, a chamada "terra de reprodução". Nelas, os nativos teriam a liberdade e a segurança para perpetuar os indivíduos da etnia. As Tekoha teriam sido concedidas, segundo a crença Kaiowá, pela divindade chamada Nhanderu (energia criadora).
Voltando à nossa realidade, recorramos mais uma vez à Carta Magna de 88. Está lá, expressamente registrado, no capítulo VIII, artigo 231, inciso V: "É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do país, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno
imediato logo que cesse o risco".
Nhanderu agradece. Entretanto, ainda espera a "justiça dos homens" acompanhar a "justiça de Tupã". No mesmo capítulo, no artigo 67, está escrito que "a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição". Trinta anos já se passaram, mas o problema persiste.
 

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