Jarawara
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- AM 271 (Jarawara, 2014)
- Família linguística
- Arawá
Os Jarawara pertencem aos povos indígenas pouco conhecidos da região dos rios Juruá e Purus. Eles falam uma língua da família Arawá e habitam apenas a Terra Indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamanti, que é constantemente invadida por pescadores e madeireiros.
Nome e localização
O nome Jarawara pode também ser escrito Jarauara, Yarawara e ainda Jaruára, sendo a primeira forma (Jarawara) a mais utilizada. Quando perguntados como se autodenominam, eles dizem que eles mesmos se deram nome “e yokana”, que literalmente significa “pessoas de verdade” (Vogel 2006), mas que eles traduzem como “pessoal mesmo”.
Constituíam, em 2006, um grupo pequeno de aproximadamente 180 pessoas, vivendo na terra indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamanti, homologada em 1998 e situada no médio Purus, entre os municípios de Lábrea e Tapauá. Em 2010 a população Jarawara atingiu 218 pessoas. O território em que habitam há pelo menos oitenta anos corresponde a um terço do total da terra indígena, também habitada pelos Jamamadi/Kanamanti, e abrange regiões de terra firme e de transição com a várzea (Schröder 2002: 85).
O nome da etnia Jarawara não aparece, ao contrário dos outros grupos da região, em nenhum documento histórico sobre o rio Purus. Assim, não podemos saber, por meio deste tipo de fonte, a origem desta população. Por outro lado, os próprios índios afirmam terem vindo do “Alto Purus, do Acre”, ou seja, eles desceram o rio até chegarem onde estão atualmente. Baseando-nos em relatos biográficos, podemos supor que eles moram na área, hoje homologada, há pelo menos oitenta anos, mas é díficil determinar com exatidão as datas, pois a memória histórica parece acompanhar a memória genealógica que, como em diversos povos indígenas, não ultrapassa duas gerações superiores a atual. Eles relatam que “os seus avós disseram que os avós deles disseram que” vieram do Alto rio Purus e se instalaram na região.
Mais recentemente, há aproximadamente sessenta anos, muitos Jarawara se casaram com membros de um “outro povo” chamado Wayafi, que falava a mesma língua, compartilhava grande parte da mitologia com eles e chegou na região fugindo dos Apurinã. Por isso, eles se declaram “misturados de duas gentes, Jarawara e Wayafi”. Os indivíduos que hoje estão na faixa dos cinqüenta anos de idade sabem perfeitamente quem descende de quem, pois são justamente suas mães e pais que eram Wayafi ou que se casaram com os Wayafi. A diferença entre os dois grupos, apesar de marcada pelos adultos, não parece ter nenhum conseqüência sociológica. Acreditamos que os Wayafi e os Jarawara fossem antigamente subgrupos de uma mesma etnia, mas não temos como comprovar.
Língua
Falam a língua jarawara, da família lingüistica Arawá, bastante parecida com as línguas (também da mesma família) dos Jamamadi e dos Banawa-yafi com quem se comunicam facilmente se necessário. No entanto, a entonação e a maneira de falar é nitidamente diferente, sendo o jarawara mais veloz e menos nasal que as outras duas línguas. Apenas dois ou três homens falam fluentemente o português.
A língua foi estudada em profundidade pelo linguista-missionário Alan Vogel e por Robert Dixon, que publicaram diversos artigos, teses e livros sobre o assunto. A ortografia jarawara consiste em onze consoantes (b, t, k, f, s, h, m, n, r, w, y) e apenas quatro vogais (a, e, i o) e foi elaborada em 1988 por membros do Sociedade Internacional de Linguística (SIL), levando em conta sobretudo a ortografia jamamadi, que tem praticamente o mesmo inventário fonêmico (Vogel 2006: 45).
Mito de origem
Os mitos Jarawara abordam temas bastante diversificados entre si: as localizações geográficas, as transformações de pessoas em animais, as atividades dos monstros, espíritos benfeitores e malfeitores, o casamento e a traição, o xamanismo, os inimigos e os heróis míticos, as normas sociais e morais, as guerras e a vingança, as atividades de caça, pesca e coleta. Das diversas narrativas coletadas, a que mais se destacou (todos perguntavam se nós já a conhecíamos) foi o mito de origem, que relatamos abaixo.
Os Juma, inimigos míticos dos Jarawara, invadiram inesperadamente a aldeia e mataram todos para comer, pois eram canibais. Apenas uma jovem escapou e para não ser pega, colocou o seu sangue menstrual em uma flecha e em sua axila, e fingiu-se de morta. Um homem Juma, passando, reparou na beleza da menina e pensou consigo mesmo que se ela não estivesse morta, a levaria para ser sua esposa. Ele então percebeu que tinha esquecido a sua faca (feita de taboca) e gritou para um de seus companheiros trazê-la, o que ele não fez, pois estava muito ocupado cortando e carregando as inúmeras vítimas. Para verificar se a menina tinha realmente falecido, o Juma a bateu com um pau, escutou suas batidas cardíacas e colocou um pedaço de capim em suas narinas. A jovem não reagiu em nenhum momento.
Convencido, ele a cobriu de paus e foi buscar sua faca. Assim que ela ouviu os passos dele ao longe, jogou no mato os paus podres que a cobriam, saiu correndo e se escondeu dentro do buraco de um pássaro, em uma árvore. Ao retornar, o Juma foi incapaz de achá-la, e depois de um longo tempo a sua procura, resolveu ir embora. A jovem então saiu do buraco e foi andando pela floresta, onde encontrou dois animais mortos e forrados no pé de uma árvore, que ela então subiu. Um homem chegou carregando diversos macacos mortos, pois ele havia saído para caçar antes do massacre. Ela gritou lá de cima da árvore para chamar sua atenção, mas ele não quis olhar. Ela contou que os Juma tinham matado todo mundo, e só tinham sobrado eles dois.
Descendo da árvore, a jovem falou para o homem ir buscar a linha de algodão que ela havia tecido e a farinha branca (iawa) que estavam sobre sua rede. Chegando na aldeia, ele pegou a linha e a farinha e já de saída gritou: “tem alguém ai?”. Um Juma respondeu: “está faltando um”. Ele saiu correndo até onde estava a jovem e os dois continuaram andando na floresta. Ela fez duas redes com os fios de algodão e depois prepararam o jantar. A jovem casou-se com o homem e ambos ficaram morando escondidos dos Juma. Tiveram vários filhos, e quando estes cresceram, o pai explicou-lhes que eles deveriam se casar com suas próprias irmãs, o que eles fizeram. Todos tiveram muitos filhos e seu povo cresceu novamente.
Atividades econômicas
O ciclo anual está marcado pelo regime pluvial, com chuvas mais intensas de novembro a fevereiro, e pelos níveis de água, que geralmente são mais altos em março e abril e mais baixos de julho a outubro.
Os Jarawara são basicamente agricultores da terra firme que complementam sua dieta com caça e pesca. Nas roças, eles plantam principalmente mandioca, macaxeira, batata-doce, ariá, cará, taioba, milho, bananas, abacaxi, jerimum, melancia, caju e pupunha, mas também cana-de-açúcar, tabaco e um cipó chamado kona, de que produzem um veneno ictiocida, o tingui. Eles plantam pelo menos 17 variedades de mandioca e 5 variedades de macaxeira. Nos quintais, chamados yamabarikani ("perto da casa"), os Jarawara cultivam mais de 30 espécies de fruteiras, palmeiras, legumes, verduras, condimentos, temperos e plantas medicinais.
Os Jarawara não só caçam na terra firme, mas também nas terras ilhadas, que são terras inseridas na planície de inundação do Purus e que normalmente não alagam durante as cheias, concentrando uma série de espécies sazonalmente abatidas.
Para a pesca são aproveitados diversos ambientes durante o ano inteiro. Há indícios de que os peixes representam um elemento freqüente na dieta Jarawara. Entre as diversas técnicas, merece ser mencionada a pesca com veneno vegetal (kona). O kona parece ser a mesma espécie cultivada entre os Jamamadi e Zuruahá.
Os Jarawara comercializam principalmente produtos extrativistas, como látex, castanha-do-pará, óleo de copaíba e sorva, enquanto produtos agrícolas e artesanato ocupam posições secundárias nas trocas comerciais. Esse povo tornou-se dependente de várias mercadorias industrializadas, mas está numa posição muito desvantajosa para adquiri-las e pouco familiarizados com o valor do dinheiro. Por isso, os regionais conseguem tirar grandes vantagens das trocas comerciais com estes indígenas.
Organização social e parentesco
O grupo, composto por apenas 180 pessoas em 2006, está dividido em cinco aldeias principais - Casa Nova, Yemete, Água Branca, Saubinha e Nazaré - e uma temporária - Canta Galo - onde os habitantes de Saubinha se deslocam durante o inverno amazônico para coletarem castanha. As aldeias são pequenas, compostas de no máximo cinqüenta pessoas (incluindo as crianças), e se consideram entidades econômicas e políticas autônomas. Em cada localidade existe um cacique, que é essencialmente aquele que faz a comunicação entre o grupo e os diversos agentes da sociedade nacional, sendo esta a sua única função social. Idealmente, teria de haver pelo menos um xamã em cada localidade, o que já não é mais o caso hoje, visto os poucos pajés restantes.
Sabemos que, no passado, as etnias da família lingüística Arawá se organizavam em subgrupos nomeados. Os viajantes que entraram em contato com estes povos no final do século XIX descrevem que cada etnia estava dividida em subgrupos endogâmicos e autárquicos, que se auto-designavam com nomes de plantas e de animais, e atribuíam a seus membros características do ser epônimo. Cada subgrupo tinha um xamã e um chefe e morava em uma única maloca, que era a aldeia. Os subgrupos eram nomeados com sufixos: madihá entre os Kulina, deni entre os Jamamadi e Deni, dawa entre os Zuruahá e dyapa entre os Kanamari (da família linguística Katukina). Os Jarawara atuais não fazem referência direta a estes subgrupos, mas acreditamos que se algum dia eles existiram o sufixo utilizado foi provavelmente mati ou yafi.
Há aproximadamente vinte anos, antes da chegada dos missionários evangélicos, os Jarawara possuíam uma grande mobilidade, mudando de aldeia por diversos motivos: morte de um de seus membros, brigas, doenças, etc. A mudança de localidade não significava necessariamente a dissolução do grupo local. Ao contrário, as parentelas se mantinham juntas em sua movimentação pelo território. As pessoas mais velhas, quando perguntadas onde já moraram em suas vidas, levam bastante tempo para se lembrarem e listarem todas as localidades, esquecendo-se sempre de algumas. Já os jovens só conheceram uma aldeia, onde vivem desde sua infância.
O único motivo da sedentarização, segundo os Jarawara, é a presença dos brancos. As aldeias Casa Nova e Água Branca têm casas de missionários do SIL e da JOCUM (Jovens com uma Missão) respectivamente. Estes missionários já moraram com os índios durante longos períodos, mas hoje vêm apenas para visitar e passar algumas semanas. Suas casas permanecem intactas. Foram também os evangélicos que pediram para os índios abrirem e cuidarem de pistas de pousos nestas aldeias, as quais servem tanto para suas chegadas e partidas como em caso de doenças graves, quando um avião busca um enfermo. As aldeias Água Branca e Casa Nova possuem igualmente uma escola e um posto de saúde da Funasa (este também presente em Saubinha), onde ficam alguns medicamentos e onde o assistente de enfermagem dorme durante suas estadias periódicas. Idealmente, os Jarawara deveriam contar com um assistente de enfermagem exclusivamente para eles, que ficaria a maior parte do tempo na aldeia Casa Nova, onde se localiza o “Pólo-Base”, e passaria alguns dias nas outras aldeias. Mas as tensões constantes entre os profissionais de saúde e os índios, além dos problemas internos do orgão responsável, dificultam que este ideal seja realizado. Quando perguntados porque não se deslocam mais, os Jarawara dizem que devem cuidar destas instalações dos brancos (das quais eles se orgulham enormemente) e que não podem mais partir de uma hora para outra, abandonando tudo.
As aldeias são formadas por diversas casas construídas no modelo regional amazônico: feitas com madeira de paxiúba, sobre palafitas e com telhado de palha ou alumínio, dependendo da situação ecônomica da família. Nas aldeias com pista de pouso (que serve também como campo de futebol), as casas se distribuem dos dois lados do campo, de frente para este, uma ao lado da outra. Já nas aldeias “tradicionais”, as casas estão espalhadas, e suas portas não são todas na mesma direção. As casas abrigam normalmente uma família nuclear (um casal e seus filhos) e um grupo de irmãos possue suas casas próximas ou vizinhas. Os jovens que se casam constroem suas residências o mais perto possível de seus pais. De uma maneira geral, em um primeiro momento, os recém casados moram perto ou na aldeia da família da mulher para em seguida ficarem próximos da família do homem. De fato, nos primeiros anos, se ambos não são da mesma aldeia, oscilam entre as residências dos pais da moça e do moço, ou entre suas próprias casas construídas ao lado destas. É apenas em um segundo momento, com o nascimento de seus filhos, que se instalam definitivamente na aldeia dos familiares do homem. Mas a virilocalidade não é uma regra instransponível, diversos outros fatores influenciam na decisão de moradia do casal.
As casas possuem um dormitório (todos dormem juntos, cada um em sua rede com mosquiteiro, sendo que o casal e os filhos pequenos dividem o mesmo mosquiteiro) e uma cozinha. Esta última é um terraço sem paredes na frente da casa, onde fica o fogo da família e onde se preparam e se consomem as refeições. Nas proximidades das residências ficam as casinhas dos animais domesticados (galinhas, porcos e queixadas), além de pequenas hortas, onde se planta tabaco para fazer rapé, e a planta do timbó. Cada aldeia possui um ou dois fornos para fazer farinha que se localizam longe das casas, na ‘casa de farinha’.
A autonomia das aldeias tem como contrapartida as alianças que unem as cinco localidades entre si. Cada grupo local corresponde a aproximadamente um grupo de irmãos e seus filhos, e estão relacionadas às outras aldeias pelos laços de casamento entre seus membros. Mesmo se idealmente os jarawara preferem se casar com pessoas da mesma localidade, a união entre jovens de aldeias diferentes é comum, assim como o é a troca de irmãs (um jovem casa-se com uma mulher e o irmão desta casa-se com sua irmã), que muitas vezes resulta em mudança de moradia para um dos cônjuges. Os parceiros preferenciais são os primos cruzados classificatórios, filha/o da irmã do pai do/da jovem ou do irmão da sua mãe. Todo outro casamento, apesar de freqüente, é considerado “errado” (mas não incestuoso) pelos índios. As mães solteiras são numerosas e normalmente declaram que seus filhos possuem mais de um pai (todos aqueles com quem tiveram relações durante a gravidez). Os divórcios não são comuns, e o casamento com brancos ou membros de outras etnias são raros e mal vistos. Muitos homens na faixa dos sessenta anos viveram suas vidas inteiras solteiros por falta de mulheres “adequadas” para casarem.
Cosmologia
O cosmos jarawara está divido em quatro lugares distintos: a terra, o céu, as águas e abaixo da terra. O céu e a terra são extremamente parecidos, e são habitados pelos mesmos tipos de seres: humanos, animais, plantas, espíritos de animais e plantas, e monstros. No entanto, o céu parece ser em uma versão melhorada da terra. Lá todo mundo é jovem e belo, e os caçadores conseguem carregar uma anta sozinhos. Existe ainda um céu mais acima do céu, onde mora Jesus, mas este os Jarawara não conhecem e não sabem descrever, pois os xamãs nunca o visitaram, ao contrário do céu “perto”, que eles vão e vem quando bem entendem. Abaixo da terra moram os espíritos de algumas plantas, como a mandioca, e também os “espíritos velhos” (inamati bote) que são canibais e sobem à terra constantemente atrás de humanos para suas refeições. E, finalmente, nas águas e rios moram os monstros mais perigosos dos cosmos, os maka (que literalmente significa cobra), que têm a capacidade de transformação corporal e podem ser vistos tanto em forma humana como em forma animal. Os Jarawara vivem na terra e estão sempre atentos para não terem suas almas raptadas pelos outros seres (terrestres ou não), mas, como explicaremos abaixo, eles possuem também laços de parentesco bastante estreitos com os habitantes do céu.
Para os Jarawara, quando as árvores e plantas cultivadas estão começando a crescer (ainda estão “baixas”) seus espíritos saem debaixo da terra e começa a chorar. Os espíritos que moram no céu ouvem o choro e descem para buscar esta “criança”. Eles a levam para o céu, onde ela é adotada ou vai morar com o espírito de algum jarawara consangüineo que morreu. Este espírito de planta, que agora mora no céu, é considerado tanto “filho” da pessoa que o plantou como “filho” da planta da qual saiu. Eles dirão, por exemplo, que ele é “filho do Okomobi” e “filho da banana”, mas ao mesmo tempo ele também é filho adotivo daqueles que o criam no céu.
Quando uma pessoa morre na terra, ela é enterrada ao lado de uma das árvores que plantou. Depois de alguns dias, ou no cair da noite do próprio dia do enterro, os Jarawara afirmam que diversos “seres” saem da cova, ou melhor, saem de dentro do corpo (mais especificamente da barriga e do fígado). Eles são pelo menos três dos seguintes: um espírito de onça, um espírito (inamati), um monstro (yama), e um animal, como macaco, gavião ou anta. Cada um destes seres terá uma destinação particular. O animal irá vagar pela terra e poderá ser caçado por um jarawara a qualquer momento. O espírito da onça será levado por um xamã do céu que irá domesticá-lo. O monstro será levado por um espírito de planta benfeitor, que o prenderá em algum lugar não conhecido, ou vagará pela terra, atormentado a vida de todos, pois será canibal. O espírito que sai como espírito mesmo poderá ter uma das duas destinações descritas abaixo, ou pode haver dois espíritos que saem da mesma pessoa, cada qual indo para um lugar. A primeira opção é que os “filhos” e “netos” do indivíduo morto venham buscá-lo para levá-lo ao céu. Estes “filhos” e “netos” são de fato aqueles espíritos que saíram das plantas que o indivíduo plantou no decorrer de sua vida. Ou seja, quanto mais árvores um Jarawara plantar, mais “filhos” ele terá no céu. Assim que chegar lá, o espírito do indivíduo que morreu ficará alguns dias na aldeia de seus “familiares” descansando. Terminado este período, ele será levado para outra aldeia do céu, onde passará pelo ritual de iniciação feminina, sendo ele homem ou mulher. Neste ritual, ele será chicoteado (como ocorre com as meninas na terra) e quando as feridas cicatrizarem, ele poderá voltar para a aldeia de seus “filhos” e “netos”, sempre no céu, onde permanecerá junto a seus “parentes”.
A segunda opção para um espírito que sai de dentro de uma pessoa morta é que ele chame seus “filhos” do céu (espíritos que saíram das plantas que ele cultivou em vida) para virarem queixada. Todos eles descem até a terra, onde os “filhos” de outras pessoas (espíritos de plantas que pessoas que vivem na terra plantaram) batem neles com um bastão para que se transformem em queixada. O morto e seus “filhos” se tornam queixada e passam a morar na terra, também suscetíveis de serem caçados e comidos pelos Jarawara a qualquer momento. O espírito da pessoa que morreu, e que chamou seus “filhos” (das plantas) para virarem queixada, será o “dono (hitiri) dos queixadas”, ou melhor, o dono deste bando de queixadas. Este espírito pode aparecer para os xamãs jarawara sem avisar nem ser chamado, e informar onde estão os queixadas, o que resultará em uma caçada bem sucedida pelos homens se eles forem ao lugar indicado. Ao mesmo tempo, este espírito “dono dos queixadas” (que é, recordamos, um jarawara falecido) possuí vínculos de parentesco com os vivos, e assim, se um grupo de queixadas é visto bem perto da aldeia, os Jarawara explicam o acontecimento dizendo que o “dono, nosso parente, teve saudades dos seus e veio visitá-los, mostrando o caminho e trazendo os seus filhos queixadas” (os quais os jarawara matarão e comerão se pegarem suas espingardas a tempo).
Ritual
O mais importante ritual jarawara é o chicane, marina ou ayaka, a iniciação feminina. Para eles este ritual é a melhor festa do mundo. Trata-se de um momento de aprendizado, de encontro entre parentes que moram em aldeias diferentes, de prazer, de excesso alimentar, de canto e dança, de futebol, de brincadeira, de risada, de paquera e também de muito namoro (clandestino ou não). A própria maneira como os índios se referem ao ritual é reveladora: marina que quer dizer literalmente banquete (Vogel 2006 : 131) ou ayaka, que significa cantar em geral, e canto ritual masculino, em específico.
Assim que uma jovem menstrua pela primeira vez, ela tem os seus cabelos cortados (eles ficam bem curtos, como um menino, mas não são raspados), o seu pai ou tio e outros parentes próximos constroem uma casinha de palha (chamada em português de chiqueiro, em jarawara de wawasa) no interior da própria casa, no lugar onde fica habitualmente a rede da menina. A partir deste momento, ela passa seus dias e noites no interior deste compartimento, o deixando apenas para tomar banho. Nas saídas diárias, coloca-se uma toalha escura em sua cabeça, de forma em que ela não veja e não seja vista pelos homens, e outra jovem, geralmente sua irmã, a guia pela mão. Antes que ela chegue à beira do igarapé, todas as crianças do sexo masculino vão embora sozinhas ou com suas mães, mesmo os bebês. Uma vez no porto, que durante o dia é um ambiente exclusivamente feminino, tudo se passa como antes, ela retira a toalha de sua cabeça e banha-se normalmente, além de ajudar nas tarefas diárias, lavando louça ou roupa. E assim vive a menina durante o seu período de reclusão, que dura entre três a seis meses, aproximadamente o tempo para que os seus cabelos alcancem a nuca.
A festa (ou o ritual) que marca a “saída da menina” depende de uma decisão tomada exclusivamente pelo seu pai, e na ausência deste, pelo seu tio materno. Ele avisa pessoalmente todas as outras aldeias, ou apenas os que deseja convidar, e marca o dia da festa, que acontece preferencialmente no verão (julho) ou no inverno (em janeiro, quando os rios já estão cheios, e chega-se mais facilmente nas aldeias, sendo uma boa parte do caminho feito de canoa). Não existe uma regra com relação à estação, no entanto, nos parece que a “saída da menina” sempre ocorre no período da lua cheia. O ritual do chicane vem sofrendo mudanças nos últimos anos, devido tanto à pressão exercida pelos missionários evangélicos, presentes na maior parte das aldeias de todas as etnias do rio Purus, como à morte dos últimos xamãs restantes (os jovens de hoje não se interessam pela função). Por isso existem cerimônias que podem se diferenciar substancialmente da que descreveremos abaixo, que é um modelo de “ritual ideal” baseado nos diversos relatos recolhidos em campo.
Assim que o pai da menina anuncia o dia da festa, todos os homens da aldeia saem para caçar a fim de encontrar alimentos para “bem receber” os convidados. Normalmente o marina dura no mínimo três dias e três noites, mas ele pode atingir até seis noites, se houver comida suficiente. Se o ritual for realizado no verão, todos da aldeia, homens e mulheres, saem juntos para colocarem timbó no igarapé ou lago mais próximo, e capturarem uma quantidade admirável de peixes que serão moqueados (e neste caso a comida é realmente abundante, como manda a norma, pois “bem receber” é justamente bem alimentar). A farinha que será consumida é fabricada e armazenada durante os vários meses que antecedem a festa.
Quando os primeiros convidados chegam à aldeia, atravessam o campo correndo e gritando “yeeee”, batendo com varetas no telhado e nas paredes das casas. As pessoas que estão no interior, os anfitrões, começam então a imitar o som de animais (macacos, antas, queixadas), e alguns (o xamã e sua esposa) começam a gesticular como estes, balançando a rede como se fossem macacos nos galhos, por exemplo. Em seguida, as mulheres saem de dentro da casa com pedaços de brasa na mão e vão espantar os convidados, que se afastam, indo embora e depois retornando calmamente. Agora começará a festa em sí (ayaka aboni). As mulheres iniciam os cantos denominados eé sentadas no “terraço” da casa, ou seja, acima do solo, perto do chiqueiro da menina. São poucas as mulheres que sabem conduzir estes cantos. Em sua maior parte, são senhoras idosas, esposas de xamãs. Durante o dia inteiro, todos os dias, as mulheres cantam o eé enquanto os homens jogam futebol, conversam, dormem, etc. Após o jantar, quando já está escuro, começam as danças e cantos no pátio, em círculo, todos de mãos dadas, em volta de um pedaço de tronco de mais de dois metros de altura. Gira-se para um lado e depois gira-se para o outro, a noite inteira, até o raiar do dia. Estes cantos podem ser exclusivamente femininos (yowiri) - e neste caso uma mulher lidera, e todas as outras repetem o refrão -, ou masculinos (ayaka), comandados por um xamã. A menina participa da dança com um lenço que cobre os seus olhos sob um chapéu (poro) feito de palha e pena de arara, que tem a forma de um cesto e cobre a sua cabeça inteira até o pescoço. Ela usa uma saia vermelha feita de algodão (yayafa) e um “rabo” (yifope) de folha de buriti, ambos fabricados por sua mãe especialmente para a ocasião. Ela não canta. Quando amanhece, a menina é conduzida novamente à sua casinha, onde permanece até a noite seguinte, quando recomeçam os cantos. Como já foi dito, as danças podem durar mais de três noites, dependendo da quantidade de alimento disponível. Normalmente, as mulheres cantam a primeira noite, e as seguintes são os homens, mas as mulheres também participam das rodas dos homens e vice-versa, “para animar”, “ficar bonito”.
Na última noite, tudo acontece como descrito acima: os xamãs cantam, todos rodam, etc. Quando amanhece, as mulheres descem para o porto com a menina, dão banho nela, a pintam e a alimentam. Depois elas sobem em fila indiana, com varas na mão e cantando yowiri, e chegam ao terreiro onde estão os homens, que continuaram cantando ayaka. Formam-se duas rodas, uma de mulheres, no exteriror, e outra de homens, no interior. As mulheres então avançam com suas varas para baterem nos homens, que por sua vez começam a gritar imitando queixadas e saem correndo. Um dos irmãos da menina retorna ao pátio e a levanta, colocando-a em cima de um tronco de árvore, estendida, de barriga para baixo. Uma mulher amarra os seus pés e mãos. O pai da menina (ou um irmão) traz uma vara e chama os homens para chicoteá-la. Vai quem quer, “quem tiver coragem”. O pajé faz um discurso moralizador, dizendo coisas do tipo “você não trabalha, preguiçosa, não quer ficar em casa com sua mãe para ajudar, só fica saindo”. Um por um, os homens e jovens que têm vontade, especialmente os seus sogros classificatórios (koko), batem na menina, até sair sangue. Em seguida quatro rapazes a levam, ainda amarrada no tronco, para a casa dos seus pais, onde ela é desatada, mas permanece com sua saia e “rabo”.
O pai então traz o rapé (sina) e a cachaça e chama aqueles que bateram em sua filha. Eles tomam o álcool oferecido e o pai sopra o rapé em suas narinas com um canudo. As mulheres ficam ao lado, esperando com brasas na mão. Quando o pai termina de soprar, todas elas se precipitam em direção ao homem e tentam queimá-lo, para “pagar/vingar” (manakone) a menina chicoteada. O homem deve ser ágil o bastante para correr e escapar, o que quase nunca acontece, visto o estado de embriaguez em que se encontra, devido tanto à cachaça quanto ao rapé. Assim, a maior parte dos adultos tem cicatrizes das queimaduras adquiridas nos chicanes. Em seguida, começa aquilo que os Jarawara chamam de “brincadeira”: todos os homens contra todas as mulheres, onde os dois lados tentam debochar do outro, queimando, amarrando, assustando, pintando o rosto com uma tinta que permanece durante dias, etc. Quando acaba a “brincadeira”, que pode durar horas a fio, os convidados vão embora, retornando às suas aldeias.
A menina, por sua vez, passa dois dias e uma noite suja de sangue, devendo permanecer longe d’água e não podendo olhar diretamente para a luz. Em um primeiro momento ela só pode se alimentar de palmito de açaí, farinha, beiju, macaxeira e banana verde assada. Depois de alguns dias, sopra-se rapé em suas narinas e ela pode comer farinha, peixe traíra e jeju, e retoma gradualmente à sua dieta habitual.
Jogos
No decorrer do dia, os membros de uma aldeia estão dispersos, caçando, pescando, preparando farinha, etc., sozinhos ou em pequenos grupos de duas ou três pessoas. Ao entardecer, todos se reúnem em torno do campo de futebol. Este é o momento ideal para a vida social. Os jovens, homens e mulheres, jogam enquanto as crianças brincam e os adultos assistem ao mesmo tempo em que conversam de pé ou sentados nos “terraços” das casas. Apenas quando já está escuro, após as sete horas da noite, é que todos retornam às suas residências para jantar.
Hoje em dia, a recreação mais comum é o futebol. Em geral, as mulheres começam brincando entre si e em seguida os homens as retiram do campo para jogar até anoitecer, quando não conseguem mais enxergar a bola. Os Jarawara promovem torneios de futebol nas aldeias. Convidam os outros membros da etnia, assim como os Jamamadi e alguns ribeirinhos dos quais são amigos, e participam dos torneios organizados por estes. Os campeonatos duram, em geral, apenas um dia. A maior parte dos convidados vai embora ao final da tarde do evento, antes de escurecer. Se o torneio for grande, o prêmio é um porco, se ele for pequeno, os campeões devem se contentar apenas com alguns pacotes de bolacha e diversos litros de refrigerante. Os encontros promovidos graças ao futebol são momentos importantes para a consolidação das relações intercomunitárias e também para a paquera. Como diz a norma de conduta, os anfitriões recebem seus convidados oferecendo uma grande quantidade de comida. No entanto, a dimensão destas reuniões não se compara ao ritual, onde todos fazem o possível para estar presentes. Nos campeonatos, os mais interessados são normalmente os jovens e as jovens.
Em Lábrea, onde há um campo de futebol de salão aberto ao público, na praça central da cidade, estes mesmos jovens ficam assistindo a todos os jogos até o fechamento da quadra, e às vezes, quando sobra dinheiro, alugam o lugar para jogar entre si. Na aldeia, o vôlei substitui o futebol quando acontece algum problema técnico, geralmente relacionado à bola. Para os jogos de vôlei, ao contrário do futebol, formam-se equipes mistas e o ambiente é descontraído.
Atualmente, os Jarawara praticam dois jogos tradicionais: a peteca e o kakaro. A peteca é feita com a folha do milho da qual leva o nome tatao. Os jovens contam que nos jogos de peteca mais sérios, provavelmente entre aldeias diferentes, todos os homens têm flechinhas no bolso, e quando alguém erra o alvo, os outros lançam suas flechas nesta pessoa, que deve desviar seu corpo habilmente para não ser ferida. Eles afirmam que este é um jogo importante, “o pessoal fica nervoso, bravo”. Já o segundo jogo tradicional, o kakaro, é uma brincadeira só de homens que consiste em flechar uma bola feita de palha ou outro material. Aquele que vence ganha a importante reputação de ser um bom flecheiro.
No mundo dos brancos
O contato com os “brancos” data de mais de cem anos, e o trabalho nos seringais para os patrões regionais extinguiu-se por completo a não mais de quarenta anos. Da população atual, todos os indivíduos adultos conheceram a exploração do sistema de aviamento, no qual os brancos ofereciam as mercadorias em adiantamento, e, em seguida, os índios passavam meses nos seringais para quitar suas dívidas, sempre controladas pelos primeiros. Nesta época, os movimentos e mudanças de aldeias estavam, entre outros fatores, ligados aos lugares de extração e às ordens dos patrões. Os homens construíam casas precárias no meio da floresta, chamadas regionalmente de “centros”, e lá passavam semanas trabalhando, enquanto suas mulheres e filhos esperavam nas aldeias, relativamente próximas às residências dos patrões.
Desse tempo ficaram os rancores e a desconfiança dos Jarawara com relação aos brancos. Hoje eles afirmam que os jovens devem aprender português e matemática para nunca mais ser explorados. De fato, praticamente todos os jovens e crianças, apesar de nem sempre falarem português, são alfabetizados na língua jarawara pelos professores indígenas e sabem pelo menos somar e subtrair. Isto não impede que ainda sejam iludidos por alguns comerciantes, mas, na maioria das vezes, são respeitados, sobretudo no que diz respeito às despesas mais importantes, como a compra de motores de barco, de bicicletas, etc., sempre efetuadas pelo intermédio dos poucos homens que falam com fluência o português.
As compras acontecem na cidade de Lábrea, que eles visitam no início de todo mês, quando os professores e agentes de indígenas de saúde (AIS) vão receber seus salários e quando é depositada a aposentadoria dos mais velhos pelo INSS. Nas idas à Lábrea, praticamente a comunidade inteira se desloca para cidade, ficando na Terra Indígena apenas algumas pessoas idosas e as mulheres solteiras com filhos pequenos. Trata-se de um momento importante para ver os parentes que moram em outras localidades e também para “passear” e não trabalhar. Mas eles permanecem em Lábrea apenas enquanto tem dinheiro, o que raramente ultrapassa três dias. Nestas breves passagens pela cidade, eles se abastecem dos produtos industrializados indispensáveis, como sabonete, pilha, detergente, fósforo, café, sal e açúcar, e ficam a maior parte do tempo entre sí, conversando apenas com os poucos comerciantes que conhecem ou com os funcionários da Funasa, Funai, Opimp (Organização dos Povos Indígenas do Médio Purus) e Opan (Operação Amazônia Nativa). No entanto, diversos homens apreciam bastante a cachaça e as bebedeiras não são raras. Uma vez bêbados, eles se tornam alvo de pequenos roubos, tanto pelos delinqüentes locais como pelos comerciantes dos bares. Alguns homens freqüentam os prostíbulos localizados na beira do rio. Estes “desvios de conduta” não passam despercebidos pelo resto da comunidade Jarawara, sobretudo quando resultam em violência conjugal. Os comentários e fofocas a respeito de todos aqueles que bebem ou não voltam cedo para casa com suas esposas se espalham rapidamente, e os “culpados” são prontamente reprimidos por todos.
Os Jarawara possuem mais de quatro casas na cidade que pertencem àqueles que as compraram (ou ganharam, como é o caso do cacique da aldeia Casa Nova), mas que abrigam todos os membros da aldeia em que seu dono mora quando estes chegam para suas visitas mensais. Estas residências permanecem fechadas quando eles estão na Terra Indígena, e são freqüentemente arrombadas e assaltadas. Quando se trata de objetos importantes, os Jarawara encontram os ladrões com a ajuda dos vizinhos e vão pessoalmente ameaçá-los com frases do tipo “eu sou índio bravo mesmo, como o meu pai, se você roubar aqui de novo, eu vou te matar”, que surtem um efeito momentâneo, pois os habitantes da cidade mantêm, sobre os Jarawara, uma imagem de índios violentos e sanguinários, devido a acontecimentos ocorridos na região no ínicio e na metade do século XX, e que se tornaram lendas locais.
Da mesma forma, a Terra Indígena onde vivem é constantemente invadida por pescadores e madeireiros. É bastante comum os homens, ao voltarem da caça ou da pesca, dizerem que viram estranhos. Isto é motivo de grande revolta para os Jarawara, que fazem reuniões regulares nas quais visam discutir o que deve ser feito para acabar definitivamente com a entrada de não-índios em suas terras. Todas as reclamações e interações entre eles e as instituições governamentais e as organizações não-governamentais são dirigidas por três indivíduos: o cacique da aldeia, o professor indígena e o agente indígena de saúde (AIS), que são os representates dos Jarawara no mundo dos brancos.
Nota sobre as fontes
As informações presentes neste verbete são inéditas e vêm do estudo de campo realizado por Fabiana Maizza, doutoranda pela USP, que elabora neste momento uma primeira monografia sobre a etnia, até então não estudada em nenhuma pesquisa etnográfica sistemática. As fontes de referência sobre os Jarawara são poucas, em ordem cronológica retroativa temos um relatório etnoecológico feito por Schröder (2002) e colaboradores, para um projeto da FUNAI em parceria com o PPTAL (Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal); a dissertação de mestrado em lingüística de Vencio (1996) a respeito das cartas Jarawara; o livro sobre as populações do médio Purus de Kröemer (1985) e o artigo de Prance (1978) sobre os narcóticos de algumas populações da família lingüística Arawá. Já os estudos da língua jarawara são inúmeros, desenvolvidos por Alan Vogel, da Sociedade Internacional de Lingüística, e por Robert M. W. Dixon. Há também alguns relatos históricos sobre o rio Purus, que datam do fim do Século XIX e início do XX, que não mencionam diretamente a etnia, mas são preciosos para todos aqueles que se interessam à região.
Fontes de informação
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