De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Heiner Heine, 1986

Kulina

Autodenominação
Madiha
Onde estão Quantos são
AM 7211 (Siasi/Sesai, 2014)
Peru 417 (INEI, 2007)
Família linguística
Arawá
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Vivendo nas margens dos rios Juruá e Purus, os Kulina destacam-se pelo vigor com que mantêm suas instituições culturais, entre elas a música e o xamanismo. Um exemplo disso é que, apesar do antigo contato com brancos e da proximidade de algumas aldeias com centros urbanos, não se tem conhecimento de nenhum Kulina vivendo fora de suas terras.

Nome e língua

Foto: Heine Herner, 1986
Foto: Heine Herner, 1986

Os Kulina são pertencentes à família lingüística Arawá e, até a chegada dos brancos, foram um dos grupos mais numerosos no estado do Acre e sul do Amazonas. Sua autodenominação é madija (pronuncia-se madirrá) que significa "os que são gente", sendo os brancos tratados genericamente por cariás.

Os madija falam predominantemente a língua Kulina nas aldeias, inclusive as crianças, sendo quase todos os (raros) bilíngües do sexo masculino e mais velhos. Geralmente, são os que trabalharam na juventude para os patrões brancos nos seringais e na extração de madeira que têm mais conhecimento da língua portuguesa, embora nas aldeias próximas às cidades a necessidade de estabelecer relações com a sociedade envolvente esteja mudando essa realidade. Muitos jovens vêm preparando-se para atuar como professores indígenas, agentes agro-florestais e agentes de saúde, sobretudo a partir de 1970, com a implantação em Rio Branco do escritório da Funai e da atuação de organizações como a CPI (Comissão Pró-Índio) e o CIMI (Centro Indigenista Missionário).

O estilo lingüístico feminino é marcadamente diferente do masculino: há oclusão de vogais, condensação de palavras inteiras, às vezes criando situações em que a simples tradução de um trecho de quatro ou cinco palavras torna-se tarefa complicada. Apenas os Madija entendem o que suas mulheres falam e, como há neologismos que variam de aldeia para aldeia, essa compreensão às vezes restringe-se ao próprio grupo local.

Foto: Heine Herner, 1986.
Foto: Heine Herner, 1986.

Alguns dos poucos falantes brancos da língua Kulina por mim consultados sobre o canto feminino, como os Luteranos e membros do CIMI, foram enfáticos em afirmar sua dificuldade de compreender, senão o significado, muitas vezes a própria palavra dita, reiterando a possibilidade da existência de um universo lingüístico feminino peculiar. Elas praticam uma técnica particular no canto que consiste em, quando há um final de frase, pronunciar a ultima sílaba inspirando ar. Isso pode ser claramente observado no acento dado à conclusão das frases, características que eu apenas percebi no canto feminino e na sua duração. Tive a impressão de que cantavam ciclicamente, aspirando ar no final da frase para ganhar um pouco mais de fôlego.

Localização e população

Foto: Domingos Silva, 1999
Foto: Domingos Silva, 1999

Grande parte da população kulina encontra-se na fronteira do Brasil com o Peru. No Brasil vivem em aldeias às margens dos rios Juruá e Purus (Acre) e, em 2002, somavam em torno de 2.500 indivíduos  segundo a OPAN (Ong Operação Amazônia Nativa). Já os Kulina do lado peruano somavam aproximadamente 500 pessoas em 1998 (SIL - Summer Institute of Linguistics).

Vivem em várias Terras Indígenas que compartilham com outros povos, como os Kaxinawa, Yaminawá e Ashaninka. Para mais informações sobre as terras kulina veja ao lado em "Terras habitadas".

Segundo dados da Funai obtidos em 2002, os Kulina do Acre totalizavam 1.737 indivíduos, distribuídos em 15 aldeias, sendo Canamari a de maior densidade, com 680 pessoas. No sul do Amazonas eram em torno de 800, distribuídos em 19 aldeias.

Histórico do contato

Os Kulina de Naronawa pediram que os fotografasse como se estivessem escrevendo. A falta de escolas (os missionários foram expulsos pela FUNAI em 77) era um dos maiores problemas kulina na época. Foto: Eduardo viveiros de Castro,1978.
Os Kulina de Naronawa pediram que os fotografasse como se estivessem escrevendo. A falta de escolas (os missionários foram expulsos pela FUNAI em 77) era um dos maiores problemas kulina na época. Foto: Eduardo viveiros de Castro,1978.

Existe pouca informação histórica acerca desse grupo, principalmente no período que antecede ao final do século XIX. Até aquele momento os pioneiros na penetração dessa região eram basicamente coletores de drogas e eventuais caçadores que não tinham interesse ou recursos para realizar registros.

Como grandes afluentes do Amazonas, o Juruá e o Purus permitem navegação boa parte do ano, principalmente em seu baixo e médio curso. Os primeiros viajantes que os percorreram tiveram suas impressões limitadas à percepção que uma viagem de barco num rio oferece, principalmente da várzea. Para além dela viviam não só os Kulina, mas outros povos centrados no interior da floresta, que naqueles tempos raramente eram vistos.  

Kulina do Posto Indígena Rio Gregório. Foto: Acervo Museu do Índio, 1928.
Kulina do Posto Indígena Rio Gregório. Foto: Acervo Museu do Índio, 1928.

Essas primeiras expedições de coletores das "drogas do sertão" exploravam os índios por meio de relações comerciais em que recebiam dos nativos tartarugas, especiarias, óleos vegetais, madeiras de lei e sementes de cacau, dando em troca ferramentas, roupas, anzóis e outros produtos industrializados.

Em 1837, o inglês W. Chandless, para o Journal of the Royal Geographical Society produziu um relatório detalhado sobre a região, em que pela primeira vez aparecem referências a vários povos, entre eles os Kulina, também chamados corinos e kulinos. 

Extraindo látex. Foto: Heine Herner, 1986.
Extraindo látex. Foto: Heine Herner, 1986.

Os primeiros contatos regulares dos Kulina com os cariás deram-se com os seringueiros no ciclo da borracha do final do século XIX, quando então viviam no interior da floresta. Em função das sangrentas "correrias", assim chamadas as violentas incursões promovidas por seringueiros brasileiros e caucheiros peruanos, eles fugiram em direção às cabeceiras dos rios da região. Houve um duplo deslocamento provocado pela direção que caucheiros e seringueiros tomavam, não apenas dos Kulina como também de outras etnias em direção as cabeceiras dos rios em elas habitavam. Os primeiros vinham do Peru para a Amazônia e os segundos subiam os rios amazônicos em direção a Bolívia e ao Peru, no caso dos Kulina principalmente no Alto Purus e Juruá.

As dificuldades para o escoamento da produção em razão do difícil acesso prejudicaram a constituição de seringais nos trechos mais acidentados dos rios, principalmente quando a água fica mais rasa, criando condições para que os Kulina e outras etnias vivessem por algum tempo com menor interferência não indígena.

Após a implantação dos seringais evidencia-se a necessidade de mão-de-obra para alimentar a dinâmica do barracão: o perverso sistema de aviamento que permitia ao seringalista manter o seringueiro preso a dívidas impagáveis, contraídas para seu sustento, que seriam pagas com sua produção de borracha.

Kulina e Kaxinawá se reuniram em setembro de 1984 para demarcar a sua terra. Este é um dos grupos que foi para a mata abrir a picada. Foto: Walter Sass, 1984.
Kulina e Kaxinawá se reuniram em setembro de 1984 para demarcar a sua terra. Este é um dos grupos que foi para a mata abrir a picada. Foto: Walter Sass, 1984.

A promessa de riqueza fácil e abundante proporcionada pelo sonho da borracha estimulou a migração para essa área de nordestinos. Também se intensificam em todas as áreas as "correrias" que agora objetivavam a captura dos índios para o trabalho nos seringais. Com o passar do tempo, a própria necessidade de utensílios domésticos, armas, tecidos e as facilidades de contato nos barracões à beira dos rios termina por aproximar os Kulina e outras etnias na região dos brancos.

O Jupaú Samuel, mateiro, que indicou o caminho para a abertura da picada. Ao seu lado, com a arma na mão, Biari. Foto: Roberto Zwetsch, 1984.
O Jupaú Samuel, mateiro, que indicou o caminho para a abertura da picada. Ao seu lado, com a arma na mão, Biari. Foto: Roberto Zwetsch, 1984.

Apenas em 1984, aliados aos Kaxinawa, realizaram a auto-demarcação da Terra Indígena Alto Purus, que foi seguida de sua interdição pela FUNAI em 31/07/1987 para estudo e definição, sendo a demarcação oficial da datada de 05 de Janeiro de 1996. Os Kulina, historicamente, assim como outras etnias, sobreviveram entre grupos hostis, fazendo da guerra a seus inimigos uma constante, mantendo ainda hoje relações jocosas com grupos da região, inclusive com seus vizinhos Kaxinawa, tratando-se essa aliança temporária uma estratégia diplomática pontual e necessária com o antigo rival.

Embora a situação jurídica de suas terras esteja regularizada, a pressão social provocada pela interação com fazendeiros e vizinhos, pelo confronto com caçadores e pescadores, além das freqüentes invasões de sua área para a extração ilegal de madeira, demandam atenção permanente e estratégias preventivas no sentido de minimizar os impactos que essas interações causam e poderão causar.

Organização social

Maloca no Posto Indígena Rio Gregório. Foto: Acervo Museu do Índio, 1928.
Maloca no Posto Indígena Rio Gregório. Foto: Acervo Museu do Índio, 1928.

No passado os Kulina viviam em grandes malocas de palha, possuindo duas aberturas situadas uma a leste e outra a oeste, que abrigavam grandes famílias. Atualmente vivem em casas construídas sobre pilotis, nos moldes regionais das habitações dos seringueiros amazônicos. Seu assoalho é de paxiúba, variando entre um e dois metros sua distância em relação ao solo. O telhado é coberto com folhas de jarina - uma espécie de coqueiro local -, inclinando-se em duas águas, num ângulo de aproximadamente 45 graus.  

Casa na aldeia kulina de Santo Amaro, na nascente do rio Chaudess. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1978.
Casa na aldeia kulina de Santo Amaro, na nascente do rio Chaudess. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1978.

Nas casas normalmente existe um compartimento reservado, utilizado para guardar objetos de uso pessoal, tais como armas, e onde também fica a maior parte das redes de dormir. A área destinada ao processamento de alimentos fica situada na parte posterior da casa ligada à parte principal por uma passagem suspensa de paxiúba, em oposição à entrada, onde ficam as escadas. Há uma área livre ao lado do compartimento fechado, em frente à cozinha, na qual alimentam-se e também onde conversam e recebem visitas.

As habitações atuais abrigam cerca de no máximo 20 pessoas, reunidas em torno de um patriarca que convive com os seus netos e genros. Essa situação perdura até que estes últimos construam suas próprias casas e plantem seus roçados, o que normalmente acontece após o casal já ter filhos.

As relações de parentesco, os grupos de descendência (o sib) e os mecanismos de reciprocidade interagem como uma rede de comunicações, de forma que as várias esferas do social estão relacionadas por um denominador comum: é o manaco (o sistema de reciprocidade Kulina, também traduzido como troca) que orienta, senão define, as opções matrimoniais e as alianças políticas.

Fabricação de cesto com folha de palmeira. Foto: Heine Heiner, 1986.
Fabricação de cesto com folha de palmeira. Foto: Heine Heiner, 1986.

Nos termos desse sistema, todos os homens e mulheres foram criados pelos heróis mitológicos Tamaco e Quira, inclusive os brancos , mas somente os Kulina são gente: Madija. Dentre essas gentes madija, pode-se citar os Madija ssaco ("gente da traíra"), Madija ccorobo ("gente do peixe jejum"), entre outros, totalizando em torno de 76 tipos conhecidos de Madija, sendo que cada epônimo caracteriza os membros do grupo de descendência a ele associados. Os Madija ssaco, por exemplo, são considerados introspectivos, como acredita-se que seja o comportamento ssaco.

Neste sentido, não somente o social atribui às diferentes gentes características do seu animal ou planta identificado, como também as gentes assim se acreditam. Para a tematização paradigmática dessa forma de classificação totêmica, as diferenças entre uma série natural (animal e ou vegetal) são atribuídas e constituem as diferenças da série cultural.

São os primos cruzados bilaterais os preferidos para o casamento, normalmente de um sib aliado, ou seja, que não tenha caso de conflito por motivo de dori ("feitiço"). Há, inclusive, uma expressão kulina para os primos cruzados, ohuini, que significa "aquele que é prometido".

Abaixo, um esquema dos casamentos preferenciais no parentesco kulina:

Esquema dos casamentos preferenciais no parentesco kulina
Esquema dos casamentos preferenciais no parentesco kulina


Ritual da Coidsa ( bebida fermentada da macaxeira). Foto: Walter Sass, 1984.
Ritual da Coidsa ( bebida fermentada da macaxeira). Foto: Walter Sass, 1984.

No casamento kulina há uma série de regras que ambos os sexos devem cumprir. O marido deve obrigações ao sogro, em retribuição à concessão da esposa, e recebe em manaco (troca; retribuição) obrigações dos seus cunhados por cuidar da irmã. Estas dizem respeito principalmente aos trabalhos coletivos, como a derrubada da mata para a roça e a construção de casas e canoas. À mulher ele deve oferecer dádivas e presentes em troca dos seus favores, necessidade que se expressa inclusive publicamente, como por exemplo no ritual da Coidsa, em que os homens retornam da floresta trazendo alimentos que entregam publicamente às suas esposas.

Meninas kulina na aldeia de Envira. Foto: Terri Vale de Aquino, 1982.
Meninas kulina na aldeia de Envira. Foto: Terri Vale de Aquino, 1982.

Normalmente, a vida das meninas começa muito cedo, com 3 ou 4 anos, a parecer-se com a das respectivas mães. Apesar de não terem compromissos na primeira infância, logo são incentivadas a fazer um pequeno fogo e brincar de cozinhar com pequenas panelas de barro confeccionadas pelas mães. As mães também lhes fazem pequenos cestos de buriti, reproduções dos cestos que as mulheres mais velhas usam para buscar macaxeira nas roças, com os quais elas as acompanham e brincam de trabalhar.

Normalmente, mulheres mais velhas, mães, filhas menores, cunhadas e irmãs vão juntas à roça, banham-se juntas, cuidam dos irmãos menores, cozinham, enfim, participam de um universo social feminino em que o momento de casar-se é apenas mais uma etapa de algo que começa muito cedo e termina apenas com a morte.

Cosmologia e cosmografia

A cosmologia Kulina encontra em sua cosmografia um delimitador espacial para os seres, espíritos animais e plantas. Trata-se resumidamente de sua concepção visual do céu, da terra e dos lugares que homens e animais nela ocupam de um ponto de vista geocêntrico. Essa cosmografia supõe a existência de camadas e, nelas, locais. As camadas basicamente seriam meme ("céu"), nami ("terra") e nami budi ("embaixo da terra"). Há também dsamarini ("o lugar da água") e outras duas distinções do céu que são pouco citadas.

Crianças, homens, velhos e mortos ocupam lugares distintos nessa cosmografia e no sistema de reciprocidade, sendo as categorias etárias nativas organizadas segundo o esquema abaixo:

Crianças nono: recém-nascido; não gente ejedeni:- criança; gente

Jovens dsabisso/dsohuato: (rapaz/moça) adolescente; até o casamento maqquideje dsabisso (homem rapaz) e amoneje dsohuato (mulher moça): jovens casados e sem filhos

Adultos maqquideje/ amoneje: homem/mulher casados, com filhos, casa e roça jadahi/ jadani: velho/velha Morto: não gente

Os homens, bichos e plantas vivem em nami ("terra"), enquanto que os espíritos ocupam o mundo subterrâneo, nami budi. Os bichos e animais de caça também vivem em nami budi, subindo à terra para serem caçados pelos homens. O pajé, quando bebe rami ("ayahuasca") ou através de seus sonhos, entra em contato com o mundo de nami budi, visitando as grandes aldeias subterrâneas onde vivem os espíritos ou trazendo os animais para a superfície, próximos da aldeia. Para tanto, ele se transforma em animal também, sendo que os próprios animais de nami budi são espíritos metamorfoseados.

Utilizo o termo transformação para indicar o processo de modificação do animal em pessoa, e metamorfose como o processo de modificação do espírito em animal, não em oposição um ao outro. Esse ciclo de transformações está na base de um sistema de oposições, operando numa cosmovisão que pode ser sintetizada da seguinte maneira:


Segundo o ciclo, o ser não domesticado, o nono, representado pela floresta (natureza, masculino), é domesticado através da ingestão de alimentos produzidos nas roças, pelas substâncias femininas (leite materno e saliva), pela aprendizagem e compreensão dos mitos e música, até tornar-se o mais próximo possível de um ser totalmente sociável.

Foto: Heiner Heine, 1986
Foto: Heiner Heine, 1986

Após a vida adulta, este ser sociável - maqquideje ou jadahi, tem duas formas para voltar à natureza, sua origem: após a morte, quando o seu espírito irá vai até nami budi, para as aldeias de seus dos antepassados, ou transformando-se em animal de caça, ou através da metamorfose do xamã em animais selvagens (normalmente o queixada).

O xamã, auxiliado pelo seu tokorimé (espírito, duplo, imagem, normalmente o queixada), vai a nami budi, o local dos mortos e, por identificar seu tokorimé animal com o dos outros espíritos de mortos metamorfoseados em queixadas, consegue trazê-los à superfície, próximos à aldeia, para então serem onde serão, por indicação do xamã, caçados e posteriormente devorados.

No final do ciclo de transformações os espíritos são caçados e comidos pelos vivos, o que sugere um tipo de endocanibalismo, necessário para fazer com que o espírito do morto seja incorporado novamente ao sistema de reciprocidade, por ele abruptamente abandonado ao morrer. Durante esse ciclo, o corpo físico/selvagem dirige-se em direção à aldeia, mundo da sociabilidade. De outra parte, o corpo espiritual/domesticado dirige-se à floresta, mundo selvagem, ainda não domesticado. Há uma relação entre o corpo físico e o mundo social, assim como do corpo espiritual com o mundo da natureza, onde o mundo da sociabilidade é o dos vivos, enquanto que o mundo da floresta selvagem está relacionado aos espíritos: os mortos. Assim sendo, esse corpo espiritual/domesticado, no seu mais alto grau, dirige-se ao mundo da natureza e retorna como corpo físico/selvagem, através de práticas xamânicas ou da morte - as transformações de um e outro encontrando nos respectivos extremos seu lugar para acontecer.

Em síntese, os elementos do sistema cosmológico são: homens que vivem em cima da terra e bichos que vivem embaixo da terra. A relação entre homens e bichos se dá através da alimentação, na forma de carne de caça, ou através do xamã, que os traz do mundo subterrâneo para a superfície, neles transformando-se.

Observando as habitações madija, percebe-se na sua parte posterior essa distinção relacional. Humanos vivem sobre o assoalho de paxiúba, onde se come, dorme, refugia-se e é limpo. Animais vivem sob a casa, separados pelo assoalho, sendo a ligação entre eles de reciprocidade. Nessas habitações, que seguem o padrão ribeirinho, processa-se o alimento na parte posterior, sendo que todos os resíduos - sólidos ou líquidos - atravessam o assoalho chegando até os porcos e outros animais que lá habitam. Como os porcos e os outros animais transformar-se-ão em alimento, se estabelece uma forma equilibrada de reciprocidade, que, a despeito de ter uma disposição espacial importada do padrão regional, respalda-se em categorias nativas de troca.

Xamanismo

Para os Kulina a doença é basicamente causada por dori ("feitiço"), que se manifesta na forma de um objeto que entra no corpo da vítima através de inserção mágica, podendo ser uma pequena pedra, um pedaço de pau ou osso, que causará muita dor no corpo do doente. Embora reconheçam hoje em dia que há doenças que não são dori - as doenças de branco, dsama coma, literalmente "terra doente" -, seu sistema de crenças invariavelmente as atribuem ao dori que, se não as provoca diretamente, atua no sentido de predispor o outro a adoecer.

Quem lança o dori é sempre o dsopinejé ("xamã"), que jamais age contra alguém de seu próprio sib. Dessa forma, ou há um xamã de um sib rival na aldeia ou ela veio de fora, de madija ou não. Muitos conflitos aconteceram, e ainda acontecem, por conta disso na forma do Manaco negativo (vingança) entre Kulina de localidades diferentes ou outras tribos.

As explicações higienistas de que muitas das doenças nos chegam através das fezes de humanos e animais (como os porcos), na forma de um microorganismo, não encontra ressonância nas categorias nativas, dificultando a ação de agentes de saúde. Por exemplo, no domínio simbólico os porcos, assemelhados aos queixada (jidsama, que pode ser o porco doméstico ou o do mato), cumprem um papel especial nos mitos (ciclo de transformações), ritos (a coidsa: festa da caiçuma, onde homens e mulheres alternadamente apresentam-se coreograficamente uns aos outros como jidsamas e se oferecem caiçuma para beber) e na dieta alimentar kulina.

Os porcos também são freqüentemente incorporados pelo xamã como um animal de poder: um tokorimé ("espírito"). No plano físico são identificados como exemplares da própria vida social dos Kulina, por serem domesticáveis e agirem comunitariamente.

A Música no Xamanismo

A categoria de música ritualística chama-se ajie (arrié), que pode ser traduzido por música lendária. Muitos ajie são antigos e de cunho xamanístico, e normalmente são usados em sessões de cura para extrair o feitiço ("dori") do corpo do doente, conforme procedimentos similares descritos em outras etnias.

Segundo os kulina, nessas sessões ocorre uma inserção no corpo do doente, das canções de cura que são cantadas pelo xamã e pelas mulheres, em grupo, acompanhadas de defumações de tabaco, resultando às vezes, após noites de trabalho, na remoção de um pequeno objeto, normalmente uma pequena pedra ou uma espinha de peixe que se encontrava dentro do corpo do doente e causava a doença. Esse objeto teria sido jogado, como um dardo, por um xamã de outro sib ou de outra etnia.

Como um domínio masculino, os cantos xamânicos -de ajie- e os cantos de rami jinede -os mariri rami- são criados apenas por homens, xamãs a maior parte das vezes ou pretendentes a sê-lo. Durante o mariri rami há um mestre cantor especialista, aquele que sabe e canta as estrofes que são repetidas pelos outros participantes da cerimônia, mais ou menos uma hora após a ingestão da infusão de ayahuasca. Já nos rituais xamanísticos, toccorimecca ajie ("cantos do espírito"), há a participação ativa das mulheres, que cantam para domesticar o dori selvagem do corpo do doente, canções essas que são ensinadas e ensaiadas pelo xamã para esse fim.

Está implícita na idéia de atirar um dori em alguém a noção de que, apesar de se tratar de um objeto independente, ele carrega as características de quem o atirou. São os cantos que irão proporcionar a cura, através da domesticação desse dori, primeiro através dos tokorime (espíritos que os controlam), seguidos das canções que ensinam ao elemento estranho, causador do desequilíbrio, a harmonizar-se no novo sistema de reciprocidades e dele passar a fazer parte.

Essa dualidade em relação ao dori encaixa-se no dualismo do ciclo de transformações de natureza e cultura, onde realizar a cura passa pela transformação da doença, que é dori de natureza selvagem, através da canção, numa espécie de ressocialização do dori.

O xamã precisa possuir conhecimento e controle sobre suas duas polaridades: a selvagem e a domesticada. É com o dori selvagem que ele poderá causar doenças, pois xamãs também são, noutro plano, guerreiros, e em caso de rivalidades ou da necessidade de praticar Manaco negativo usam seu poder para enviar ou devolver o dori ao inimigo. Como o próprio xamã possui dentro de si o dori, é apenas sua extrapolação dos limites da sociabilidade que o transforma em desequilíbrio e doença: apenas para quem lhe é estranho atua causando doença.

Ainda como elementos de comparação, estão certas atitudes em relação ao dori. O ato de mandá-lo a alguém (ou para uma aldeia) é individual e masculino, pois é o xamã quem solitariamente envia o dori. Os xamãs são na sua quase totalidade homens, no entanto o ato de curar e transformar é coletivo, e basicamente feminino, pois embora seja o xamã quem dirija o ritual, ele é composto por muitas mulheres em grupo, cantando junto ao doente. Sem elas, a cura não acontece. Nesse sentido, a doença é criada por um único indivíduo, representando a natureza exterior, distante daquele que a recebe (a floresta, a tribo distante, o inimigo desconhecido, de fora do seu próprio sistema de reciprocidade), e a saúde pelo coletivo, pela cultura.

Música e cotidiano

Além dos rituais xamânicos, a musicalidade kulina se expressa na forma como o cotidiano é musicalmente representado, seja vocal ou instrumentalmente, nos longos dias do Alto Purus. Ouvem-se mulheres cantando para os filhos ao cozinhar, ao tecer o algodão na roça para tramar suas redes, homens e mulheres tocando suas flautas, cantos de ajie ao anoitecer e os particulares sons do arco musical: o jijiti.

Como a maior parte das canções tem estruturas rítmico-melódicas mais ou menos regulares, é comum ouvir duas ou mais intérpretes cantando o mesmo tema em casas diferentes e em tempos diferentes. Essa musicalidade diária se expressa principalmente através das mulheres; homens raramente cantam no cotidiano. Não que haja restrição ao fato dos homens cantarem. Parece, sim, que há uma divisão de atitudes e papéis que tem a ver com o significado da música para os Kulina. Os homens tocam suas flautas, principalmente os mais jovens, para enviar mensagens amorosas às suas pretendentes, estabelecendo ligações sociais específicas, pois todo o grupo sabe quem executa, o que é e para quem são os sons, de alguma maneira coletivizando a expectativa amorosa.

Formadora e mediadora de sentidos na sociedade madija, a música age como portadora ideal de significados. Quando tocam seus instrumentos, como as flautas totoré e boboreré, assim como o arco musical jijití, as melodias e ritmos guardam semelhanças com as canções. Conhecidas por todos, funcionam independentes das palavras, não podendo dessa forma ser tratadas como molduras, como formas aguardando conteúdo.A música age como um fio condutor labiríntico, que simboliza a necessidade de tradução do contínuo, no qual o mundo dos espíritos, mítico e da natureza sensível formam um todo.

Cultura material e jogos

Mulher kulina com algodão que ela processou. Foto: Domingos Silva, 1999.
Mulher kulina com algodão que ela processou. Foto: Domingos Silva, 1999.

Os Kulina dominam as técnicas de cultivo e processamento do algodão, dele produzindo suas roupas, tingidas com urucum, bem como suas redes, bolsas e cintos, os quais comercializam esporadicamente nas cidades ou por meio dos múltiplos agentes que eventualmente freqüentam suas aldeias.

Como seus vizinhos Kaxinawa produzem colares com dentes de animais, sementes e valorizam sobremaneira as pedras, por vezes até lhes atribuindo propriedades mágicas. Utilizam-se bastante das várias espécies de palmeira para adornos rituais, assim como chapéus de faixas de palmeira, saias e faixas corporais. Também são famosos pelos trabalhos em madeira maciça, tais como bancos em forma de animais como jacarés, antas e onças, além de pequenos bonecos esculpidos e barcos.

Cada aldeia tem um campo de futebol e são freqüentes os torneios entre aldeias que provocam deslocamento de dias de viagem, com jogos que duram horas e horas e que costumam terminar empatados.

Manejando folhas de palmeira para confecção de cestos. Foto: Heiner Heine, 1986.
Manejando folhas de palmeira para confecção de cestos. Foto: Heiner Heine, 1986.

As mulheres Kulina são famosas pela sua culinária que, embora de cardápio relativamente simples e repetitivo, produz pratos deliciosos, tais como os peixes moqueados, cozidos, as sopas de tatu, carne de porco cozida com ervas, mingau feito com água e banana defumada (bare pahani), entre outras delícias herdadas de gerações.

Nota sobre as fontes

Foto: Domingos Silva, 1999.
Foto: Domingos Silva, 1999.

As primeiras referências bibliográficas sobre os Kulina aparecem em Chandlles (1866) geógrafo da Royal Geographical Society, que navegou pela bacia do Juruá / Purús. Afora os ocasionais relatórios de viajantes é apenas com Patsy Adams (1962, 1964) que surgem as primeiras informações sobre essa etnia. Adams estuda a música kulina e seu trabalho é valioso no sentido de fornecer pistas sobre sua excepcional capacidade de resistência cultural.

Em 1978 temos os relatórios de Anthony Seeger e Arno Vogel sobre algumas tribos do Acre além do de Eduardo Viveiros de Castro para a FUNAI, do mesmo período, fornecendo já algumas informações sobre o sib, problemas de contato e situação fundiária.

Em 1984 temos a compilação e edição do valioso Dicionário “Kulina-Português e Português-Kulina” de Abel O. Silva e Ruth M. F. Monserrat.

Nas décadas de 1980 e 1990 ocorre um incremento da produção antropológica sobre os Kulina, além das contribuições dos luteranos que trabalham mais diretamente com essa etnia, entre eles os de Lori Altmann (1982, 1990, 2000) e Roberto Zwetsh (1993). Entre os antropólogos incluem-se os trabalhos de Donald Pollock (1985,1992) sobre xamanismo; a coletânea Acre: História e Etnologia do Núcleo de Etnologia Indígena (1991, org. Marco A. Gonçalves); o trabalho da antropóloga canadense Claire Lorrain (1994) sobre gênero, além dos de Domingos Silva (1997, 1998, 1999, 2001) sobre música, xamanismo e construção da pessoa.

Fontes de informação

  • ADAMS, Patsy. La música culina. Peru Indígena, Lima, n.24/25, 1964.
  • --------. Textos Culina. Folklore Americano, Lima, v.10, n.10, 1962.
  • ALTMANN, Lori. O caso da doença de Queri. Outra Visão, s.l. : s.ed., v.2, n.4, 1985.
  • --------. Convivência e solidariedade : uma experiência pastoral entre os Kulina (Madija). São Leopoldo : Comin ; GTME, 1991. 53 p.
  • --------. Evangelização e povos indígenas. São Leopoldo : IECLB/Fac. de Teologia, 1982. (Trabalho de Conclusão do Curso de Teologia).
  • --------. Maittaccadsama : categorias de espaço e tempo como referenciais para a construção da identidade Kulima (Nadija). Porto Alegre : UFRGS, 2000. (Dissertação de Mestrado)
  • >BATISTA, Ana Cristina Borges. Kulina. In: GONÇALVES, Marco Antônio Teixeira (Org.). Acre : história e etnologia. Rio de Janeiro : Núcleo de Etnologia Indígena/UFRJ, 1991. p. 145-76.
  • CHANDLESS, W. Ascent of the river Purus. Journal of the Royal Geographical Society, Londres, v.36, 1866.
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