De Povos Indígenas no Brasil
Foto:

Xakriabá

Autodenominação
Onde estão Quantos são
MG 8867 (Siasi/Sesai, 2014)
Família linguística
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Um dos poucos grupos indígenas que habitam o estado de Minas Gerais, os Xakriabá sobreviveram ao intenso contato com os bandeirantes e depois com as frentes pecuaristas e garimpeiras. Tiveram seu território ocupado por fazendeiros e hoje lutam para ampliar suas terras demarcadas e recuperar parte dele. Também estão vivendo um processo de valorização cultural, buscando identificar e registrar itens e aspectos de sua cultura de modo a proteger esse patrimônio

Localização e ambiente

Aldeia do Mata Fome. São João das Missões, MG. Foto: Clésio da Gama, 2012.
Aldeia do Mata Fome. São João das Missões, MG. Foto: Clésio da Gama, 2012.

As Terras Indígenas Xakriabá e Xakriabá Rancharia localizam-se no município de São João das Missões, no norte de Minas Gerais. A Terra Indígena Xakriabá foi homologada em 1987, e posteriormente, em 2003, foi acrescentada em área contínua a TI Xakriabá Rancharia.

O território localiza-se às margens do rio Itacarambi, onde existem pequenos rios temporários e alguns permanentes. O clima é quente durante todo o ano. A estação chuvosa compreende os meses de outubro a março. Porém, nos últimos anos, o índice de chuvas têm diminuído.

O solo é cheio de contrastes em toda a extensão do território. Em diversas áreas mais altas encontram-se maciços de calcário com cavernas. A vegetação predominante é o cerrado, com árvores de pequi, aroeira, juá, jurema, braúna, pau-d'arco, entre outras. A maior parte da vegetação é nativa, constituída por mata seca e a vereda. Tais áreas são usadas para caçadas e coleta de frutos, tais como cagaita, cabeça de negro, jabuticaba, maracujá, melão de São Caetano e xixá. Entre os animais, os mais comuns são veados, cutia, tatu, onça, coelho, raposa, tamanduá, gambá e seriema.

Alguns desses animais encontram-se em extinção dentro das TIs, devido à caça sem controle e fora de época. E, devido à agricultura e ao aumento da criação de gado, o desmatamento no território xakriabá também vem aumentando de modo preocupante.

História

Foto: Curt Nimuendaju, 1937
Foto: Curt Nimuendaju, 1937

No período pré-colonial, havia, possivelmente, outros povos na região de São João das Missões, às margens do rio São Francisco, onde nós, Xakriabá, estamos localizados hoje. Naquela época, nosso povo não tinha território definido e ocupava várias regiões no vale do Tocantins, Goiás e às margens do rio São Francisco.

No início do século XVIII, o maior responsável pela morte de índios Xakriabá foi o bandeirante Matias Cardoso de Almeida. Posteriormente, chegaram os missionários, que começaram a aldear para poder catequizar e assim ter domínio sobre nós.

Naquela época, um índio encontrou uma imagem de santo, que recebeu o nome de São João dos Índios. Os missionários jesuítas ficaram sabendo da imagem e resolveram levá-la para a igreja de Matias Cardoso, a qual os índios foram obrigados a construir. No dia seguinte, a imagem estava, novamente, no mesmo lugar onde foi encontrada, e assim ocorreu vários vezes.

Os missionários jesuítas, vendo que o santo não ficava na igreja de Matias Cardoso, acharam que era milagre e resolveram fazer uma capela na mesma localidade onde a imagem foi encontrada. Esse local é hoje uma igreja e a imagem continua no mesmo lugar em que foi encontrada naquela época. Hoje, a imagem possui o nome de São João, padroeiro da cidade cuja festa é comemorada no dia 25 de Junho. O local, posteriormente, foi denominado São João das Missões.

Antes da catequização dos índios, essa região era dividida em capitanias: Pernambuco, à margem esquerda do rio São Francisco, e à margem direita, a capitania da Bahia. Na época, os Xakriabá estavam localizados na capitania de Pernambuco, que acabou fazendo parte da missão jesuítica. Os Xakriabá foram aldeados para começar o processo de colonização, sendo obrigados a falar o português e a seguir a religião, costumes e crenças dos europeus.

Mulheres Xakriabá, aldeia Sapé, 1985
Mulheres Xakriabá, aldeia Sapé, 1985

Januário Cardoso de Almeida, filho de Matias Cardoso, doou um pedaço de terra para os Xakriabá, para que estes não se espalhassem e ficassem só trabalhando para ele. Os Xakriabá então registraram a terra em dois cartórios: o de Januária e o de Ouro Preto. Mas em 1850 foi criada a Lei de Terras, pela qual a terra Xakriabá se tornou devoluta, pertencendo ao governo.

Em 1927, ocorreu o primeiro grande conflito na região de Rancharia. Os fazendeiros fizeram uma cerca em torno do território Xakriabá, sendo que alguns índios foram obrigados a ajudar na construção dessa cerca: "Nós Xakriabá, revoltados com essa atitude, fizemos um mutirão e colocamos fogo na cerca, e alguns índios morreram nesse episódio. Demos o nome a essa cerca de 'curral de vara' ".

Em 1940, criou-se uma nova lei, pela qual o proprietário precisava ter registro de compra da terra. Os Xakriabá não possuíam esse documento devido ao fato de a terra ter sido doada. Então, a terra passou a ser devoluta novamente. Ao se organizar e correr atrás de providências para ter a posse da terra legalmente, a comunidade contribuiu com dinheiro para que as lideranças pudessem viajar para o Rio de Janeiro em busca de apoio, ajuda e informações que nos defendessem.

Lideranças importantes se destacaram, como Rosalino e Rodrigo, que denunciaram invasões no território Xakriabá. Em 1978, a Funai criou o Grupo Técnico (GT) para identificar a terra Xakriabá. Só depois de nove anos a Funai começou o processo de homologação do território. Nesse período, três lideranças indígenas foram assassinadas, entre elas Rosalino, por grileiros comandados por um fazendeiro.

"Depois disso, tivemos nossa terra demarcada, mas Rancharia ficou de fora e nosso povo não desistiu de lutar. A TI Xakriabá de Rancharia só foi demarcada em 2000, com muita luta e esforço dos mais velhos. Enfrentamos a revolta dos fazendeiros e conseguimos a demarcação da nossa terra. Mas a nossa luta não acaba aqui! Nosso território de direito não foi todo demarcado, temos uma grande parte que ainda está nas mãos dos não-índios."

Língua e sociedade

Identificados pelo Handbook of South American Indians como Jê, subdivisão Akwe, os Xakriabá também foram identificados pelo lingüista Aryon Dall'Igna Rodrigues como pertencentes ao tronco lingüístico Macro-Jê, família Jê, e a língua Xakriabá como um dialeto de falantes da língua akwen.

Como os demais Akwen – Xavante e Xerente –, os Xakriabá vivem em região de campo e tinham uma organização social complexa, articulada pela presença de metades clânicas. A posição destes clãs no ordenamento espacial da aldeia era calcada no quadrante solar. 

Aldeia do Mata Fome. São João das Missões, MG. Foto: Clésio da Gama, 2012.
Aldeia do Mata Fome. São João das Missões, MG. Foto: Clésio da Gama, 2012.

Os Xakriabá, grupo originalmente caçador e coletor, viram tornar-se inoperante o seu sistema produtivo com a fixação das frentes pecuárias no seu território. Ao serem aldeados, o primeiro efeito concreto foi a redução da extensão do seu antigo território, o que diminui as oportunidades de obtenção de alimentos e de outros produtos necessários à confecção de artefatos.

A presença de membros da sociedade nacional, alterando o ecossistema e competindo por alimentos, tornou impossível a sobrevivência do grupo nos moldes tradicionais de sua organização social e política. A necessidade de obtenção de formas alternativas de subsistência e a pressão da sociedade envolvente levaram o grupo a adotar a agricultura segundo o modelo regional como forma predominante de atividade econômica.

No entanto, os Xakriabá desconhecem o conceito de propriedade privada no que tange à posse da terra. Os critérios que adotam para definir o acesso à posse baseiam-se na maturidade do indivíduo, geralmente identificados a partir da efetiva constituição de uma família. O novo chefe de núcleo familiar tem o direito de optar por qualquer parte da terra para instalar sua roça e construir sua casa. Porém, parece haver uma tendência à matrilocalidade do novo casal, instalando-se, em geral, na aldeia dos pais da noiva e próximo à roça destes.

Os vínculos de solidariedade manifestam-se de forma mais clara entre os membros da família extensa e membros da mesma aldeia e, de forma mais esporádica, entre todos os Xakriabá. As formas mais comuns de trabalho coletivo na agricultura são a “união”, “ajuntamento”, mutirão e “adjutório”.

A “união” é hoje a forma predominante de trabalho coletivo. Consiste na preparação de roças comunais, geralmente pertencentes a membros de uma mesma família extensa ou da mesma aldeia. A separação entre as parcelas de roça, próprias de cada família nuclear, é uma pequena e simbólica cerca de feijão-andu. Os excedentes de cada parcela de roça familiar são trocados, internamente, entre os participantes da família ou aldeia. A coordenação do serviço é feita pelo chefe da família ou pelo líder da aldeia. Não há qualquer forma de remuneração pelo trabalho realizado, mesmo para os membros da família que não recebem lotes de terra, ou porque não casaram, ou porque têm roça noutro ponto da TI.

O “ajuntamento” é uma forma de obtenção de mão-de-obra necessária para o aceleramento das atividades produtivas, em momentos cruciais: coivara, limpeza da terra, plantação e colheita. Nessa modalidade de cooperação também estão envolvidos membros da família extensa ou da aldeia. Constitui-se na troca de dias de trabalho entre os diversos membros do grupo, e seu ciclo se encerra quando todos os participantes receberem o seu dia de trabalho comum. Há vários ciclos de ajuntamento, ate que todas as necessidades de trabalho intensivo sejam completadas.

O “mutirão” é, hoje, pouco usado pela comunidade e, quando ocorre, é de forma simplificada, nem sempre seguida de festa, com sanfoneiros e violeiros, ou mesmo de um grande almoço, embora sempre haja cantos e comida para todos. Nesta forma de cooperação não há compromisso de ressarcimento do dia de trabalho ou qualquer outra forma de pagamento.

O “adjutório”, por sua vez, consiste na troca de trabalho entre parentes para as pequenas tarefas que não exigem uma participação massiva da comunidade para sua concretização. A divisão do trabalho agrícola se faz por sexo e idade. Há exclusão do trabalho feminino na derrubada da roça. Nas demais etapas, a participação feminina se faz presente. O modelo de atividade agrícola dominante é a roça-de-toco, que consiste na derrubada das árvores de maior porte, na queima após a abertura dos aceiramentos, e na limpeza parcial do terreno. A permanência dos galhos e tocos, além da vegetação rasteira para a queima, é justificada pelos índios como forma de garantir a riqueza do solo. As árvores, por exemplo, são cortadas na altura de 60 cm do solo, advindo daí a denominação de roça-de-toco.

Nas roças feitas nos lugares secos planta-se, geralmente, o feijão-andu e outras modalidades do mesmo tipo, além da mandioca, da batata-doce e do gergelim. A agricultura desenvolvida nos baixios é diferente quanto ao método de plantio e aos produtos cultivados. Por ser uma área muito fértil e irrigada, a intensidade da exploração é maior. Lá são plantados feijão das águas, arroz, banana, cana-de-açúcar, milho, cará, mamão, fumo, mamona, alho e cebola.

A cana-de-açúcar é transformada em rapadura em engenhos comunitários, aos quais todos que plantam cana têm acesso. Esse produto é de grande importância como forma de acesso ao mercado regional, garantindo ao grupo a obtenção de bens não produzidos pelos Xakriabá: café, roupas, cigarros, sal, fósforos, etc. Há ainda pequeno criatório de gado por várias famílias. E quase todos têm cavalos, elemento fundamental para a circulação das pessoas na TI.

Descendência e casamento

A lembrança dos nomes dos ancestrais costuma ocorrer até a quarta geração anterior. Ao ocorrer a ausência do nome, os Xakriabá chamam o seu ancestral pela designação que atribuem ao ser mítico protetor da comunidade, Yayá, a onça-cabocla, que se transforma na figura da índia Yndaiá, que se confunde com "a índia braba apanhada a dente de cachorro pelos brancos". [sobre esse assunto, ver item Mitologia e rituais]

Os casamentos preferenciais entre os Xakriabá ocorriam entre primos, mas essa prática foi fortemente desestimulada por representantes da Igreja Católica, os quais cobravam multas para os primos que pretendiam se casar.

Os Xakriabá casam muito cedo, em torno de 14 a 16 anos de idade. Os noivos, após o casamento, geralmente vivem por um ano na casa dos pais da noiva, a não ser que os pais do noivo tenham melhor condição. Este período de um ano é o tempo necessário para a construção da casa e a abertura da roça para o novo casal. Podem, então, instalar-se por conta própria, geralmente na aldeia dos pais. Isso porque as alianças se estabelecem, preferencialmente, entre membros de um mesma aldeia e/ou de uma mesma família.

Outra forma de parentesco bastante respeitada e valorizada pelos Xakriabá é o compadrio. Porém, a identificação do compadre não se faz pelos padrões regionais. O compadre é aquele companheiro de ritual que, como o seu par, pode falar com a onça Yayá.

Organização política

Aldeia do Mata Fome. São João das Missões, MG. Foto: Clésio da Gama, 2012.
Aldeia do Mata Fome. São João das Missões, MG. Foto: Clésio da Gama, 2012.

A organização política entre os grupos das terras baixas da América do Sul não se calca em estruturas rígidas de poder, cristalizadas na figura de um chefe. Baseia-se em facções, com as quais compõe alianças nem sempre estáveis. A permanência no cargo de chefia depende, fundamentalmente, da capacidade e habilidade na construção de alianças com os representantes das várias facções, que, no caso em questão, se fazem presentes através dos líderes de aldeias, que formam o Conselho de Representantes.

Os representantes das aldeias são escolhidos pelos membros de sua comunidade e atendem ao princípio de que a unidade política maior é a aldeia Xakriabá, que se subdivide em aldeias menores, e estas nas famílias que as compõem. O cacique, que representa a comunidade como um todo, é responsável pela sua representação externa, pela solução de questões interétnicas e é o principal articulador de soluções internas que evitem o conflito. Cada aldeia tem o seu representante, com as mesmas funções do cacique quanto às questões internas da aldeia. Cada aldeia também tem o seu conselho, que é composto pelos chefes das famílias daquela comunidade.

O conselho, qualquer que seja o seu nível de representação, goza de prestígio e de poder efetivo. Quando há discordâncias quanto as soluções propostas pelo cacique, ao nível da comunidade global, ou as propostas pelo representante, ao nível da aldeia, são necessários longos diálogos em busca do consenso.

Aspectos mito-cosmológicos

Duas versões do mito da onça-cabocla foram recolhidas pelo antropólogo Romeu Sabará no ano de 1976. A primeira versão foi ouvida do cacique Manoel Gomes de Oliveira Rodrigues e a outra transmitida pelo ex-delegado da Funai, João Geraldo Itatuitim Ruas, que por sua vez a havia recolhido de um informante chamado Pino.

1ª versão

A mãe e a filha estavam passeando. A mãe disse:

- Estou com fome e com vontade de comer carne.

A filha respondeu:

- Eu vou lá. Vou matar uma vaca. Quando eu voltar correndo com a boca aberta, coloque esse ramo na minha boca.

A moça sumiu e logo depois uma onça pulou em cima de uma novilha e a matou. Voltou correndo com a boca aberta para a mulher. A mulher teve medo e correu. A onça era a moça e nunca mais voltou a ser moça. Ela se escondia de dia, e de noite saía e ia aos currais dos fazendeiros e matava a vaca. Os fazendeiros um dia entregaram o ferro de marcar o gado e a onça cabocla não comia mais o seu gado.

2ª versão

Era uma vez uma índia que sentia tristeza de ver seus familiares perseguidos por tanta gente que invadia as suas terras. Pediu a seus companheiros que invocassem o espírito para que ela ficasse encantada. Durante a noite, transformada em onça, ela caçava os animais pertencentes aos fazendeiros. Matava, mas queria que a carne fosse distribuída entre os caboclos. Ao amanhecer o dia, vinha correndo e pedia a sua mãe que colocasse o ramo em sua boca para que voltasse à forma humana. Num desses dias, a mãe não encontrou o ramo necessário. Nunca mais foi feito o desencanto da índia. Passaram os fazendeiros a persegui-la até em caravana para matar a onça cabocla. Ela se refugiava numa das grutas, naquela em que existe o trono em que se sentavam os chefes. Ali os índios executavam as danças à meia-noite e a onça cabocla era desencantada e se transformava na bela índia Yndaiá, com as cantorias e batidas. Os índios comiam pedaços de carne e louvavam ao ver a onça ao seu lado.

O mito está associado de modo evidente a aspectos da história do contacto entre os Xakriabá e os criadores de gado que ocuparam o seu território, entre os quais destacam-se:

  • a pecuária, ao transformar o campo em pastagens, introduz modificações no habitat indígena, eliminando ou reduzindo drasticamente as possibilidades do exercício da caça e coleta, levando a fome às populações indígenas;
  • a saída encontrada em momentos de grande fome era o abate do gado dos fazendeiros, que passava a substituir a antiga fonte de proteína animal de que dispunham - os animais do mato, que antes eram abatidos em suas caçadas;
  • a reação dos fazendeiros era violenta e conhecida pelos índios. Daí a necessidade de fazer a "caçada" à noite, quando a guarda aos currais era inexistente e, de preferência, de forma que não permitisse aos fazendeiros identificar os autores do roubo; - a criação extensiva do gado não permitia o controle do número de cabeças. A introdução do ferro de marcar indica a adoção de medidas de controle sobre o rebanho.

Se fizermos uma análise dos mitos procurando identificar as oposições entre o mundo indígena e o da sociedade nacional, encontramos as seguintes oposições: 

  • índio e civilizado
  • ramo e ferro de marcar
  • onça e vaca - gruta e curral
  • noite e dia
  • floresta e pastagem

Há outras narrativas que contam que no período em que os posseiros se encontravam na área Xakriabá Yayá refugiou-se no Rio de Janeiro. Só esporadicamente aparecia na grande gruta, Olho d'Água, e dava sinais da sua presença assobiando "a mais linda toada", e nos redemoinhos de vento que se levantavam na área.

Yayá, como "dona da terra", não aceita a presença de estrangeiros na região. Quando isto ocorre, ou ela se retira, ou ataca o estranho, e dá claros sinais indicativos de sua fúria: ao invés de cantar, assobia de forma que todos possam ouvi-la e saberem do seu descontentamento. Outra forma de mostra-lo é "armando confusão nas capoeiras" e batendo nas portas durante a noite.

Nestas ocasiões só o Pajé, como conhecedor da língua de Yayá (a língua ritual que apresenta resquícios do antigo idioma) é capaz de acalmá-la. Para todos os membros da comunidade, o ultimo grande Pajé foi Estevão Gomes de Oliveira, a quem até mesmo os fazendeiros recorriam, nos momentos em que os ataques de Yayá se intensificavam. O local mais fácil de entrar em contacto com Yayá é nas grutas, seu local predileto de refúgio.

Os ataques ao gado podiam ser identificados quando da autoria da onça-cabocla: as reses, sem uma gota de sangue, ficavam com o corpo intacto e as cabeças sempre ordenadas, uma de frente para a outra. Caso os fazendeiros ameaçassem caçá-la, o ataque ao gado se intensificava e só a intervenção do Pajé solucionaria a problema. Por isto mesmo o Pajé é visto como uma autoridade, cujo poder advêm de sua capacidade de comunicação com Yayá. Suas palavras, na verdade, são da onça-cabocla.

A decisão de mostrar-se como onça ou como mulher é dela. Nenhuma decisão importante pode ser tomada sem que a onça seja ouvida. O seu discurso pode referir-se ao passado, ao presente ou ao futuro, e tanto pode tratar de questões de interesse pessoal como comunitário. Nenhum líder viaja sem ouvir as previsões de Yayá sobre sua segurança ou possibilidade de sucesso.

Por viver nas grutas, a onça torna-as sagradas. Ao não permitir que sejam visitadas, o grupo preserva as suas únicas fontes perenes de água. Ao definir que Yayá só gosta de gente cujo sangue combine com o dela, e que a única forma de garantir sangue de Yayá é nos casamentos entre primos, esta se faz presente na formulação das regras de casamentos preferenciais e no controle de casamentos interétnicos. Ao se recusar a comparecer à sua dança no terreiro na presença de pessoas que não do seu sangue, Yayá estabelece critérios de inclusão e exclusão de membros da comunidade, ainda que vivam na reserva, como os migrantes não índios incorporados após a demarcação.

Outros seres encantados de menor porte convivem com Yayá no território Xakriabá. Dentre eles, destaca-se, pela sua função na preservação dos olhos d'água, a "Dona", que possui uma enorme mão, com a qual agarra e afoga todos aqueles que sujam, desmatam, lavam roupa ou levam animais para beber na sua morada.

Outros "encantados" são o "bicho-homem", que vive nas matas e tem o corpo coberto de pêlos, e o "homem-pé-de-garrafa", que deixa seu rastro de um único pé, em forma de garrafa, nos caminhos da aldeia. 

Vida cerimonial

Aldeia do Mata Fome. São João das Missões, MG. Foto: Clésio da Gama, 2012.
Aldeia do Mata Fome. São João das Missões, MG. Foto: Clésio da Gama, 2012.

Devido ao processo de contato a que foram submetidos, os Xakriabá adotaram a crença católica como dominante, além de algumas conversões mais recentes ao protestantismo. Mas, enquanto há conciliação entre o catolicismo e a crença em Yayá, o mesmo não ocorre com o protestantismo.

No catolicismo, há uma figura extremamente forte nas crenças Xakriabá: São João dos Índios. Orago da capela, hoje igreja, construída sobre o antigo cemitério Xakriabá, ponto de difusão de missionamento entre os índios, São João é o santo mais homenageado, festejado e solicitado. Crêem os índios que a imagem, que teria sido encontrada numa roça, quando trabalhavam, foge da capela e vem "brincar" com eles. [a esse respeito, ver o relato dos Xakriabá no item História]

São também manifestações religiosas comuns as novenas com peregrinações para obtenção da graças (muitas vezes clamando por chuva). Outra prática é a feitura das "lapinhas", espécie de pequeno presépio ornado com flores de papel ou plantas verdes e que é muito usado pelas moças em busca de marido.

Outras pessoas envolvidas em formas rituais são os rezadores, os raizeiros e os curandeiros. A doença é, muitas vezes, vista como resultado de feitiço e só o curandeiro é capaz de vencê-la. Usa para isso fumigações e rezas, na língua "dos antigos"

Toré

O Toré é dançado no terreno, que fica no meio do mato. O terreiro é precedido de uma área onde fica a árvore sagrada, que define quem deve ou não ter acesso ao local. A árvore é um coqueiro de três galhas, visível somente àqueles que Yayá considera aptos a visitarem o terreiro. O chão do terreiro é batido e limpo de toda vegetação, tem forma retangular e fica próximo às grutas, morada de Yayá. Numa de suas extremidades há um monte de pedras, onde se guardam os objetos do ritual, inclusive os restos da bebida sagrada com propriedades alucinógenas, jurema.

O acesso ao ritual é permitido a todos os membros da comunidade a partir dos sete anos de idade. Porém, algumas regras de exclusão se fazem presentes no momento da participação: só aqueles que realmente são reconhecidos como membros do grupo da "ciência" são aceitos. Assim, os migrantes não-índios que se casaram com membros da comunidade, ali vivendo e sendo incorporados em vários níveis da vida social e política do grupo, não são aceitos no ritual. Também se excluem os que, embora reconhecidos como índios, são casados com esses estrangeiros.

As pessoas, ao chegarem ao terreiro, são recebidas pela madrinha, que as orienta quanto à posição que devem ocupar. Os participantes devem estar vestidos de branco e descalços. Sem o atendimento dessas exigências, ninguém pode pisar no chão consagrado a Yayá. Antes de se iniciarem as "danças para a onça-cabocla", prepara-se, previamente, a bebida jurema. Após alguns momentos de danças, ritmadas ao som de cantos, em português e no assim chamado idioma Xakriabá (somente usado durante o ritual), o bastão sagrado inicia o seu trabalho. O bastão foi descrito pelo cacique e pelo pajé como sendo de madeira, de "tamanho médio" e que só pode ser tocado pelo pajé. Outra pessoa qualquer, caso o toque, morrerá imediatamente. É o pajé que o retira das pedras onde fica guardado e o coloca num canto do terreiro.

Num determinado momento do ritual, o bastão inicia a sua dança sem que ninguém o toque e emitindo fumaça pelas extremidades. Termina sua dança sobre a tigela grande, onde faz uma cruz de fumaça. Apenas aqueles que Yayá escolhe para conversar, naquele dia, são capazes de ver a cruz com perfeição. Após este ato, inicia-se a distribuição da jurema em pequenas tigelas.

O encontro com Yayá é o momento em que ela assume o seu caráter de oráculo. A cada um responde, avisa sobre perigos, orienta e repreende quando seu comportamento não é compatível com as necessida¬des da comunidade. Os temas centrais referem-se à segurança da comunidade: como governá-la; as ameaças de invasão e orientação de como agir; como administrar as crises internas e como orientar as relações interétnicas. Daí ser essencial "saber da ciência" e participar do ritual para ter reconhecida a sua liderança e o cargo de chefia.

Fontes de informação

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