De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Sheila Brasileiro, 1995

Kantaruré

Autodenominação
Onde estão Quantos são
BA 401 (Siasi/Sesai, 2014)
Família linguística

Descendente dos Pankararu, o povo kantaruré tomou forma há pouco mais de um século, quando a índia pankararu conhecida como Rosa Baleia deixou sua aldeia no Brejo dos Padres para se unir a Balduíno, morador da localidade de Olho d´Água dos Coelhos, situada junto à Serra Grande. O casal fixou residência e roçados na vertente oposta da serra, onde gerou treze filhos e fundou a aldeia da Batida. Além desta, hoje os Kantaruré estão também na comunidade de Pedras, ambas na Terra Indígena Kantaruré, homologada em 2001.

Nome e língua

Foto: Lucia Mascarenhas, década de 90
Foto: Lucia Mascarenhas, década de 90

Conforme os Pankararu , a quem os Kantaruré atribuem sua "origem", o termo kantaruré designa uma figura mítica do universo mágico-religioso daquele povo indígena que geralmente aparece durante a realização de rituais: "Caboclo Brabo", "Pai do terreiro". De acordo com o depoimento de um ancião kantaruré, esse etnônimo foi sugerido por um índio pankararé, em contraposição ao até então adotado pelo grupo, "caboclos da Batida", quando do processo de reconhecimento oficial.

Atualmente os Kantaruré falam o Português e as perdas culturais impossibilitam hoje sua identificação lingüística.

Histórico de ocupação

Os Kantaruré são descendentes da população indígena que originalmente habitava o trecho do rio São Francisco entre a cachoeira de Paulo Afonso, a embocadura do rio Pajeú e as caatingas, brejos e serras adjacentes. Aparecem nas fontes históricas dos séculos XVII e XVIII, designados como "Pancararu", "Brancararu", "Pancaru" ou "Caruru". Eles foram aldeados a partir do final do séc. XVII à margem do São Francisco por missionários jesuítas, franciscanos e capuchinhos. Dentre as missões fundadas à época, se destacam as de Sorobabé, Caruru e, em especial, Curral dos Bois, origem da atual cidade de Glória. Foram extintas em meados do século seguinte e a população indígena remanescente se tornou alvo de pressões coloniais, sobretudo de pecuaristas interessados nas terras mais férteis à margem do rio, de onde foi forçada a migrar, buscando locais de refúgio e resistência nos brejos e altos de serras dispersos na caatinga adjacente, que eram parte de sua antiga área de dispersão e perambulação.

Já em meados do século XIX se pode identificar a consolidação de dois novos núcleos constituídos por população indígena egressa de Curral dos Bois: um em Brejo dos Padres, no lado pernambucano do rio, onde vivem os atuais Pankararu; e outro no Brejo do Burgo, do lado baiano, onde habitam os Pankararé. Ainda ao final daquele século, o primeiro desses núcleos originaria mais dois, em localidades próximas: o dos atuais Jiripankó, no extremo ocidental do Estado de Alagoas, e o dos Kantaruré, na localidade da Batida, próxima à margem baiana

O núcleo da Batida

A história oral kantaruré refere Rosa Baleia, uma índia pankararu, originária de Brejo dos Padres/Tacaratu/PE, como "tronco" velho do povo kantaruré. Quando ainda muito jovem, Rosa Baleia, em uma viagem de peregrinação à Bahia, travou conhecimento com o "posseiro" Balduíno - habitante do povoado Olho D'Água dos Coelhos, município de Glória/BA - tendo com ele constituído família e jamais retornado ao local de origem. O casal se fixou em uma localidade próxima ao povoado de Balduíno, a Batida, onde criou seus 13 filhos e estabeleceu raízes. Toda a população da Batida descende diretamente de Rosa Baleia e Balduíno, através de quatro dos seus filhos: Cícero Pequeno, Rosendo, Honório e Constantina.

O núcleo das Pedras

Algumas gerações após a instalação de Balduíno e Rosa Baleia na Batida, dois irmãos kantaruré, Arcelino e Bregídio, ali residentes, se casaram com duas irmãs, Santina e Maria de Virgílio, originárias do povoado Baixa das Pedras de Cima, distante 3 Km em linha reta da Batida, vindo a fundar um segundo núcleo de ocupação kantaruré, em localidade contígua ao povoado, conhecida hoje como "Pedras".

Localização e população

A população kantaruré era de 353 indivíduos (Funasa, 2003), distribuída em dois núcleos de ocupação, Batida e Pedras, que distam entre si três quilômetros e se situam próximos à vertente setentrional da Serra Grande, a aproximadamente 5 quilômetros da margem direita do rio São Francisco. Ambos núcleos ou "aldeias" se localizam junto às extremidades nordeste e noroeste da Terra Indígena e seus terrenos de cultivo e de moradia confinam aí, respectivamente, com os das localidades vizinhas de Salgadinho dos Benícios e Baixa das Pedras. Em direção ao sul, por sua vez, esses terrenos se estendem até o sopé da Serra Grande, território predominantemente destinado às atividades de caça e coleta do grupo.

A Terra Indígena localiza-se no norte do estado da Bahia, Município de Glória, em uma região de clima semi-árido, com baixa incidência pluviométrica, a 42 km da cidade de Paulo Afonso. Seus solos são arenosos e pouco férteis, de vegetação rasteira, típica da caatinga, com ocorrência de bromeliáceas e cactáceas. A comunidade Batida se situa em um amplo baixio margeado ao sul por serras, com cursos d'água intermitentes. As casas de moradia, esparsas, se localizam nas baixadas. Apresentam poucas variações, sendo construídas, em sua grande maioria, em taipa, com cobertura de telha ou croá e chão de terra batida. Na comunidade de Pedras os solos são secos e arenosos. Suas casas de moradia, que seguem o mesmo padrão encontrado na Batida, são um pouco mais concentradas, conformado um pequeno arruamento.

Organização social e cosmologia

Nas residências kantaruré há um predomínio de famílias nucleares, relacionadas por laços de parentesco e de compadrio horizontal. Mais recentemente, tem se observado uma tendência de descentralização do poder constituído internamente, expressa na alta rotatividade que vem caracterizando os cargos de cacique e pajé, fenômeno recorrente tanto na Batida quanto nas Pedras.

Um significativo contingente populacional kantaruré reside fora dos limites da Terra Indígena, em municípios vizinhos, como Paulo Afonso, em localidades relativamente próximas à Terra Indígena, em agrovilas implantadas pela Chesf (Companhia Hidroelétrica do São Francisco) na região (principalmente a 2, a 5 e a 7), ou mesmo em outros estados, como Sergipe (Aracaju), Pernambuco (Petrolina, Petrolândia, Floresta), Piauí, São Paulo (Araçatuba), Mato Grosso e Belém. Muitos destes casos exemplificam o fenômeno da migração - sazonal ou permanente - estratégia comum entre trabalhadores rurais no contexto regional mais amplo, em virtude da ocorrência de longos períodos de seca. Outros, contudo, podem ser reputados aos intercasamentos com indivíduos de "fora", quando prevalece de modo geral como nova residência a localidade de origem do cônjuge de sexo masculino.

Os Kantaruré mantêm estreito contato com famílias "aparentadas" residentes em localidades vizinhas, como Baixa das Pedras de Cima, Olho D'Água dos Coelhos, Salgadinho dos Benícios e Agrovila 5. Há um índice significativo de casamentos dos Kantaruré com indivíduos provenientes dessas localidades. As famílias resultantes desses casamentos jamais chegaram a perder contato com os "parentes" da Batida e das Pedras. Muitas delas são, inclusive, reconhecidas na comunidade como Kantaruré. Parentes radicados em localidades distantes da área de origem geralmente preservam certas vias de acesso à comunidade, seja por possuírem "casa fechada na Batida", por terem deixado descendência no local, "virem sempre visitar", ou mesmo por um propalado interesse em retornarem para a Terra Indígena logo que possível.

A cosmologia kantaruré se articula a um complexo religioso indígena do sertão nordestino no qual se destacam ritos de possessão - geralmente designados "toré" (a esse respeito, ver "O Ritual do Toré" na seção destinada aos Kiriri) - associados à cura e ao culto de antepassados e figuras míticas, propiciadas pelo uso da jurema e do tabaco. Os "terreiros" de culto e cemitério se localizam no espaço das próprias aldeias.

Atividades produtivas

Os Kantaruré são pequenos agricultores do semi-árido nordestino. Seu território é dos mais inférteis dentre aqueles que podem ser considerados agricultáveis na região. A atividade produtiva fundamental é a agricultura de cultivos alimentares, extensiva, voltada quase que exclusivamente para a subsistência, destacadamente de tubérculos (mandioca) e favas (feijão), aos quais se associam cereais (milho) e muito pouca variedade de hortaliças. Os roçados são desenvolvidos com base na posse e no trabalho familiares, com recurso eventual a círculos mais amplos de cooperação (família extensa, vizinhança). Merece destaque o trabalho de processamento da mandioca nas casas de farinha de cada núcleo, tarefa que ocupa diuturnamente quase toda a população nos meses finais do ano agrícola.

O calendário agrícola é relacionado ao ciclo de chuvas e estiagem característico da região. Em anos sem seca, o milho e o feijão de arranca são plantados entre os meses de abril e maio e colhidos entre os meses de julho e agosto. O feijão de corda é plantado entre fevereiro e março e colhido a partir do mês de junho. A mandioca é plantada nos meses de junho e julho e colhida durante todo o ano.

A baixa fertilidade dos solos não viabiliza uma ocupação agrícola intensiva. Muitos roçados situam-se junto às residências, formando com estas áreas contínuas de moradia e trabalho. Outros roçados, porém, estendem-se até o sopé da Serra Grande, configurando uma ocupação agrícola dispersa que ocupa toda a metade norte, cerca de 800 hectares, inclusive as aldeias, do território tradicional.

A carência de recursos produtivos faz com que os roçados sejam em geral reduzidos, raramente ultrapassando três tarefas (cerca de um hectare). A natural insegurança da atividade agrícola no polígono das secas faz com que quase todas as famílias optem por manter roçados em diferentes localidades e, assim, cada uma delas tem, em média, dois ou três roçados, situados em cercados. Os terrenos mais pobres localizados no entorno são destinados ao criatório extensivo, um recurso que a extrema carência da maioria dos Kantaruré não lhes permite explorar, mesmo nas precárias condições locais, e muito poucas famílias dispõem de algumas poucas cabeças de caprinos. Apenas o criatório doméstico de galináceos e alguns suínos merece certo destaque.

A caça é realizada na serra, por indivíduos do sexo masculino, com o auxílio de cachorros e, invariavelmente, estende-se por todo o período noturno. Os animais mais facilmente encontrados são tatu, peba, tamanduá, veado, nambu, juti, cordoniza, gavião, jacu e cardieira.

O extrativismo vegetal constitui relevante estratégia de subsistência para os Kantaruré. Além da utilização tradicional de árvores frutíferas em períodos de safra, tais como cajueiro, goiabeira , tamarineiro, umbuzeiro e mangueira, em períodos de seca as árvores da caatinga fornecem boa parte do alimento diário da população e, ainda, material para a confecção do "campiô", um tipo de cachimbo de madeira utilizado no ritual toré; dos "aiós", sacolas, e dos "caçoás", cestas de caroá.

Em vista da proximidade do rio São Francisco, a pesca constitui mais uma alternativa de subsistência para o povo Kantaruré. É realizada de forma esporádica, geralmente por indivíduos do sexo masculino. Pescam com rede, "linhada" (utilizando o nylon sem a "vara", com iscas de camarão, pequenos peixes e passarinhos), ou ainda com "groseira" ou "meia-água" (um fio de seda, sem anzol) com iscas de peixes pequenos. Os peixes mais comumente encontrados na região são corvina, tucunaré, pirambeba, piranha, traíra e tucari (ou panhari).

Fontes de informação

  • BRASILEIRO, Sheila dos Santos. Laudo de identificação e delimitação da Terra Indígena Kantaruré. s.l. : s.ed., 1995.

; SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. “Por não ser estadual” ou relatório circunstanciado de identificação e delimitação da Terra Indígena Kantaruré. Brasília : Funai, 1996.

  • BRITO, Maria de Fátima Campelo. Relatório de viagem referente ao grupo Kantaruré ou Caboclos da Batida. s.l. : s.ed., 1990. (Cf. OS n. 301-GAB/3ª. SUER - 89, de 21/09/89).